Jornal do Cremesp - Edição 348 - Junho de 2017
Há abusos de solicitações de testes genéticos como rotina,
bem como interpretação equivocada dos resultados. Essa foi a constatação de um estudo que mereceu o primeiro lugar no Congresso Americano de Ginecologistas e Obstetras (ACGO), realizado em maio passado. Conforme o grupo premiado do San Diego Naval Medical Center, um em cada três testes nem deveria ter sido solicitado.
Embora o escopo fosse limitado – já que envolveu a revisão de 114 casos em que foram pedidos testes genéticos –, as conclusões do estudo concordam com anteriores, como o publicado em 2014, no American Journal of Medical Genetics (AJMG), que identificou que esses exames são solicitados rotineiramente por médicos de várias especialidades, muitos “com conhecimento e/ou experiência limitados quanto à interpretação dos dados”. Assim, erros são comuns. Para dar-se uma ideia, o artigo do AJMG observa que 26% dos resultados foram revistos e corrigidos posteriormente.
Outra pesquisa semelhante, realizada na Universidade de Stanford, no mesmo ano, revelou que três mulheres de São Francisco optaram por aborto, depois de rastreamentos indicarem erroneamente anomalias nos fetos, como Síndrome de Down e Patau. “Nossa preocupação volta-se às interrupções de gestação sem que se saiba se o resultado inicial é verdadeiro”, disse, à época, Athena Cherry, professora de patologia Stanford, cujo laboratório examinou as células dos fetos saudáveis abortados.
Questão mundial
Problemas de interpretação e pedidos sem justificativa de testes genéticos não são exclusividade de países desenvolvidos. De acordo com José Cláudio Casali da Rocha, fundador do departamento de Oncogenética do Hospital AC Camargo, “o gargalo existe em todo o mundo, mas é mais acentuado no Brasil, pela falta de profissionais qualificados para indicar, interpretar e definir condutas terapêuticas e preventivas baseadas na análise genética”.
Ou seja, se por um lado o acesso aumentou, pelas novas tecnologias de decodificação do DNA e disponibilização ao público em vários serviços, por outro, a capacidade humana de análise e interpretação técnica “continua nas mãos de cerca de 200 geneticistas no País”. Isso, segundo ele, gera paradoxos. Há desde médicos sem qualificação solicitando testes pela falta de especialistas na cidade em que trabalham, até aqueles com título, tendo que emitir pareceres e condutas em áreas às quais não atuam, como Oncogenética ou Farmacogenética.
No estudo ganhador do prêmio da ACGO, identificou-se que 38% dos profissionais de saúde pesquisados usaram testes genéticos de forma não compatível com as diretrizes de boas práticas médicas. Grande parte foi prescrita para auxiliar em diagnósticos aos quais não foram desenhados; outros forneceram informações inadequadas sobre sintomas específicos; e alguns simplesmente trouxeram resultados falsos sobre riscos genéticos.
Equivocados?
A pesquisadora Monica Lutgendorf, uma das coordenadoras da pesquisa do San Diego Naval Center, foi ponderada ao falar ao Jornal do Cremesp. “Não diria que os resultados são mal interpretados, mas que nem sempre são bem compreendidos. A disponibilidade e a quantidade de testes em constante expansão podem torná-los desafiadores aos provedores de saúde, perante a escolha dos exames mais indicados”, explica.
Para superar barreiras como essa, o grupo sugere treinamento adicional aos médicos, e envolvimento de conselheiros genéticos, visando melhorar o atendimento e, potencialmente, poupar dinheiro aos sistemas de saúde.
Para Casali da Rocha, o uso clínico de painéis gênicos de sequenciamento e técnicas de rearranjos é de domínio de médicos geneticistas e depende de treinamento específico. “Por isso, devemos aplicar os conceitos de Medicina integrativa ao processo de aconselhamento genético, que permite avaliar o paciente por diversas facetas”.
Imperícia
Uma reflexão deontológica quanto a eventuais limites do médico dentro de sua profissão – como dificuldades de prescrever ou de interpretar testes genéticos – passa por ditames do Código de Ética Médica, como os princípios fundamentais: “o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”; e “compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente”.
Além disso, é possível considerar o Art. 1 (Responsabilidade Profissional), que veda causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência – entendendo-se por “imperícia” a falta de habilidade específica para a realização de uma atividade técnica ou científica.
Informação adequada
No trabalho Testes genéticos preditivos: uma reflexão bioético jurídica, de 2014, a pesquisadora Fernanda de Azambuja Loch, da PUC-RS, aponta aspectos negativos capazes de surgir do uso indiscriminado dos exames. E menciona: para análises eticamente adequadas, “é necessário observar os princípios bioéticos, por meio de aconselhamento genético e do consentimento informado”.
Tal ponto de vista vem ao encontro do ensinado pelo professor Joaquim Clotet, membro do Kennedy Institute of Ethics: em Bioética, de que a genética molecular tem a ver com a informação. “Não apenas indivíduos, mas também as famílias podem ser ajudadas por meio da informação correta sobre problemas genéticos. A conveniência de um rastreamento genético determinado, quando devidamente realizado e informado, pode ser de grande utilidade”.
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