01-01-2014

Em nome da Ciência

Implacável, cientista chinês já formulou mais de mil denúncias sobre fraudes em pesquisas, principalmente em seu país

Durante os agradecimentos ao ser laureado, em 2012, com o Maddox Prize – prêmio criado pela tradicional revista Nature – o bioquímico e blogueiro chinês Fang Zhouzi reiterou que, em seu país, muitos membros da academia continuam se pautando por “superstição, pseudociência, anticiência e mau comportamento científico”. O Maddox é dirigido aos indivíduos “que promovem a boa ciência”, em especial “àqueles que enfrentam dificuldade ou hostilidade em fazê-lo”.

A situação denunciada parece longe de terminar, mesmo com o empenho implacável desse cientista que, só na última década, formulou mais de mil denúncias expondo plágio, falsificação de currículo, de credenciais e de fabricação de dados científicos, entre outras fraudes. “A motivação dessas pessoas não é o espírito científico, mas obter lucros por qualquer meio”, explicou, em entrevista exclusiva concedida o Cremesp, rara oportunidade aos ocidentais de compreenderem o alcance das ideias de Zhouzi, que opta por divulgar grande parte de suas descobertas em língua mandarim.

Como seria de se esperar, em virtude da missão de vida escolhida, o Science Cop (“Tira” da Ciência, apelido dado pela imprensa local e repercutido no mundo), contabiliza muitos inimigos. Talvez o mais declarado seja o urologista Xiao Chuanguo, que, além de processá-lo cinco vezes por difamação, tornou-se mandante confesso de ataque a Zhouzi em Pequim, no qual dois homens usaram como armas um spray químico e um martelo de ferro.

Pai de uma filha e casado com Liu Juhua – curiosamente, repórter sênior da agência de notícias Xinhua News, controlada pelo mesmo governo considerado pelo marido como “totalitarista” e “capitalista ao extremo”–, Zhouzi teme pela segurança da família. Por isso, divide o tempo entre a China e os EUA, onde possui residência permanente, em São Diego. “Mas nem os ataques nem as preocupações com retaliações profissionais farão com que eu me cale”, garante. Confira, a seguir, a entrevista, na íntegra.

Por Concília Ortona*

Centro de Bioética – No discurso feito ao receber o Prêmio Maddox, o senhor mencionou grandes desafios enfrentados pela China, no que diz respeito à ética na ciência. Por que o país parece tão vulnerável aos abusos de cientistas?

FangZhouzi – Os problemas da comunidade científica da China, a exemplo de muitos outros que acontecem em meu país, são causados pela combinação de dois fatores: totalitarismo e capitalismo extremo.

Como no totalitarismo não há espaço para a prática da democracia e nem a garantia de direitos individuais, os institutos científicos e educacionais não são independentes, e, sim, controlados por burocratas que nada sabem sobre ciência. E, submetidos ao capitalismo, os estudiosos tornam-se motivados não pelo espírito científico, mas por obter lucros por qualquer meio.

Cbio – Que tipo de ciência pode ser confundida com “superstição”? O que quer dizer quando menciona “pseudociência” e “anticiência”? Apesar de serem palavras diferentes, todas caminham em igual direção?

FZ – São denominações diferentes, mas com teores parecidos de possíveis prejuízos. Nessa área, superstições constituem-se em certas crenças antigas, não científicas, e ilógicas. Por exemplo, a tradicional medicina chinesa acredita que ossos de tigre, bile de urso e chifres de rinoceronte têm poderes mágicos – o que não faz qualquer sentido.

Pseudociência é traduzida por ideias não científicas, disfarçadas de ciência. Por exemplo, a medicina tradicional chinesa não é científica, mas o governo local empenha-se em retratá-la como “ramo científico” paralelo à medicina moderna, o que a torna uma farsa.

Anticiência é algo que nos leva a acreditar que os estudos possam causar mais danos do que benefícios às pessoas.

Cbio – A partir de que momento se interessou pela detecção, comunicação e divulgação de fraudes científicas, plágio, falsificação de currículos e/ou simples desinformação em estudos? Qual foi a principal razão?

FZ – Aconteceu há 13 anos, quando eu morava nos EUA, época do boom da internet. Pela primeira vez na vida, pude obter, facilmente, informações relativas à China. Fiquei atônito ao descobrir tantas fraudes científicas por lá, e nenhuma voz crítica contra elas.

Por isso, decidi me levantar e fazer algo a respeito, com o objetivo de ajudar no avanço saudável da ciência chinesa, além de levar a verdade ao meu povo. Danos causados por comportamento antiético na área atingem a muitos.

No mínimo levam ao desperdício de fundos públicos e provoca uma enorme injustiça em relação à pesquisa autêntica, bem como, um dano incalculável à reputação científica. Quando estudos antiéticos envolvem diretamente a saúde, prejudicam o paciente e a saúde pública.

Cbio – Tem noção de quantos “equívocos” encontrou em estudos? Poderia dar exemplos surpreendentes? Aliás, depois de tanto tempo esmiuçando fraudes, alguma ainda consegue surpreendê-lo?

FZ – Eu publico em torno de 100 casos a cada ano no meu site New Threads (encontrado em mandarim no endereço http://www.xys.org. Em inglês há o blog http://fangzhouzi-xys.blogspot.com.br).

Sim, mesmo depois de tantos anos, alguns casos ainda me assombram, por serem excessivos.

Por exemplo, recentemente um professor da Universidade Industrial Hefei (grande escola chinesa, com enfoque em Engenharia) publicou textos assinados em vários jornais ingleses, copiando ipsis litteris artigos e documentos de outros autores. Desde a primeira até a última palavra! No ano passado, descobrimos que, para obter uma cadeira acadêmica, Lu Jun, professor recém-contratado da ChemicalEngineeringUniversity, em Pequim, registrou publicações de outro Lu Jun, professor da Universidade de Yale, nos EUA. E por aí vai.

Cbio – Que tipo de métodos adota para detectar mentiras e omissões científicas?

FZ – Debruço-me sobre materiais que podem ser controlados e verificados online. Também tenho meus informantes (ou insiders, indivíduos que conseguem informações privilegiadas em empresas).

Cbio – O senhor obteve seu PhD na Universidade Estadual de Michigan, nos EUA. Além disso, manteve contato com cientistas de países europeus. Pode-se dizer que distorções e más-intenções em estudos e artigos científicos sejam generalizadas? Não devem ser características exclusivas da China e de seus pesquisadores...

FZ – A ciência é feita por seres humanos, passíveis de cometerem erros e de serem desonestos. É algo universal. Má conduta científica também acontece em outros países, mas em nenhum outro consegue ser mais grave e pulverizada do que na China, que vivencia situação bastante original.

Por isso, apesar de ter estudado em Michigan – e de passar por carreira científica na Universidade de Rochester, Nova York, e no Instituto Salk para Estudos Biológicos, Califórnia –, concentro meus esforços na China, onde o problema é mais grave, pois não se conta com um canal oficial destinado a monitorar, investigar e punir abusos científicos.

Nos países desenvolvidos, ao contrário, as normas são mais rígidas e há melhores formas de monitoramento. Por exemplo, para investigar comportamentos abusivos, o Departamento de Saúde e Recursos Humanos dos EUA tem o Office of Research Integrity (ORI) que, entre outras funções, dedica-se a promover políticas e regulamentos relativos à detecção, investigação e prevenção de má conduta em pesquisa, bem como acompanhar processos contra estudiosos e instituições.

Por sua vez, os países em desenvolvimento vivenciam realidades particulares, mas, de qualquer jeito, são mais vulneráveis a abusos. Alguns deles investem uma enorme quantidade de dinheiro em pesquisa, com a ambição de tornarem-se potências científicas. Não estou familiarizado com a realidade brasileira, mas sei que a Coreia enfrenta problemas semelhantes aos da China.

Cbio – É possível imaginar que pesquisadores percebam quando a pesquisa envolve erros de metodologia, plágio ou mentiras deslavadas. Por que persistem?

FZ – Porque a maioria dos artigos forjados e falsificados vai passar despercebida. Mesmo quando os trapaceiros são expostos, poucos receberão a sanção adequada. Se o risco é baixo, e o retorno, alto, por que não continuar falsificando?

Cbio – Que tipo de atitudes os pesquisadores médicos deveriam ter ao participarem de estudos, de forma a evitar cair na tentação de agir em proveito próprio?

FZ – Tenho exposto vários casos de fraudes na saúde, como tratamentos com medicamentos não comprovados cientificamente e/ou suplementos alimentares. Fico surpreso que o público seja tão facilmente enganado por propagandas médicas falsas.

A investigação médica deveria oferecer padrão mais elevado do que as demais, porque os abusos realmente causam muito mais danos do que benefícios. Os pesquisadores médicos deveriam manter isso sempre em mente.

Cbio – Apontando os erros alheios, o senhor ganhou muitos inimigos. Um dos desafetos assumidos é o compatriota e médico XiaoChuanguo. Qual foi o motivo da briga?

FZ – Os meios de comunicação chineses me chamam de “o homem com um monte de inimigos”. Uma vez, após um debate em um programa de televisão, o outro convidado me chamou de “o grande traidor chinês”. São denominações que não me alegram nem me trazem satisfação.

Em relação aXiao, é urologista na Tongji Medical School, Universidade de Ciência e Tecnologia de Wuhan, capital da província de Hubei. Ele inventou uma cirurgia para tratar pacientes de paraplegia e espinha bífida, por meio de redirecionamento dos nervos. É o tal do “Procedimento de Xiao”. Pois bem, ele divulga que a taxa de sucesso supera a marca de 85% e que, por isso, tornou-se “cirurgia padrão” na China, realizada em todos os principais hospitais locais. Na verdade, apenas um hospital privado, que foi fechado recentemente, fazia rotineiramente tal cirurgia. Por coincidência, um dos sócios era Xiao.

Ao entrevistarmos mais de 300 voluntários, descobrimos que a taxa de sucesso foi praticamente zero. Para dar uma ideia, depois da operação, as limitações de mais de 39% dos pacientes aumentaram. Quando eu trouxe o fato a público, em 2010, fui atacado por bandidos contratados por Xiao, que me renderam com spray e tentaram golpear minha cabeça com um martelo de ferro. Consegui correr, acertou no meu quadril, mas, felizmente, escapei com poucos ferimentos.

O lado bom dessa violência é ter chamado a atenção do Ministério da Saúde, que, finalmente, proibiu a cirurgia. Ela estava sendo testada também nos EUA em dois ensaios clínicos em Fase I (usando número reduzido de voluntários saudáveis). Foi cancelada, pois não resultou satisfatória. Também foi bom o fato de Xiao ter sido condenado a cinco meses de prisão, como mandante do atentado.

Cbio – Além desse ataque, já sofreu ameaças ou represálias? Incomoda-lhe ser conhecido como Science Cop (“Tira” da Ciência)?

FZ – Passei por esse ataque físico, ao qual reputo como tentativa de homicídio, e recebo muitas ameaças e ações judiciais. Em razão da minha atividade, minha esposa e filha também sofrem vários ataques pessoais e insultos. Também temem pela minha segurança, da mesma forma que temo pela delas. Mas não desejo e nem posso me calar.

Não gosto de ser chamado de “Tira da Ciência”, pois não tenho qualquer poder policial. Minha especialidade é a escrita científica, sobre a qual já publiquei mais de 20 livros. Sou apenas um cidadão comum, que fala a verdade.

Cbio – Falando em apelidos, seu nome de registro é FangShimin. Por que prefere ser chamado de Fang Zhouzi?

FZ – Em meu blog e em minhas denúncias, uso o pseudônimo FangZhouzi, que significa “um homem que dirige dois barcos”. Um é a ciência. O outro, a humanidade.

* Entrevista originalmente publicada na revista Ser Médico  nº 66

* Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp, especialista em Bioética e mestre em Saúde Pública (USP)


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