O pediatra e geneticista Victor Penchaszadeh, chefe do departamento de Genética Médica do Albert Einstein College de Medicine, em Nova Iorque, possui trajetória de vida, no mínimo, interessante: na década de 70, esse argentino filho de imigrantes iranianos precisou se exilar na Venezuela, por conta de suas opiniões políticas contrárias à ditadura implantada pelo tenente-general Jorge Rafael Videla.
O fato de ser ele próprio vitima da repressão levou-o a dedicar-se aos direitos humanos e, em especial, ao tema da justiça em Saúde: unindo sua experiência em genética à causa política, Penchaszadeh contribuiu no desenvolvimento de metodologia voltada à identificação de crianças seqüestradas pelo regime militar argentino, e dadas à adoção ilegal aos “amigos” do sistema – prática denunciada pelas “Abuelas”, organização conhecida como Avós da Praça de Maio.
Na mesma época, início dos anos 80, a Bioética ganhava força nos EUA, atraindo o ex-ativista, que passou a estudá-la na Universidade de Colúmbia. “Meu primeiro contato com disciplina aconteceu bem antes, ainda quando lecionava pediatria no Albert Einsten College. Fui incentivado por bioeticistas entusiasmados, como Ruth Macklin” contou, durante entrevista exclusiva ao Centro de Bioética do Cremesp, concedida logo após proferir a palestra Impacto das Biotecnologias na Investigação de Saúde, durante o VI Congresso Brasileiro de Bioética, em 2005.
Em toda a conversa – aliás, como não poderia deixar de ser – o professor destacou seus pontos de vista igualitários. Afirmou, por exemplo, que a comunidade científica não deveria priorizar a clonagem, em detrimento de urgências, como a alocação justa dos recursos em saúde, e defendeu: “o genoma não deve ser patenteado, porque não foi criado por ninguém”.
Centro de Bioética – Como geneticista experiente, o que o senhor quis dizer em sua palestra, ao afirmar que a “relevância das influências genéticas no desenvolvimento de doenças está sendo exagerada”?
Victor Penchaszadeh – Que é tendência dos reducionistas ignorar que os genes não funcionam em um vazio. Ou seja, que a vida e morte dos organismos são conseqüências da interação do meio ambiente com a constituição genética.
Na maioria das vezes, tal determinismo genético baseia-se em enfoques pseudo-científicos, incentivados pelos interesses das indústrias biotecnológicas e farmacêuticas, cujo objetivo é buscar lucro, não melhorar a saúde científica.
Cbio – É por isso, então, que discorda da idéia de patenteamento do genoma humano?
Penchaszadeh – Quem inventou o genoma humano? Quem tem o direito de lucrar por conta dessa invenção?
O genoma do homem e de outras espécies não foi inventado por ninguém e, portanto, não deveria ser objeto de patentes. É uma questão de lógica. Por isso, brigamos para que a totalidade de suas implicações seja declarada como bem público.
Só espero que as aplicações da genômica não distraiam a atenção – e os recursos – sobre os fatores referentes ao meio-ambiente, como a pobreza, exposição a tóxicos e contaminantes, alimentação pouco saudável, que são as principais causas de doenças
Cbio – Seu interesse pelos temas da Bioética, em especial, pela questão da Justiça, partiu do fato de o senhor haver sido um militante exilado?
Penchaszadeh – Não exatamente. Meu interesse político e a minha atividade como militante pelo direito à Saúde e contra desigualdades sociais em Medicina me causaram problemas políticos com a ditadura da Argentina. O golpe militar de 1976 me obrigou ao exílio na Venezuela.
Morei naquele país por vários anos, até migrar aos Estados Unidos, quando já havia me especializado em Pediatria e Genética. Esse processo de mudança aconteceu justamente quando a Bioética começou a tomar vulto entre os especialistas norte-americanos, sobretudo, na década de 80.
Mas meu grande interesse sempre foi na questão dos direitos humanos, em especial, quando virei ativista de uma organização norte-americana chamada Médicos pelos Direitos Humanos.
Mesmo atuando na América, meu foco principal voltava-se ao tema da identificação e localização das crianças seqüestradas pela ditadura militar argentina.
Cbio – Então, o senhor conseguiu aliar sua atividade como geneticista à de militante?
Penchaszadeh – Sim, contribuindo no desenvolvimento de metodologia para identificação genética de crianças desaparecidas, procuradas desde 1984 por uma organização conhecida como Las Abuelas, ou “As Avós da Praça de Maio”.
Até agora, conseguimos localizar e identificar 84 pessoas que estavam em mãos de indivíduos vinculados aos organismos de segurança como a polícia, regime militar etc.
Hoje, são jovens adultos na faixa dos 25 e 26 anos, roubados dos pais e doados a simpatizantes da ditadura. Submetidos a adoções ilegais e baseadas em mentiras à sociedade e a eles próprios, coisa que deveria ser chamada de “apropriação” de criança, não de adoção.
Muitos deles tomaram a iniciativa de procurar a organização pois, por razões circunstanciais, consideraram que poderiam ser filhos de torturados e desaparecidos.
Cbio – O ato de possibilitar a identificação não causa, também, um dilema ético, por afetar enormemente a vida dessas pessoas?
Penchaszadeh – Com certeza, já que sabíamos dos dramas psicológicos e do trauma que uma descoberta assim seria capaz de gerar.
No entanto, apesar do trágico da situação, boa parte destes jovens se sentiu aliviada por recuperar a própria história. Vários se tornaram ativistas pelos direitos humanos, lutando pelo resgate da memória dos desaparecidos da ditadura.
Cbio – A disponibilização de tantos recursos genéticos não aumenta a distância entre países ricos e países pobres, já que muitos ficam de fora do acesso?
Penchaszadeh – Óbvio, levando-se em conta que 99% das tecnologias estão nos países desenvolvidos e industrializados.
Qualquer enfoque sanitário que se baseie exclusivamente em tecnologia exige o pagamento de direitos, regalias, patentes, encarecendo os produtos medicamentosos e, como conseqüência, elevando demasiadamente seu custo. Na prática aumenta-se, então, a enorme brecha já existente entre os que têm dinheiro e a maioria dos cidadãos, que não tem.
É por conta dessas diferenças que, neste momento, busco assegurar o princípio bioético da Justiça, com vistas a defender o direito de todos à Saúde, além de investigações biomédicas eticamente embasadas. Contra a comercialização e imposições não-éticas de condutas por parte da indústria farmacêutica norte-americana como, por exemplo, o uso de placebo em populações-controle de nações em desenvolvimento.
Enfim, sou contra a mercantilização da saúde em geral.
Saúde tornou-se praticamente sinônimo de venda de medicamentos, o que estimula a ganância da indústria farmacêutica e, freqüentemente, não melhora em nada a vida dos cidadãos.
Cbio – Falando em justiça em pesquisa. Na sua opinião, ser voluntário em estudos é o mesmo em países como a África e o Brasil e em outros, como os EUA?
Penchaszadeh – Não é. Porque nos países subdesenvolvidos os voluntários são, em geral, pacientes vulneráveis que não contam com outro acesso em saúde. Muitos se vêem obrigados a aderir a um protocolo como única maneira de acesso aos serviços de saúde, aos medicamentos, à proximidade e, até, aos números de celulares dos médicos.
Assim, é praticamente impossível uma voluntariedade real, quando existe pressão ocasionada pela necessidade de atenção médica.
Cbio – É factível a um médico que atua em pesquisa dar respostas éticas aos seus pacientes vulneráveis, à instituição onde realiza o projeto, e às companhias financiadoras da pesquisa?
Penchaszadeh – Não há porque um médico experimentar conflito de interesse ao lidar como situações como essa... Para evitá-lo, basta não entrar em cumplicidade com a indústria promotora da pesquisa, coisa difícil, mas não impossível.
O profissional sempre pode se apoiar nas estruturas de controle e regulação existentes em seu país, que precisam ser fortes e não-corruptíveis. Se for assim, tais estruturas garantirão a chance de os médicos negociarem com a indústria em termos adequados.
Ademais, os médicos, sobretudo, os que atuam em países em desenvolvimento, oferecem à indústria um “recurso” que a interessa sobremaneira: seus pacientes.
Então, não está “abandonado”. Se quiser, pode negociar, dizer “tal coisa eu não pratico”, apoiado pelos próprios Comitês de Ética em Pesquisa que, quando sérios e competentes, podem – e devem – negociar com a indústria.
De qualquer jeito, fora os laboratórios, existem outras fontes de financiamento de ensaios.
Cbio – Como um entusiasta da justiça em Saúde, o senhor defende compensação financeira a sujeitos de pesquisa?
Penchaszadeh – O voluntário deve ser compensado de alguma forma, mas ressarcimento monetário não pode ser o principal incentivo. Trata-se de um grande desafio àqueles que realizam pesquisa em países pobres.
Deveria ser regra que o Estado e os Comitês de Ética zelassem pelo cumprimento da ética, impedissem o induzimento, a compensação excessiva aos participantes e, também, aos médicos.
Os problemas provêm justamente do enorme montante em dinheiro que a indústria farmacêutica destina aos pesquisadores que recrutam pacientes. Isso é antiético, pois é raríssimo que os coordenadores de protocolos contem aos pacientes que ganham com cada voluntário recrutado.
Cbio – Os defensores de pagamento a voluntários argumentam que os envolvidos na operacionalização dos estudos lucram, de pesquisadores, as instituições e os laboratórios. Como esperar que quem “empresta” seu corpo à Ciência seja o único desprovido de interesses próprios?
Penchaszadeh – Não é discutível: deve haver benefícios aos voluntários. Mas o correto não é o pagamento para participar da pesquisa e, sim, algo como a garantia de provisão de medicamentos grátis, ou ao preço de custo, depois de terminado o estudo.
Trata-se de iniciativa que mereceria regulação adequada por parte do Estado. Os congressos e os parlamentos precisariam tornar obrigatório aos laboratórios que fazem estudo no Brasil, por exemplo, o fornecimento da droga em questão a todos brasileiros que necessitarem. Não apenas aos 100 ou 200 que participaram do ensaio, mas a toda a sua comunidade.
Lamentavelmente, isso não acontece. É só considerar as – muitas – pesquisas feitas na África e a total falta de remédios contra a Aids naquele país, aonde a doença leva à calamidade pública.
Infelizmente, a maioria das coisas que ocorrem neste mundo não é ética. Grande parte das guerras, das invasões, a violência, a corrupção... Nada disso é ético.
Cbio – Focalizando as indiscutíveis desigualdades em vários níveis, a agenda bioética deveria ser diferente em países latino-americanos e na África, em comparação às nações da América do Norte e da Europa desenvolvida?
Penchaszadeh – As prioridades são diferentes porque existem variadas situações sociais e em Saúde, bem como diferentes legislações no assunto e estruturas de classe.
No Brasil há problemas que não existem no Norte. O nível de equidade em saúde na América Latina e em outras nações subdesenvolvidas é o pior do mundo e seria esperado que o tema fosse prioritário. Portanto, é um contra-senso que um país como o seu se dedique tanto à reflexão sobre clonagem, por exemplo, enquanto a dificuldade é básica, é a alocação de recursos em saúde. Os problemas não podem (nem devem) ganhar a mesma dimensão.
Sob meu ponto de vista, em termos mundiais, a clonagem deveria ser o último tópico de uma lista de preocupações bioéticas. Lamentavelmente o que ocorre é que os assuntos que interessam ao Norte e aos ricos se impõem à sociedade em seu conjunto.
Na Europa Ocidental, por exemplo, há cobertura social em saúde bastante estendida. O tema “equidade em saúde”, por lá, também é mencionado, mas não amplamente debatido.
É curioso que, mesmo sem vivenciar tais dificuldades, há nações que não se isentam de discutir, por força da mentalidade cultural. A Inglaterra – que conta com um dos sistemas mais justos em saúde pública nacional, por ser gratuito e acessível a toda população – estabeleceu comissão governamental, cujo papel é formular recomendações “para diminuir as iniqüidades em saúde”.
Não estou dizendo que essa noção aconteça em todos os países do Norte. Os Estados Unidos são um dos países com pior eqüidade da Terra: cinqüenta milhões de pessoas não contam com nenhum ingresso aos serviços de saúde.
Cbio – Quais são os grupos mais vulneráveis e, portanto, que mereceriam mais atenção por parte dos bioeticistas?
Penchaszadeh – Em primeiro lugar, os muito pobres. Em segundo, os grupos étnicos minoritários. Em terceiro, mulheres, em todos os países. Em quarto, as crianças, as submetidas aos problemas mais graves.
No mundo, anualmente morrem milhares de crianças por razões prevenireis em 70% dos casos. São mortes que ocorrem justamente em meio aos grupos vulneráveis que acabei de mencionar: nas minorias étnicas e entre os muito pobres.
Há locais na África e na América Latina em que a população completa pode ser vista como “vulnerável”, salvo a elite absoluta. E isso é uma injustiça tremenda.
Mais opiniões do professor Penchaszadeh
- Do ponto de vista ético-profissional, diria aos médicos: se empenhem para serem excelentes em sua profissão. Em 2º lugar: não se esqueçam de que o paciente à sua frente está inserido num contexto familiar, social e populacional nem sempre favorável
- O determinismo genético que defende que qualquer traço do ser humano é definido pelos genes é uma das maiores armadilhas éticas da Ciência. É por esse caminho que se pode iniciar, por exemplo, discriminação no trabalho, caso se rastreie um gene de câncer nos candidatos. (Opinião esboçada durante o VI Congresso Mundial de Bioética, em 2002, em Brasília).
- Não se pode duvidar de que, no século XX, a genética esteve associada a políticas discriminatórias e até genocidas (...) Foi utilizada até para postular a existência de raças inferiores e para se restringir, nos anos 20 e 30, a entrada de imigrantes de certos grupos étnicos nos EUA. (Em entrevista à publicação argentina Ciencia Hoy)
- Ninguém poderia analisar todos os seus genes. Ninguém teria razão para fazê-lo; encontraria laboratório interessado em realizá-lo; ou dinheiro suficiente. (Em entrevista à publicação argentina Ciencia Hoy)
- Sustento que modificar as características de uma pessoa por razões não-éticas é uma ação a que os geneticistas não deveriam prestar-se. Os recursos da sociedade não deveriam ser dedicados a tais frivolidades. (Em entrevista à publicação argentina Ciencia Hoy)
* Victor Penchaszadeh, argentino radicado nos EUA, professor da School of Public Health of Columbia University ; chefe do departamento de Genética Médica do Albert Einstein College de Medicine em Nova Iorque e presidente do Comitê Assessor de Ciência e Tecnologia da OPAS/OMS – USA
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