Por atuarem em área pouco afeita ao universo das vendas, médicos têm dificuldades em notar quando artigos publicados em prestigiosas revistas científicas incluem mensagens subliminares, cuja intenção vai desde respaldar a eficácia de drogas ainda nem lançadas, até criar ou exagerar “estados de doenças”. Tais textos são elaborados por ghost-writers – “escritores-fantasma” – a serviço dos laboratórios, responsáveis por escrever artigos a serem assinados por colegas de meios acadêmicos.
Opiniões surpreendentes como essas partem de quem entende do assunto: a médica e pesquisadora Adriane Fugh-Berman, diretora do PharmedOut (www.pharmedout.org) – projeto de pesquisa e educação do Georgetown University Center, que carrega, entre suas missões, a de “expor o efeito do marketing farmacêutico sobre práticas de prescrição”. A autora de vários artigos científicos sobre o tema opinou, em entrevista exclusiva ao Cremesp, que “médicos são bastante inteligentes, mas inexperientes quanto a técnicas de vendas e manipulação psicológica”.
Nem todos, porém. Existem os que se aprimoram em influenciar na prescrição alheia, durante eventos de educação médica continuada, lançando mão de técnicas bem desenvolvidas e capazes de não incluir sequer o nome da droga a ser promovida. Como assim? “A indústria não contrata médicos para vender remédios e sim para vender doenças”, explicou Fugh-Berman, também professora dos departamentos de Farmacologia e Fisiologia e de Medicina da Família, em Georgetown.
Por Concília Ortona*
Centro de Bioética – A senhora já escreveu que planejamento de publicação é uma estratégia subliminar de marketing usada pela indústria farmacêutica para respaldar a eficácia de determinada droga. Não é conduta antiética dos laboratórios?
Adriane Fugh-Berman – Não é apenas antiética, mas perigosa à Saúde pública. O planejamento de publicação distorce a literatura médica. Por meio de uma programação destinada a maximizar o impacto do marketing, as empresas farmacêuticas e de equipamentos médicos são competentes em esconder eventuais erros e/ou resultados negativos encontrados em pesquisas com as drogas a serem lançadas, nos muitos artigos que produzem. É o oposto ao esperado em ciência médica, capaz de corrigir-se, caso seja divulgada alguma informação incorreta.
Além disso, quem tentar retificar desinformações é atacado. Por exemplo, se algum estudo ou revisão de artigo trouxer críticas negativas acerca da droga, a companhia responsável por ela faz chegar várias “cartas ao editor”, criticando o texto, diminuindo, assim, seu impacto.
Cbio – Editores de periódicos médicos e leitores não são experientes o bastante para perceber jogos como esses?
Fugh-Berman – O s artigos elaborados pela indústria são profissionais, bem escritos, e sua publicação é muito provável. A manipulação de informações acontece até nas revistas científicas mais conhecidas e respeitadas. Naturalmente, essas revistas são as primeiras metas dos laboratórios já que, por si só, a mera publicação funciona para endossar um novo medicamento.
Não chamaria isso de conluio voluntário. Os editores de revistas científicas podem ser um pouco ingênuos – e não por sua culpa. São, enfim, médicos, não redatores treinados, e podem não reconhecer as técnicas de escrita de persuasão ou mensagens de marketing embutidas.
Médicos são bastante inteligentes em vários aspectos, porém, inexperientes em relação a técnicas de vendas e manipulação psicológica. A maioria vem de famílias de classe média ou alta, nunca atuaram em vendas, ou têm parentes vendedores. Constitui-se numa categoria suscetível a golpes financeiros, justamente por confiar plenamente na possibilidade de enxergar que estão sendo enganados e identificar falcatruas.
Artigo que escrevi em 2011 para a PLOS Medicine (http://www.plosmedicine.org/article/info%3Adoi%2F10.1371%2Fjournal.pmed. 1000425) aponta que, mesmo depois de o Women’s Health Initiative (WHI, estudo de longo prazo focado em estratégias de prevenção de doenças em mulheres) indicar os riscos da terapia hormonal na menopausa, cerca da metade dos ginecologistas dos EUA continuou acreditando no contrário.
Identificamos tendência promocional em artigos relativos ao tema, por afirmações do gênero: “o ensaio do WHI é polêmico”; “resultados de ensaios clínicos não devem guiar tratamentos”; e “riscos associados à terapia hormonal têm sido exagerados”.
Tivemos algum progresso nos EUA, por meio de educação e de regulamentação, mas a verdade é que todos somos vulneráveis. A maioria quer fazer a coisa certa e uma vez ciente da manipulação, fica com raiva da indústria e mais preparada para reconhecer as técnicas de marketing. Nesse sentido, nossa apresentação WhyLunchMatters (algo como Por que o Almoço Importa, encontrada em http://www.pharmedout.org/ tools.htm), pode fazer diferença. (N. R.: A apresentação aponta, entre outros aspectos, as maneiras encontradas por laboratórios norte-americanos para obter informações dos médicos, que vão “da quantidade de pacientes atendidos até onde o cartão de crédito deles é aceito”).
Cbio – Os laboratórios, segundo a senhora, contratam médicos que são também escritores profissionais. Qual é o papel deles? Sempre atuam como ghost-writers ou podem ser autores conhecidos nos meios acadêmicos?
Fugh-Berman – São situações diferentes. O “autor convidado” é o médico que coloca seu nome no artigo. Já o ghost-writer é o escritor médico contratado pelo laboratório para escrever pelo primeiro.
Funciona mais ou menos assim: a empresa “X” oferece a um autor academicamente inserido (normalmente, bastante ocupado) um escritor médico, para fornecer-lhe “assistência editorial”. Na verdade é quem acaba escrevendo a coisa toda. Meus alunos ficam bem chateados com isso porque assinar algo de autoria de outra pessoa é essencialmente plágio. Se fizessem o mesmo, seriam expulsos da faculdade.
É interessante indicar aos leitores The Hauntingof Medical Journals: HowGhostwritingSold “HRT” (A infestação em revistas médicas: como a escrita fantasma vende a hormonioterapia, encontrado em http://www.plosmedicine.org/article/info%3Adoi%2F10.1371%2Fjournal.pmed.1000335), que traz exemplos de como um grande laboratório usou artigos com escrita-fantasma para mitigar os riscos de câncer de mama associados às terapias; defender os “benefícios” cardiovasculares obtidos; e promover usos off-label (indicações diferentes das que constam na bula), como prevenção da demência, do Mal de Parkinson, de problemas de visão e, até, de rugas.
Cbio – Por que o FDA (FoodandDrugsAdministration, órgão americano que regula o lançamento de alimentos e medicamentos) não inclui literatura médica “promocional” no rol de métodos de marketing de remédios, se pesquisas mostram tal vínculo?
Fugh-Berman – Essa é uma ótima pergunta. O FDA não regula a prática da Medicina, e, por este motivo, considera “não ter meios” de incluir artigos em publicações médicas, e/ou, educação médica continuada, como eventuais métodos de vendas de drogas. Assim, tais instâncias tornam-se controladas pela indústria, de forma a contornar os regulamentos.
Basta ler editorial publicado na revista científica JAMA Internal Medicine (http://archinte.jamanetwork.com/article.aspx?ar¬ticleid=1726983&resultClick=3) demonstrando que, apesar dos esforços da ciência para garantir níveis adequados de transparência sobre financiamentos, conflitos de interesse, e da presença de ghost-writers, os laboratórios farmacêuticos continuam livres para interferir nos artigos de forma sutil e, portanto, para levar em frente meios eficazes de marketing.
Além disso, programas de educação continuada e painéis de “consenso” continuam a ser financiados por empresas diretamente vinculadas aos produtos mencionados em materiais “educacionais” distribuídos nesses eventos. Os porta-vozes pagos pela indústria negam que divulguem mensagens de marketing, pois nem sempre citam o nome da droga a ser promovida.
Cbio – Como defender a eficácia de um medicamento sem ao menos citar seu nome em revistas ou encontros científicos?
Fugh-Berman – Várias vezes presenciei médicos dizendo: “nem sequer mencionei o nome de produtos”. Só que tais comentários só servem para destacar suas habilidades de vendas. A indústria não contrata médicos para vender remédios. Esse é o trabalho dos representantes dos laboratórios. Contrata médicos para vender doenças.
Constitui-se em um processo de venda, largamente despercebido, chamado “estado de doença”, que começa muitos anos antes da submissão da droga ao FDA, ou seja, no momento em que os laboratórios farmacêuticos ou seus fornecedores identificam, entre profissionais da saúde e em centros acadêmicos, os líderes de opinião a serem “cortejados”.
Tais pessoas serão abordadas talvez no decorrer de um almoço caro com um pesquisador ou executivo da empresa – alguém não identificado com o marketing –, cujo papel é obter sua opinião a respeito de vários tópicos, incluindo, o “estado” de uma doença. Aqueles cujas perspectivas se alinharem aos objetivos do laboratório podem ser seduzidos, em relacionamentos duradouros, que se constituem, basicamente, em pagá-los para educar seus pares, utilizando uma ferramenta poderosa, como indiquei em editorial ao Boston Review: a educação médica continuada.
As mensagens de marketing atribuídas a tais líderes de opinião podem enfatizar, por exemplo, a carência de diagnósticos de uma determinada doença; as graves consequências do tratamento tardio; a importância de um receptor recentemente encontrado; ou um novo mecanismo de ação de um fármaco.
Cbio – O assédio começa já na faculdade?
Fugh-Berman – Sim. As indústrias aproximam-se de estudantes e acadêmicos de várias formas, oferecendo-lhes palestras, posições em conselhos consultivos e em publicações.
Quanto aos médicos atuantes, a tática inclui presentes, refeições, possibilidade de participar de estudos falsos – quando os profissionais são pagos para prescrever uma droga “x” e chamar isso de “estudo” – ou realizar pequenas palestras falsas – em que se paga para abordar uma droga junto a amigos e colegas, por exemplo, no restaurante.
Há diversas maneiras de subornar, sem chamar isso de suborno. Os médicos são os principais alvos da indústria, em especial, os psiquiatras, porque estabelecem diagnósticos subjetivos. Mas tais focos mudam ocasionalmente. Por exemplo, nos EUA, uma em quatro prescrições é feita por enfermeiras, que agora passaram a ser assediadas também.
Além delas, procuram-se sociedades médicas, grupos de consumidores, financiadores e pacientes – isto é, qualquer pessoa ou entidade que tem um efeito positivo ou negativo na estratégia de mercado escolhida.
Cbio – De que forma a indústria farmacêutica consegue fazer com que indivíduos saudáveis acreditem estar doentes?
Fugh-Berman – A maneira clássica de expandir o mercado de um medicamento é inventar um estado de doença ou exagerar a importância ou a prevalência de uma condição já existente. Já citei, no Boston Review, um exemplo fictício do “borborigmo”, a forma com que os médicos se referem aos burburinhos de um estômago vazio. Imagine que uma empresa pretenda desenvolver uma droga para impedir tal desconforto.
O primeiro passo seria incentivar as pessoas a levarem a sério o estado de doença. Enquanto a droga ainda está em testes, lançam-se mensagens de marketing, do tipo: “não há motivo de preocupação enquanto o estômago roncar ocasionalmente. Mas episódios regulares podem indicar a condição Barulhos Altos Atípicos do Estômago (“sigla” em inglês para CLASS, ChronicLoudAtypicalStomachSounds)”; “os acometidos por CLASS podem ter limitadas viagens, atividades profissionais e de lazer, chegando até a estigmatização social”; “A CLASS pode levar à obesidade, pois a pessoa pode comer constantemente, de maneira a evitar que seu estômago ronque”.
A partir daí, a indústria farmacêutica pode começar a recrutar médicos como porta-vozes de mensagens de marketing em educação médica continuada, que destacarão que a “CLASS não é motivo de riso. É uma condição comum, subdiagnosticada e com consequências potencialmente graves”. Além dessas invenções, várias condições e doenças passaram a ser redefinidas, como Diabetes, Hipertensão e Hipercolesterolemia.
Cbio – A senhora é médica generalista, graduada pela Georgetown. Por que decidiu criar, na mesma universidade, um blog específico com alegações de ingerência dos laboratórios na profissão médica?
Fugh-Berman – Venho de um ativismo na área da saúde, atuando em um grupo chamado Rede de Saúde da Mulher, que não recebe dinheiro nenhum da indústria. Hoje, um dos meus trabalhos é atuar como perita paga por queixosos, em contendas contra práticas de marketing de produtos farmacêuticos.
Esse é o meu conflito de interesse, que sempre explicito.
PharmedOut (http://www.pharmedout.org) não é um blog. É um projeto de pesquisa e educação da Georgetown University Medical Center, dirigido a médicos e outros prestadores de cuidados de saúde, que divulga a prescrição baseada em evidências e educa os profissionais de saúde a respeito de práticas de marketing de produtos farmacêuticos.
É liderado por uma equipe de médicos ligados a meios acadêmicos, mas a nossa rede de voluntários inclui enfermeiros, farmacêuticos, especialistas do setor e estudantes, entre outros.
Entre os objetivos, estão documentar e divulgar informações sobre como a indústria influencia nas prescrições; promover acesso à informação imparcial em relação a drogas; e incentivar os médicos a escolherem educação médica continuada livre da influência dos laboratórios.
* Entrevista originalmente publicada na revista Ser Médico nº 67
** Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp, especialista em Bioética e mestre em Saúde Pública (USP
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