10-10-2009

Estamos em uma aula de bioética

Ex-presidente da SBB ministra uma “aula” exclusiva de Bioética e desmente a fama de “em cima do muro” dos bioeticistas. Confira!


Estamos em uma aula de Bioética

Essa é a impressão que fica, ao conversarmos com o cardiologista José Eduardo de Siqueira: com a facilidade adquirida durante anos como professor da disciplina na Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Paraná, o ex-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) explicou, com clareza, temas, por vezes, difíceis de se entender, como os limites da Autonomia – sim, eles existem! – e a importância de se exercitar a tolerância em debates bioéticos.

Tal exercício, no entanto, não significa indecisão: para o professor é incorreta a impressão de alguns sobre os bioeticistas, isto é, de serem pessoas que constantemente divagam, filosofam, e, ao final, se limitam a fornecer argumentos – nunca respostas.

Primeiro, porque Siqueira crê que a Bioética pode ser usada como um instrumento político de transformação. Segundo, por defender que não há somente uma, mas três formas de se responderem questões vinculadas a este universo: a maneira dogmática doutrinária, que surge a partir de convicções fundamentalistas religiosas; a liberal, segundo a qual quase tudo é permitido para o bem da Ciência; e a deliberativa, na visão de Siqueira, a mais adequada de todas – opinião, aliás, compartilhada por seu orientador de Mestrado, o bioeticista espanhol Diego Gracia.

Como sempre acontece neste tipo de evento, o professor Siqueira foi figura marcante e atuante no decorrer do VIII Congresso Brasileiro de Bioética, realizado entre 23 e 26 de setembro de 2009, em Búzios, Rio de Janeiro: entre outras atividades, proferiu curso sobre o Papel da Bioética no Mundo Globalizado, durante o pré-congresso; participou da mesa-redonda Bioética, Ciência e Tecnologia e Construção do Humano e da palestra Ciência como Tecnologia: O lugar da ética; além de coordenar a mesa-redonda Educação em Bioética, da qual participaram os também professores Susana Vidal (da RedBioética Unesco); Sérgio Rego (Fiocruz) e Margarete Rosito (Centro Universitário São Camilo).

Veja, a seguir, os melhores momentos da entrevista exclusiva  com o professor Siqueira:

* Por Concília Ortona

Cbio – Organizar Congressos e simpósios voltados a Bioética é algo importante?

José Eduardo de Siqueira – Considero estes eventos imprescindíveis porque, por um longo período, a Bioética teve uma vida exclusivamente acadêmica, isto é, era motivo de discussão de um grupo privilegiado de pessoas que opinavam e discutiam questões filosóficas.

Porém, sempre defendi que a Bioética precisa sair dos muros da academia e a pensar a realidade... Discutir sobre fronteiras do conhecimento, que envolvem temas como fertilização humana e clonagem, mas, também, questões persistentes vinculadas aos excluídos da sociedade e aos indivíduos que não possuem o mínimo necessário para a sobrevivência.

Enfim, penso que, como ética aplicada que é, a Bioética quer sim responder questões práticas. É justamente por isso que se torna tão instigante e apaixonante.

Para tudo isso são necessários plenários de discussão, já que as pessoas sempre se entusiasmam em se manifestar a respeito de problemas que tocam o ser humano, dilemas ligados às – difíceis – tomadas de decisões morais.

Cbio –  Há quem diga que os bioeticistas ficam sempre “em cima do muro”, apresentando somente argumentos – e nunca respostas... Pelo que o senhor diz, é possível responder questões envolvendo tais decisões morais?

Siqueira – Sua pergunta é fundamental.

Em minha opinião existem três maneiras de se abordar uma questão Bioética.

Há uma escola “dogmática doutrinária”, que apresenta respostas prontas. Precisamos respeitar esse grupo, mas, na maioria das vezes, seus argumentos surgem a partir de algumas posições fundamentalistas religiosas.

Exemplo: várias correntes religiosas não aceitam, em hipótese nenhuma, qualquer tipo de fertilização in vitro, mesmo sendo homóloga, que usa os espermatozóides do marido e os óvulos da esposa. Consideram que só é permitido conceber pelos meios tradicionais.

Para defender seus pontos de vista adotam a argumentação de Tomás de Aquino e de Aristóteles, que defendem que a Natureza tem suas leis: existe uma chamada “lei natural” à qual nós, seres humanos, devemos simplesmente obedecer. Quando transgredimos, corremos riscos.

Essa é corrente equivocada por um simples motivo: a Bioética se constrói pela deliberação, por reflexões morais diferentes, na busca de um consenso possível.

Um segundo grupo, chamado “liberal”, conta com seguidores que consideram que tudo o que é possível se fazer pela Ciência deve ser feito – e ponto final. Entendem que a decisão da pessoa pertence a si – não há por que interferir ou deliberar quanto a ela.

Se o indivíduo quiser comercializar um rim, por que não? Se quiser produzir um embrião e vender, tudo bem...

Em minha opinião,  tal ética libertária também apresenta sérias restrições, visto que é impossível imaginar o ser humano isolado. A Autonomia absoluta, total, não existe: todos estamos interligados.

Aliás, o grande filósofo espanhol Ortega y Gasset respondia à pergunta “quem é você?” com: “Eu sou eu e minhas circunstâncias”.

Eu sou eu e você que está ao meu lado; e o meu filho; e a minha mulher; e a pessoa que eu estou vendo na rua....

Cbio– Se estamos tão interligados, qual seria o limite da Autonomia?

Siqueira – Veja bem: a Autonomia tem que ser exercida ao máximo, porém, há que se perceber que não é possível imaginar-se como um ser autônomo, como uma ilha.

Nesse sentido, podemos refletir sobre um caso real, que aconteceu com um expert em fertilização assistida. Durante acompanhamento a um casal infértil, ele chegou com algo que considerou como uma notícia extraordinária: “Olha, nem sempre isso é possível, mas conseguimos produzir três embriões, todos bastante bons. Podemos implantá-los que teremos sucesso. Ah! Todos são femininos”.

 “Joga fora”, o marido mandou.

Era o exercício da Autonomia dele. Mas pode se chamar de uma atitude moralmente correta?

Há outro exemplo público, que aconteceu nos Estados Unidos com o casal John e Luanne Buzzanca. Ambos eram estéreis: a mulher desenvolveu complicações devidas a endometriose, e o homem, não produzia espermatozóides maduros.

Como é permitido aos americanos comprarem sêmen masculino anônimo e óvulos humanos – aliás, é até previsto em contrato – ficou decidido que o material seria comprado para gerar uma criança, e usados os serviços de uma mãe de aluguel. Ao chegar ao oitavo mês de gravidez, o casal se separou...

A gestante esclareceu que não pretendia ficar com o bebê, pleiteando o pagamento combinado por ele, que era o de US$ 10 mil. Por seu lado, John Buzzanca também não quis, por considerar que não apresentava nenhum grau de parentesco com a criança. “Quem planejou essa história foi minha ex-mulher, não eu”. Luanne foi a única a concordar em assumir o bebê, mas, como não havia legislação específica no país sobre maternidade “social”, o caso foi à Justiça.

Em resumo: pela primeira vez na história da humanidade decretou-se que aquela era uma “criança sem pais”, algo que se manteve até seu quarto ano de vida!

Será o casal tinha o direito de criar uma confusão dessas, interferir com a vida de várias pessoas, apenas para garantir o exercício de sua Autonomia?

Sem dúvida, tal exercício precisa ser respeitado, mas é preciso cautela, porque pode se tornar algo egóico, egoísta e individualista.

Certa vez, John Watson, prêmio Nobel por descobrir a dupla hélice do DNA, que é um autonomista extremo, perguntou: “Qual é o problema de os pais escolherem a cor dos olhos  e a altura dos filhos?” Em outra ocasião, ele mesmo causou mal-estar, ao questionar: “Qual é o problema de se produzirem apenas mulheres bonitas?”

O grupo dogmático chega com a solução pronta. O liberal diz “faça o que você quiser”. Só que a sociedade não funciona assim...

Cbio – O senhor tinha citado que existem três maneiras de se abordarem as questões bioéticas. Qual seria a terceira?

Siqueira – A terceira corrente, na qual me incluo, é a deliberativa: reconhece que dificilmente teremos dilemas morais frente a uma decisão unânime, única, fácil e ótima.

Mas as decisões morais complicadas, que afloram nos comitês de Bioética e demandam reflexão, discussão, participação de um comitê multidisciplinar, com vários saberes, são tomadas a partir de pontos de vista razoáveis e prudentes. Nem sempre são as de consenso.

Para se chegar a elas, é preciso alto grau de tolerância e humildade, no sentido de acolher a posição do outro.

Temos que resolver: o século XXI ou será da deliberação, da solução em conjunto – ou não será. Querermos sempre decisões prontas, por sermos formados por um modelo cartesiano, que diz que existe uma solução para tudo – mas acontece que não é bem assim.

Exemplo: nos Estados Unidos o aborto é permitido em qualquer circunstância. O que aconteceu com a sociedade americana? Começaram a aparecer os grupos em defesa da vida, que queimam as clínicas que promovem aborto e matam os médicos. O grau de dissenso é enorme.

Quando partimos para uma deliberação, temos o direito de defender nossas próprias opiniões, mas é preciso ir preparados para acolher outra decisão e mudarmos de opinião.

Cbio – Falando de tolerância, em uma entrevista que fizemos com o professor Engelhardt (H.T, médico e filósofo americano, ja falecido), ele defendeu que a Bioética precisa ser tolerante e secular – apesar de ele próprio ser um cristão ortodoxo. Salientou que as pessoas devem aprender a conviver umas com as diferenças das outras...

Siqueira – Engelhardt tem razão, a Bioética precisa ser secular. As pessoas têm direito a sua própria religião, mas quando comparecemos a alguma reunião com reflexões de cunho ético, não podemos considerar a nossa opinião como algo acabado.

Quando colocamos uma criança em uma escola tradicional, ela é doutrinada, exposta a uma  catequese. É transferida a ela “a verdade”, como bem explicaram Piaget e Kohlberg, que orientará toda a sua trajetória.

Isso é intolerância – e não é algo restrito às crianças: acontece até na faculdade de medicina, da qual sou professor.

Quando discutimos casos de Bioética com estudantes de medicina, vários ficam irritados! Perguntam: “O que está escrito no Código Legal? E no Código Civil? Vamos acabar com essa conversa!”

Se em uma discussão de casos com residentes, focalizando paciente internado em UTI sem possibilidade terapêutica, perguntar a um aluno tecnicamente competente: “É razoável a interrupção das medidas terapêuticas?”, ele certamente vai responder “professor, fui treinado para defender a vida, a qualquer custo”.

Porém, se eu continuar: “Mas e essa pessoa que está aqui na sua frente?” e ele vai me dizer “não interessa, esta é a minha missão”!

Estamos discutindo vidas humanas! Conviver com normas é facílimo. A reflexão leva a decisões mais difíceis, porém, mais ricas. 

Cbio – Pelo que o senhor está falando, todos nós, de alguma maneira, somos intolerantes...

Siqueira – Fomos educados ao caminho da intolerância em todos os níveis, em todas as profissões.

Lembro-me, por exemplo, de uma mesa-redonda da qual participei no CFM, ao lado de um jurista. Discutíamos um protocolo usado em um hospital nos EUA sobre grávidas de anencéfalos que concordavam em levar a gestação até o final só para doar os órgãos dos filhos, num ato de doação fantástico. 

Naquela época, uns 15 anos atrás, se imaginava que o anencefálo seria um extraordinário doador de órgãos.

Quando mencionei esta possibilidade, o jurista deu um tapa na mesa e disse: “doutor, não vamos falar sobre esse assunto, pois não está contemplado no diploma legal”.

O que é isso? É intolerância!

Cbio – Há uma “Bioética de Intervenção” como defendem alguns? Durante entrevista concedida ao Centro de Bioética, Diego Gracia (bioeticista espanhol) disse que não acha, já que não é “um político, e, sim, um professor”...

Siqueira – Conheço muito bem o professor Diego Gracia, um intelectual, um acadêmico extraordinário... Mas não concordo com seu argumento de que não devemos usar a Bioética como um instrumento político.

Em seu livro ‘A Política’ Aristóteles argumenta que todo homem é essencialmente um ser político, pelo simples fato de viver em comunidade e estar em busca permanente de soluções para os problemas sociais de seu entorno.

É necessário respeitar todas as influências: é bastante interessante conversar com intelectuais americanos e europeus que refletem sobre as questões da ética grega, a respeito de como Aristóteles pensava... Isso é bonito! Só que nós, latino-americanos, temos um compromisso com a nossa realidade, que eles não conhecem! Não vivenciam como nós as questões da miséria humana, da pobreza, da violência.

Nisso, o próprio Diego concorda comigo, ao afirmar “estas são questões de vocês, são vocês que precisam resolver”. 

Há uma afirmação de Franklin Leopoldo e Silva (filósofo e professor da USP), que diz: “não há uma Bioética justificacionista”, que leve a pessoa a se limitar a observar o problema social, a justificar, e, depois, dormir confortavelmente em sua cama, com o ar condicionado ligado, e assistindo o programa que quiser.

Bioética significa ética prática, intervenção – não há espaço para uma bioética simplesmente reflexiva.

Cbio –  O senhor participou do texto que deu origem à Resolução CFM 1.805/06 sobre terminalidade (no momento, suspensa por decisão liminar). Essa questão vai avançar?

Siqueira – Debates que envolvem a terminalidade da vida nunca são fáceis, justamente porque, a todo o momento, tendemos a negar a morte.

Mas eu percebo que o que está se fazendo hoje é desumano: um número enorme de pessoas está sendo submetido a distanásia – agonia e sofrimento prolongados. Não é justo. Por isso sou um dos defensores desta resolução.

Acho que nós vamos aprovar isso, pois vai ser um benefício para a sociedade. Ai, os CRMs e o CFM podem exercer um papel extraordinário: o de promover a discussão continuada.

Cbio – Apenas para terminar... Que tarefas têm pela frente quem está iniciando hoje no universo da Bioética?

Siqueira – A Bioética é muito nova no país. A rigor, a SBB foi fundada em 1995, tendo, portanto, somente 15 anos de existência.

Uma de nossas próximas tarefas é levar os debates às escolas primária e secundária, às favelas, como ensino, respondendo questões bioéticas do tipo O que é respeito à dignidade do outro?

Será que todos sabem?

Certa vez, o Correio Brasiliense trouxe matéria sobre aquele episódio do índio Galdino, queimado em um ponto de ônibus por rapazes de classe média/alta. Durante depoimento, um dos acusados alegou: “não sabíamos que era um índio, achávamos que era um mendigo qualquer”.  

Quer dizer, um mendigo você  pode queimar?

Existe um estudo da Unesco que demonstra que jovens da classe média consideram menos ruim ofender, destratar, agredir, prostituta e homossexual do que pichar parede.

Então a Bioética tem a tarefa essencial de atingir o maior número possível de pessoas, em todos os níveis. De formar uma sociedade que contemple a cidadania. É preciso deixar claro, desde os primeiros anos, que o outro é igual a mim.

Mais opiniões do professor Siqueira

- A Bioética não é um exercício puramente intelectual: tem que intervir na realidade

- Em princípio, a Bioética é transgressora: há uma moralidade necessária na sociedade, sim, são necessárias regras morais. Mas a Bioética pretende, através da reflexão ética, avançar na construção de uma nova moralidade

- A rigor, a Bioética tem um compromisso com a realidade, pois é um instrumento que muda a percepção clássica da filosofia, de simplesmente refletir sobre idéias, sem responsabilidade de responder às demandas práticas.

- Algumas correntes religiosas erram, ao dizer: “se a mulher estiver grávida de um anencefálo é obrigada a levar a gestação até o final”. Tentam transferir a essas pessoas uma coisa que, para elas, acaba sendo um grande sacrifício. Transferir as suas verdades.

- Infelizmente começamos o século XXI muito mal, com o atentado de 11 de setembro e a resposta norte-americana totalmente dogmática, descabida e absurda. Tentou-se impor mudanças a um povo inteiro, e o que aconteceu? Muitas coisas saíram erradas, porque não houve nem tolerância nem deliberação.

* O professor José Eduardo de Siqueira é mestre em Bioética pela Universidad de Chile e doutor em Medicina e Ciências da Saúde pela Universidade Estadual de Londrina, onde atualmente leciona Clínica Médica e Bioética. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), 2005/2007 e é membro Titular da Diretoria da International Association of Bioethics (IAB). Faz parte do corpo editorial da Revista Virtual de Bioética Latinoamericana; da Revista Brasileira de Bioética e da Bioethikós, entre outras. Escreveu dezenas de artigos, entre os quais Human Vulnerability (ao lado de Marco Segre) no International Journal of Bioethics; e A Arte Perdida De Cuidar, na revista Bioética.

Confira também: 
Especial Congresso de Bioética em Búzios
Entrevista com Marlene Braz
Entrevista com Susana Vidal


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