O objetivo de confrontar reflexões filosóficas, científicas e tecnológicas de "ricos" e "pobres" - com a façanha de manter no debate a cordialidade e o calor humano, bem típicos dos brasileiros - foi totalmente alcançado pelo VI Congresso Mundial de Bioética, realizado na Academia de Tênis, em Brasília, de 30 de outubro a 03 de novembro. "Fizemos com que o tema 'Poder e Injustiça' estivesse presente em todas as mesas, sem distinção. Era algo tão delicado, que cheguei a pensar que não seria possível", entusiasmava-se o professor Volnei Garrafa, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), principal organizadora da maratona.
Durante coletiva com a imprensa pouco antes de encerrar as atividades oficiais do evento, Garrafa não escondia a satisfação com as dimensões atingidas pelo Congresso - inscreveram-se mais de 1.300 participantes, provenientes de mais de 60 países - e os rumos seguidos pelos debates, com tônica indiscutivelmente política. "Eles (os representantes do chamado "mundo desenvolvido") tiveram que parar para nos ouvir. Vamos esperar, agora, pelos efeitos das discussões", comentava o professor da Universidade de Brasília (Unb). Sem dúvidas, o encontro demonstrou linguagem e características de um mundo diferenciado, mas que vem se empenhando pela globalização.
Do homem imortal às populações miseráveis
Apenas para se dar uma idéia de como o Congresso conseguiu abordar as duas faces da moeda, relativas ao Poder e à Injustiça: se por um lado o filósofo e bioeticista britânico John Harris discutiu, em tese, a intrigante possibilidade genética de se prolongar a vida humana em algumas centenas de anos - com a ajuda de células-tronco embrionárias - por outro, o professor mexicano José Maria Cantú, presidente da Rede Latino-Americana do Genoma Humano, tornou-se o único palestrante a ser aplaudido de pé, ao defender a pesquisa do genoma humano para a criação de melhores medicamentos destinados, sem distinções, para quem precisa.
"Pesquisas genômicas podem melhorar consistentemente a saúde humana, mas deve-se atentar ao risco de que as terapias advindas desses estudos fiquem restritas a quem pode pagar por elas e não a toda a população, como seria desejável", disse o geneticista mexicano, que defende estudos para desenvolver medicamentos genéticos mais baratos. Antes, Cantú havia delimitado claramente as marcas das diferenças sociais entre os países, através de slides com fotos alarmantes da miséria humana.
Vida eterna é o que todos querem?
Um dos participantes mais festejados do evento, o simpático e bem-humorado John Harris, durante sua conferência Genoma, o valor e direitos humanos, conseguiu ir muito além do esperado pela imprensa local - que deu ênfase absoluta ao fato de que Harris, algumas vezes, teria afirmado acreditar que a ciência conseguiria levar o homem à imortalidade. Basicamente, seu discurso sobre manipulação genética negou serem "imorais" ou "antiéticas" as pesquisas com células-tronco embrionárias, proibidas na maioria dos países.
Isso porque, de acordo com o professor - que é integrante da comissão de Genética Humana do Reino Unido e do Comitê de Ética da Associação Médica da Inglaterra - no processo natural de gravidez há a perda de muitos embriões, não percebida pelas mulheres. "Para cada bebê nascido, estima-se que cinco embriões sejam perdidos. O corpo procura os mais fortes. Tendo isso em mente, porque não permitir a manipulação de embriões em laboratório, que pode levar ao sacrifício de alguns?" , questionou.
Mais tarde, em entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp, Harris voltou ao tema "imortalidade", admitindo que os impactos prático e social dessa mudança de concepção na humanidade deveriam ser analisados com bastante cautela. "Sinceramente, não posso dizer que viver muito seria o desejo da totalidade das pessoas, nos diversos países e culturas. Posso falar por mim: tenho 57 anos e adoraria poder viver além de 157", brincou.
Países pobres. Beneficiados?
O aparente discurso otimista de Harris não foi totalmente compartilhado por outro participante da mesma mesa: Fernando Lolas, diretor do programa de Bioética da Organização Panamericana de Saúde (OPAS), colocou em dúvida se os avanços tecnológicos nessa área não serviriam para aumentar as injustiças.
"Será que nós, da América Latina, teríamos 'benefícios' semelhantes aos alcançados pelos países desenvolvidos?", questionou, sem resposta. Em contrapartida, considerou que "malefícios" envolvidos nessas pesquisas poderiam afetar o mundo inteiro. "Não estamos imunes às conseqüências desses trabalhos. Então, precisamos ser pró-ativos e entrar no debate", insistiu.
Claras diferenças
Extremamente bem divididos e democráticos, os temas do VI Congresso Mundial de Bioética conseguiram destacar as diferenças de pontos de vista entre países "centrais" e "periféricos" e as formas com que cada qual busca refletir a respeito de suas problemáticas particulares. "Os estudiosos da Bioética que trabalham em diferentes contextos sociais, com privilegiados/incluídos e desprivilegiados/excluídos, acabam por ter que enfrentar conflitos e problemas de origens, dimensões e complexidade completamente diferentes", já dizia Volnei Garrafa, durante a abertura do evento em 30 de outubro, no Teatro Nacional, em Brasília.
Na mesa redonda "Doação e Transplante de Órgãos", por exemplo, Leonardo de Castro, professor de filosofia da Universidade das Filipinas, surpreendeu, na defesa do programa Kidneys for Life (Rins para a Vida) no qual presos condenados à morte poderiam doar um de seus rins, a algum doente que espera na fila dos transplantes.
Mais tarde, em entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp, Castro afirmou que a possibilidade dessa espécie de doação deixou de existir há alguns anos e que ainda não voltou a vigorar, como gostaria. A maioria da população, admitiu, parece ser contrária ao projeto. Entretanto: "os presos das Filipinas, onde é aplicada a pena capital, teriam a chance de diminuir suas penas. Mas isso não seria o mais importante. A idéia é ética e defensável apenas se conseguíssemos ter a certeza de que o criminoso decidiu doar o órgão porque está sinceramente arrependido pelo seu erro".
Morrer ou não morrer. Eis a questão.
Do outro lado do debate, apareceram as opiniões relativas aos assuntos impregnados na realidade das nações do Primeiro Mundo. Em Morte assistida: os últimos desenvolvimentos, apresentaram-se versões diferentes de uma antiga reflexão humana: a Eutanásia.
O médico e professor de Ética holandês Jjm Van Delden considerou que a prática da eutanásia previamente requisitada pelo paciente - legal em seu país, em determinadas circunstâncias - deveria ser repensada, entre outros motivos, "porque não é possível para o médico ter a certeza de que um paciente com demência é infeliz e realmente deseja morrer, na época da concretização do ato".
Como contraponto, ouviu a posição do filósofo australiano Peter Singer, afirmando que "de acordo com a visão utilitarista (corrente à qual pertence), parece ser mais antiético praticar a eutanásia em animais com certa 'capacidade mental', do que em pessoas que aparentemente não 'possuem nenhuma'."
"Se as perspectivas de futuro de um ser conterão mais sofrimento do que prazer e se essa morte não tiver impacto sobre a vida de outras pessoas, um utilitarista não se oporia à ela", reforçou.
Aspectos científicos e morais
Se forem seguidas as tendências apontadas pelo VI Congresso, o grande desafio da Bioética contemporânea parece ser impedir que os avanços científicos ganhem mais peso e importância do que os morais e éticos. Enfim, acabem aumentando os patamares de Poder e de Injustiça.
Como ponderou o médico sanitarista e ex-senador Giovanni Berlinguer, presidente de honra da Sociedade Italiana de Bioética, em discurso de abertura do Encontro, no Teatro Nacional. "Da mesma forma que as descobertas podem clarificar novos aspectos da vida, as reflexões morais elaboradas nas fronteiras científicas podem ajudar a entender melhor e modificar atitudes com relação aos seres humanos e todos os organismos vivos".
Para ele, governantes, comunidades e indivíduos devem "ser estimulados a se encarregar de tomar ações apropriadas nesta direção, evitando e reduzindo práticas seletivas e discriminatórias relacionadas ao progresso científico".
Dezenas de entrevistas exclusivas
O Centro de Bioética do Cremesp esteve presente em todos os dias do Congresso e conversou, com exclusividade, com os maiores nomes da Bioética mundial.
Em breve, outras entrevistas completas serão disponibilizadas neste espaço. Fazem parte da lista, entre outros:
· Sólomon Benatar, presidente da Associação Internacional de Bioética (IAB, International Association of Bioethics);
· James Drane, médico e professor norte-americano, um dos maiores estudiosos em Bioética;
· Francesc Abel, médico e presidente do Instituto Borja de Bioética, Espanha;
· Ruth Macklin, filósofa, professora de Ética e ex-presidente da IAB
· Giovanni Belinguer, médico sanitarista e ex-senador italiano;
· H. Tristram Engelhardt Jr, médico e professor de Bioética da Rice University, Texas, EUA.
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