16-10-2007

“Deveremos tomar cuidado para não cairmos no fundamentalismo bioético”

A passagem do bioeticista Diego Gracia pelo Brasil causou grande interesse entre quem gosta e/ou trabalha com Bioética

Pioneiro da área, Gracia transita por quase todos os assuntos vinculados a ela, mas se entusiasma ao abordar Justiça social e Medicina, além da obrigação ética aristotélica da Prudência. “Devemos ser prudentes, chegarmos a decisões maduras, pois nem sempre conhecemos o que é certo”  ressaltou em vários momentos de sua participação no VII Congresso Brasileiro de Bioética, promovido pela Sociedade de Bioética de São Paulo, regional da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), entre 27 de agosto e 1 de setembro de 2007, na capital paulista.

Gentil como sempre, o professor Gracia – que já havia concedido uma entrevista exclusiva ao Cremesp, durante o Congresso Brasileiro de Bioética de 2005 – concordou em falar novamente ao Centro de Bioética, em especial, sobre os  temas abordados em suas participações, na conferência “Bioética Clínica e Contexto Social”, e na mesa-redonda “Fundamentalismo na Bioética”. Aliás, ocasião em que polemizou, ao reconhecer: em quase todas as épocas de sua história, a Ética foi fundamentalista.

“Os que fizeram os sistemas éticos sempre se consideraram os ‘donos da verdade absoluta’ e tentaram impô-la aos demais”. E admitiu: “deveremos tomar muito cuidado para não cairmos no fundamentalismo da Bioética”.

Também falou sobre a Paz, um dos motes do Congresso, e ainda, a respeito da globalização, entre outros pontos. Veja, a seguir, a íntegra da nova conversa: 

Centro de Bioética: Em suas palestras, o senhor ressaltou as diferenças entre a aplicação do condicional “deveria” e da afirmação “deve”, em decisões de cunho ético. Quais são estas diferenças?

Diego Gracia – Temos um problema, tanto em Espanhol quando em Português: utilizamos dois tempos de um mesmo verbo para expressarmos intenções completamente diversas. Quando se fala em inglês I should do (deveria) e I must (deve) todo mundo entende qual é o sentido que estamos tentando dar.

De qualquer forma, o deveria e o deve não se identificam. Nunca conseguiremos sua união completa.

Observe: a Ética não trata do que é, e, sim, do que deveria ser. Do que cremos ser o ideal, daquilo que nos orienta corretamente. Por exemplo, quando vejo na televisão que um carro-bomba matou cem pessoas em Bagdá, penso “isso não deveria acontecer”. Não deveria, mas acontece.

Não há paz, mas deveria haver. É um paradoxo, mas a vida humana também o é. Como Aristóteles ensinava, sempre que há uma doxa (opinião, crença, em grego) existirá uma paradoxa.

Cbio –  Mas se sabemos que a paz é uma utopia, por que teimamos em perseguí-la?

Gracia – A paz é um valor intrínseco no ser humano, e temos a obrigação ética de buscá-la.

Podemos dizer que é um ideal convertido em realidade: provavelmente nunca conseguiremos viver em paz, e é justamente o fato contarmos com o fracasso o que nos obriga a continuar tentando – o que é tremendo.  

Por outro lado, tal como perseguir objetivos éticos, a realidade é bastante complexa: existem limites para se realizar o nosso deveria, inclusive, quanto àquilo que queremos. Ou porque não há meios econômicos, ou porque a própria matéria impede, ou devido à contingência das situações.

Uma coisa é o que deveria haver neste mundo. Outras são meus deveres concretos, o aqui e o agora.  Estou convencido de que os palestinos e os israelenses consideram que deveria haver paz, mas crêem que devem fazer a guerra, para defender seus territórios, suas pátrias...

Como diz Engelhardt (Tristam H., filósofo norte-americano), vivemos uma situação de estranhos morais. Acrescento, talvez de inimigos morais. Enfrentamos, então, o desafio de encontrar a paz em meio à diversidade.

Cbio – Os médicos, às vezes, sentem que deveriam dizer a verdade ao paciente, mas acham que não devem...

Gracia – É exatamente o ponto em que eu queria chegar. Nenhum médico quer mentir, todos sentem que deveriam dizer a verdade aos seus pacientes, mas crêem que, às vezes, não devem fazê-lo momentaneamente, por conta da existência de outros valores. Por vezes, há verdades passíveis de serem interpretadas como falta de respeito com as pessoas. Do tipo, “o senhor vai morrer... A senhora tem câncer...”. Há quem não seja capaz de resistir! 

Hoje talvez não deva dizer toda a verdade, amanhã ou depois, possivelmente sim. Veja: o importante é que o profissional reflita que se, em dada ocasião, por algum motivo justificável, não se atrever a dizer toda a verdade, isso não quer dizer que ele não sinta que deva dizer a verdade. Depende das circunstâncias.

Cbio – Falando-se em assistência. Em sua conferência, (Bioética Clínica e Contexto Social) o senhor disse que os médicos “têm obrigações morais, na hora de receitar remédios”. Quais seriam tais obrigações?

Gracia – Há obrigações morais, ainda que não reconheçamos.

Todos os que possuem um talão de receitas tomam decisões morais, a serem pautadas por  três definições técnicas claras. Os remédios devem ser, em princípio, eficazes, eficientes e efetivos.

Eficaz é todo produto validado por um método rígido, como um ensaio clínico, cujo objetivo é demonstrar se serve para solucionar algo. A eficácia nunca chega a 100%, mas é  avaliada como “maior” ou “menor”.

Quem gasta dinheiro público com um  produto que não demonstra eficácia comprovada estará cometendo uma injustiça.

Além da eficácia é preciso ser eficiente, os benefícios precisam superar os custos. E efetivo, isto é, ser eficaz em condições reais.

Por exemplo, na Espanha contamos com ampla imigração africana e, com ela, com a presença de muitos muçulmanos. A este público-alvo não é sábio receitar antibióticos a serem tomados a cada seis horas, em pleno Ramadan (mês sagrado dos muçulmanos em que os fiéis obedecem a jejum religioso do alvorecer ao pôr-do-sol). A prescrição será inútil, pois os pacientes não tomarão os remédios. É básico.

Cbio – E se, mesmo em dúvida quanto à eficácia do remédio, o médico receitar e o tratamento funcionar. Estará sendo antiético?

Gracia – Ainda assim, estará agindo errado. Esta confusão é freqüente, porque o clínico costuma experimentar com seus pacientes, acreditando fazer o bem – o que não é verdade.

Precisamos aprender a distinguir um ato clínico de um ato experimental, já que os dois contam com éticas distintas.

Porque, em clínica, devo utilizar um produto que se demonstrou eficaz no controle de sintomas, na cura de doenças, etc. Por outro lado, quando uso alguém em uma investigação, meu objetivo central é intelectual, não se presta ao benefício daquele paciente. A meta nem mesmo é se chegar ao bem ou ao mal, porque eu simplesmente não sei se medicamento é eficaz, se vai trazer o bem...

Pior, sei que pode fazer mal... Existe gente que morre!

Um ato clínico é completamente diferente de um realizado em investigação. Pelo primeiro, sei que posso ajudar uma pessoa, quando o estou promovendo. Pelo outro, sei que posso produzir  prejuízo, simplesmente para atingir meu objetivo intelectual. Os beneficiários poderão ser, quem sabe, futuros atendidos.

Hoje, a ética na investigação está muito bem organizada: deve-se informar antes – e muito bem – àquela  pessoa que poderá ser prejudicada; deixar claro que não sabemos se receberá benefícios.

Como reconhecemos que poderá receber o mal, o voluntário deverá decidir de maneira  totalmente livre se deve ou não participar do ensaio: não se pode manipular ou coagir, como fizeram os nazistas, na Alemanha.

Cbio – Curiosamente, no Brasil parece existir a tendência de se “desqualificar” os consentimentos informados, como se fossem algo a ser evitado. Ao que tudo indica, partiu-se de uma mentalidade de necessidade absoluta do consentimento para o contrário.

Gracia – Isso não ocorre apenas no Brasil. Muitos médicos encaram o consentimento informado como um papel, algo absurdo, negativo, que lhes rouba tempo, ou uma obrigação meramente jurídica, voltada a prejudicá-lo ou, eventualmente, a ajudá-lo num processo. Talvez porque não tenham captado a essência do consentimento.

Sob o ponto de vista ético, o consentimento informado – ou consentimento livre e esclarecido, como preferem alguns – é uma atitude.

Trata-se de uma mentalidade, de um novo estilo de relação com os pacientes, que se contrapõe ao antigo relacionamento paternalista, em que o médico tomava para si a responsabilidade e não informava nada, cuidando dos atendidos como se fossem criancinhas.

A partir do consentimento informado, passou a vê-los como pessoas adultas e detentoras de direitos. No momento certo, como disse anteriormente, o médico informa o que sabe a respeito da doença e indica tratamentos, considerando os valores dos atendidos. Tenta contra-balancear seu status e dividir com o assistido o processo de deliberação.

Cbio – Considerando-se o principio de respeito à Autonomia, as decisões relativas a tratamentos devem sempre levar em conta a opinião do paciente?

Gracia – A obrigação dos médicos restringe-se a fornecer argumentos para que o atendido adote sua decisão autônoma, o quanto possível.

Veja: as decisões prioritariamente devem respeitar os valores do paciente, e não os do próprio médico. Aqui, é bom reavaliarmos a alegação de “objeção de consciência”, bastante empregada hoje. É cômodo nos declararmos impedidos de acompanhar uma pessoa, com base em nossos próprios valores, e transferirmos correndo o atendimento a algum colega.

É possível que algo nos fira intimamente. Mas é raro: é mais comum que tentemos impor uma terapêutica. Ainda que não seja nossa primeira escolha, se em uma determinada circunstância identificarmos outras condutas possíveis àquele paciente, que concordem com os valores dele, não estaremos moralmente respaldados à alegação de objeção de consciência.

Cbio – Mudando um pouco de assunto. Em sua opinião, a globalização sempre é deletéria ao atendimento em saúde?

Gracia – Não me dedico muito a essa discussão. Mas a minha opinião pessoal é a de que a globalização é um processo irreversível: não há o que possa ser feito para barrá-lo. Se o processo for mesmo imutável, no entanto, deveremos globalizar além dos mercados, isto é, buscarmos uma globalização política e ética.
 
Uma globalização meramente econômica será um desastre: em nível internacional é preciso estabelecer regras que permitam a participação de todos em tomadas de decisões que causem maiores desigualdades entre o Norte e o Sul.

Cbio – Durante o Congresso Brasileiro de Bioética, além da discussão sobre Bioética Clínica, o senhor participou de mesa-redonda sobre fundamentalismo. Trata-se de um tema que deva ser inserido nas reflexões bioéticas?

Gracia – O Fundamentalismo já não é mais uma “doença”, constitui-se em uma epidemia. Começou com o fundamentalismo religioso, só que agora acontece em vários outros níveis: há o fundamentalismo de mercado; fundamentalismo tecnológico;  fundamentalismo político; o fundamentalismo na área ecológica...

Deveremos tomar muito cuidado para não cairmos no fundamentalismo da Bioética.

Aliás, em quase todas as épocas de sua história, a ética foi fundamentalista: todos os que fizeram os sistemas éticos se consideraram os “donos da verdade absoluta” e tentaram impô-la aos demais. E isso é fundamentalismo. Somos fundamentalistas em ética, ao defendermos nossos argumentos a qualquer custo. E, quando não consigo expressar-me com racionalidade, tento compensar com outros elementos, como com a agressividade.

Conforme disse durante a mesa-redonda, há um erro de lógica ao se considerarem os argumentos de alguém mais potentes do que realmente são. Os argumentos morais são empíricos e, portanto, não passam por técnicas demonstrativas, como fariam os matemáticos: o Teorema de Pitágoras, por exemplo, é indiscutível. Resta-nos aceitar. 

Sobre pontos de vista éticos, precisaremos sempre discutir; argumentar; deliberar; procurando soluções prudentes.

Cbio – É como o senhor costuma dizer: as decisões precisam ser prudentes, não necessariamente corretas.

Gracia – Sim, claro. Aristóteles já dizia que os atos morais devem ser prudentes.

Não só os atos morais, mas os atos clínicos demandam decisões prudentes. Nunca se exige uma decisão correta, pois o certo nem sempre é conhecido. O certo é o correto em geral. O prudente é o correto em uma situação concreta.

Ninguém obriga ao médico a não se equivocar, mas o próprio direito penal, bem como todos os códigos de conduta, exigem que seja prudente. 

Dou sempre um exemplo simples, que focaliza um condutor de um veículo, que pretende ultrapassar um caminhão: precisa levar em conta aspectos sobre a longitude do caminhão em relação ao carro; a velocidade de ambos; eventualmente, a distância do ônibus que vem de frente; a pressa... Em seu processo de deliberação, é preciso incluir os fatores possíveis.

Nem sempre, porém, a totalidade destes fatores é previsível. Enquanto está ultrapassando, o motorista pode sofrer um infarto. Levar uma picada de uma abelha e perder o controle da direção... O condutor do ônibus pode cochilar e cortar sua frente.

Isso nos faz concluir que posso me matar e/ou matar alguém, apesar de haver sido prudente, porém, posso sair ileso e não causar mal, mesmo sendo imprudente. De qualquer maneira, minha obrigação ética e moral é ser prudente, para diminuir o risco.

Cbio – Só para terminar. É possível tomarmos decisões prudentes em situações de extrema pressão?

Gracia – Decisões tomadas sob forte pressão não costumam ser prudentes e isso, em relação à clínica, traz enormes implicações morais. Sim, mesmo aquelas exercidas sob pressão devem ser tomadas em um tempo oportuno, nunca antecipadas, nem atrasadas.

Ao enfrentarmos situações difíceis, um bom caminho para elegermos o melhor curso de ação seria submetê-lo, por alguns segundos, a algumas provas.

Entre estas provas, à de legalidade: não se pode realizar algo ilegal. À prova de temporalidade: “se tivesse mais tempo, decidiria da mesma forma?” e à de publicidade:  “estaria disposto a defender essa posição em público”?

Mas é importante reconhecermos: não dá para analisar um conflito ético com uma história clínica ruim.

Novas frases do professor Gracia

- Segundo Aristóteles ‘a virtude está nos meios’. Um problema grave consiste em tentar reduzir os cursos de ação em apenas dois, porque escolheremos entre extremos e, portanto, entre os piores cursos de ação

- Toda pessoa que diz ‘tenho um problema ético’ quer dizer, ‘tenho um conflito de valores’

- Se um conflito ético não tem solução, não há como deliberar

- No mundo dos valores, somos todos analfabetos

- Decisões éticas, como todas as outras a serem tomadas, nunca são apolíticas

- A melhor maneira de demolir um comitê de ética é este querer acabar rápido com a própria angústia, usando respostas erradas

* Diego Gracia é psiquiatra e professor de História de Medicina e Bioética e diretor de pós-graduação da disciplina na Complutense Universidade de Madri e do Instituto de Bioética da Fundação para Ciências em Saúde da mesma cidade. É autor de diversos artigos e do livro Fundamentos da Bioética, de 1989.


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