Jornal do Cremesp - Edição 345 - Março de 2017
É possível que as regras éticas vigentes no País sobre pesquisas envolvendo seres humanos mudem em breve: o plenário do Senado aprovou, em fevereiro, substitutivo ao projeto de Lei do Senado (PLS) n° 200/2015, depois de quase dois anos de debates protagonizados por grupos contrários e favoráveis à lei que substitui resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) como diretriz sobre o assunto. Na prática, acredita-se que a mudança possa representar o fim da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).
A redação final do substitutivo ao projeto que “dispõe sobre princípios, diretrizes e regras para a condução de pesquisas clínicas em seres humanos por instituições públicas ou privadas” segue à Câmara dos Deputados, com formato bem diferente (veja box) do apresentado, em origem, pelos senadores Ana Amélia (PP-RS), Waldemir Moka (PMDB-MS), e Walter Pinheiro (PT-BA). Porém, permanecem controvérsias relativas aos direitos dos participantes das pesquisas e controle social da área no País.
Divergências
Desde o início, o debate se polarizou entre dois grupos: de um lado, há as entidades e instituições que querem a manutenção do sistema de avaliação ética vigente – direcionado pela Resolução CNS n° 466/12 –, como a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e o CNS. Do outro, a Aliança Pesquisa Clínica Brasil, grupo formado por entidades como a Associação de Pesquisa Clínica do Brasil (APCB) e a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), além de pesquisadores independentes, em especial, da Oncologia.
No centro do debate, ponto crucial é a eventual fragilização da Conep. “O projeto acaba com a Comissão, retirando da sociedade o controle das pesquisas com seres humanos no Brasil”, opina Regina Parizi, presidente da SBB, para quem a maior motivação dos autores do PLS n° 200/15 foi somente a de “concentrar o poder de decisão nas mãos de um pequeno grupo”, trazendo insegurança de que os interesses de pacientes e participantes serão respeitados.
Visão diferente tem o oncologista Fábio André Franke, presidente da Aliança Pesquisa Clínica: “a Conep não vai deixar de existir como órgão fomentador e propagador de pesquisa”. Para ele, a vantagem da lei seria trazer mais segurança ao campo. “As regras atuais são frágeis. Os prazos para avaliação não são razoáveis, o que torna a pesquisa não competitiva internacionalmente”, comenta. Franke acredita que isso seria capaz de afugentar investimentos em estudos multicêntricos e, em consequência, em centros de pesquisa e equipes de pesquisadores.
Para Franke, “celeridade na avaliação ética não significa pressa. A necessidade de análise dupla do sistema atual, pelos Comitês de Ética em Pesquisa e Conep, prejudica pacientes que, muitas vezes, dependem de drogas experimentais como únicas alternativas para seus tratamentos”.
Drogas pós-estudo
Já o médico Jorge Venâncio, presidente da Conep, em entrevista recente, classificou como “desassistência aos voluntários” mudar a regra atual – que determina fornecimento das drogas avaliadas nos estudos aos participantes, por tempo indeterminado, “até que sejam incorporadas ao SUS”. Além de tudo, disse, “é incoerente, pois transfere a responsabilidade pelos tratamentos do sistema privado para o público”.
De acordo com Franke, a intenção é contrária. “Falar em ‘fornecimento indefinido’ pela indústria é algo subjetivo. Sugerir a dispensação de medicamento pelo sistema público, assim que encampá-la, é garantir que o paciente não vai deixar de receber a droga”. E acrescenta: “os laboratórios continuarão a prover as drogas a participantes com doenças graves, como o câncer. Aqueles com problemas menos graves terão sua vida facilitada, se puderem retirar seus remédios, por exemplo, em farmácias populares”.
- Ao contrário do atual, o texto inicial submetido ao Congresso e à sociedade, por meio de consulta pública, previa a avaliação ética dos protocolos de pesquisa por Comitês de Ética Independente (CEI), desvinculados da instituição que realiza a pesquisa;
- O projeto original não incluía, como o atual, os representantes dos usuários dos serviços nos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), como ocorre na última versão;
- Inicialmente era proposto o uso de placebo “para atender exigência metodológica justificada” – o que não figura da última versão aprovada no Senado. Esta, porém, é ambígua, ao estabelecer que “não se pode privar o participante da pesquisa de receber o melhor tratamento ou procedimento que seria habitualmente realizado na prática clínica” em uso combinado de placebo e outro método. Mas, o que é o melhor e o habitual?;
- No original, o fornecimento dos medicamentos ao término do estudo seria garantido apenas em situações como “risco de morte ou agravamento” da doença, entre outras. Durante as tramitações, cogitou-se limitá-lo a até dois anos. O projeto atual determina que seja garantido a todos os participantes, até que a droga esteja disponível no sistema público de saúde.
Instituída, em outubro de 1996, pelo Conselho Nacional de Saúde, a Resolução CNS n° 196/96 criou um sistema de avaliação de projetos de pesquisa com articulação nacional, consolidado pela criação dos comitês de ética em pesquisa (CEP). Conforme seu próprio texto, “incorpora, sob a ótica do indivíduo e das coletividades, os quatro referenciais básicos da bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, entre outros”.
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