O professor Arthur Caplan, titular de Bioética e coordenador do Centro de Bioética da Universidade da Pensilvânia, é um homem interessante: consegue, ao mesmo tempo, passar conhecimento e demonstrar fina ironia ao defender – veementemente, na maioria das vezes – seus pontos de vista progressistas.
Certa vez, na coluna que assina periodicamente no MSNBC.com (site da rede de TV norte-americana NBC), por exemplo, questionou de forma brilhante, polêmica e até divertida a “validade” da opinião de Laura Bush, em relação a pesquisas utilizando células-tronco embrionárias: “Lady Bush faz questão de afirmar que ‘seu pai morreu de Alzheimer’, mas que não acredita ou concorda que a cura deva ser obtida daquele jeito (exterminando embriões). Se nossa primeira dama lamenta pelas mentiras ditas pela Biomedicina, deveria acrescentar em sua lista de lamentações várias campanhas implementadas por nossas companhias farmacêuticas”.
Falando sobre o mesmo tema, novamente nadou “contra a maré” de seus colegas, classificando como “desnecessária” toda e qualquer tentativa de se acharem maneiras alternativas (leia-se, sem “matar” embriões) para a obtenção de células-tronco. E, de quebra, contestou o atual poder do – conservador – Conselho de Bioética do presidente americano.
Conhecido e respeitado nos EUA – já que foi o primeiro presidente da American Association of Bioethics e mantém-se como figura constante nos debates e embates televisivos vinculados a Bioética – o professor Caplan concordou em abrir espaço em sua agenda apertada e gentilmente concedeu, via e-mail, em 2005, entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp.
Confira, a seguir, o resultado:
Cbio – Recentemente cientistas propuseram alternativa menos controversa de se obterem células-tronco embrionárias, isto é, extraindo-se o material na fase de mórula. A proposta contou com o apoio do Conselho de Bioética da Presidência dos EUA, justamente porque embriões não seriam “mortos”. Por que o senhor se posicionou contra?
Arthur Caplan – É desnecessário buscar meios alternativos para conseguirem-se células-tronco embrionárias, já que há muitos embriões sendo destruídos diariamente em clínicas norte-americanas de infertilidade e estes poderiam ser direcionados às pesquisas.
O Conselho de Bioética da presidência dos EUA está simplesmente desperdiçando tempo ao se envolver em discussões do gênero, pois não existem razões éticas sensatas para fazer isso.
Cbio – Os conselheiros de Bush teriam perdido parte de seu poder quando a Califórnia aprovou, à sua revelia, plebiscito para a criação de fundo de US$ 3 bilhões, destinado a pesquisas em clonagem terapêutica?
Caplan – Sim, a opinião do Conselho em relação às pesquisas com células-tronco embrionárias é agora irrelevante. Seus argumentos não são persuasivos, não fazem mais sentido.
Deveria, então, direcionar seus esforços a outros assuntos.
É bom ressaltar que o papel do Conselho é apenas o de orientar o presidente e, por vezes, opinar indiretamente à nação, por meio da mídia. Não conta com o poder de, por exemplo, criar políticas em Saúde.
Cbio – O embrião possui, realmente, “status moral” a ser respeitado, como defendem uma parcela da população e alguns bioeticistas?
Caplan – Não entendo o que "eles" querem dizer ao falarem em “respeitar” o embrião. Rotineiramente, na natureza, embriões criados por atos sexuais são feitos e destruídos.
As clínicas de infertilidade estariam sendo desrespeitosas ou simplesmente imitando o processo natural no qual ocorre a reprodução? Perda de embriões é coisa que precisamos aceitar, porque isso acontece diariamente!
Se você quiser demonstrar respeito, não venda, não cozinhe, não use frivolamente para fazer um objeto de arte...
Talvez precisemos, sim, limitar o que pode ou não ser feito com embriões humanos, mas não acho correto tomar por base um eventual “respeito” a eles, pois isso pressupõe uma “dignidade inerente” à qual não creio que embriões possuem fora do corpo humano. Especialmente aqueles que contêm erros genéticos e biológicos, sem possibilidade de se desenvolverem em nada.
Se existir um “status moral” dos embriões estocados este se deve à sua potencialidade de se transformar em pessoas. Só que eles não SÃO realmente pessoas. Então, concordo que destruir potencialidades para salvar uma vida chega a ser uma decisão moral difícil, mas não deve ser considerado o mesmo que matar alguém para salvar outro alguém.
Cbio – Falando como coordenador de um do mais importantes Centros de Bioética dos EUA, qual seria o futuro das pesquisas com células-tronco embrionárias? Há razões para tanta esperança?
Caplan – Sem dúvidas, os estudos vão acontecer rapidamente. Tanto na Califórnia quanto em outros Estados onde a lei local permite, como New Jersey, e em várias nações, como Coréia, China, Índia, Grã-Bretanha, Bélgica e Cingapura.
Agora a questão deveria ser “devemos controlar essas pesquisas, de modo a serem revertidas a modalidades terapêuticas úteis?”
Respondendo à sua pergunta: esperanças, podemos ter. Mas não existem garantias de que terapias usando células embrionárias funcionarão. É esperar para ver.
Cbio – A população americana tem restrições verdadeiras no tocante a temas polêmicos como “destruição” de embriões; clonagem; aborto; homossexualismo, ou, de certa forma, é manipulada por governo, Igreja etc?
Caplan – Muitos americanos tiram suas conclusões a partir do que pensam seus líderes e igrejas. O governo também ocupa um papel marcante na formação de suas opiniões sobre certos assuntos.
Entretanto, há certos tópicos para os quais não há um “senso comum” por parte da nossa população, considerando-se que a maioria dos norte-americanos não tem conhecimento a respeito de clonagem ou engenharia genética, por exemplo.
Cbio – E as opiniões do próprio presidente? Em essência, seriam motivadas por razões ideológicas e religiosas, ou também existiriam pontos econômicos relevantes?
Caplan – Penso que são motivadas por posições ideológicas e religiosas, não por econômicas. Alguns outros conservadores movem-se por interesses econômicos ou privilégios, mas não o presidente.
E veja: além dele mesmo defender visões conservadoras, George W. Bush carrega uma dívida de gratidão para com seu eleitorado conservador. É bom lembrar que esses valores motivarão, durante os próximos quatro anos, todas as decisões envolvendo assuntos bioéticos.
Cbio – Como a população de estados dos EUA onde o aborto é regulamentado por lei está reagindo perante a expansão do pensamento conservador?
Caplan – Fazer aborto está ficando cada vez mais difícil e as discussões costumam ser desviadas para a questão da abstinência. Deve ser para disfarçar que pouco vem sendo feito para promover o controle da natalidade ou melhorar a educação sexual.
Mas há um consenso: em meses avançados de gravidez o abortamento é um problema moral importante.
Cbio – Falando-se em aborto: situação recente causou comoção em seu país, por envolver uma jovem deficiente mental que engravidou após ser estuprada dentro do asilo em que vivia. Jeb Bush, governador da Flórida e irmão de George W., se empenhou em nomear um “guardião” para o feto. Conseguiu?
Caplan – Engraçado que ninguém sequer perguntou ao governador por que não perdeu mais tempo preocupando-se em descobrir como a mulher havia sido estuprada, em vez de dedicar-se tanto a descobrir se o feto necessitava ou não de um guardião.
Mas Jeb Bush perdeu este caso: a corte ponderou, corretamente em minha opinião, que um feto não poderia contar com seu próprio guardião e que, portanto, não haveria razão para supor que um devesse ser apontado.
Foi nomeado um guardião para a moça, que decidiu que esta seria examinada por médicos. Os profissionais concluíram que ela poderia dar à luz com segurança, e isso aconteceu.
Cbio – O mesmo Jeb Bush participou de outra história trágica, referente ao “casal Schiavo”: o marido queria que as sondas alimentares fossem desligadas da esposa em coma vegetativa. Os pais dela opunham-se. Até o Papa se manifestou, dizendo ser “indigno” deixar de alimentar um humano. Como foi o desfecho?
Caplan – Trata-se de uma situação muito infeliz, também na Flórida, que vem direcionando uma enorme atenção a uma briga familiar. O marido, eventualmente, ganhará o caso, pois seu direito de solicitar a retirada do tubo é bem estabelecido pela lei americana.
Diga-se de passagem, o Papa foi responsável por boa parte da confusão.
Na cabeça do governador e de muitos americanos persistem algumas dúvidas referentes à ética e aos critérios médicos empregados para a remoção de um tubo alimentar. Isso demonstra que a Medicina e a Bioética não vêm fazendo um bom trabalho de educação pública, esclarecendo que nutrição artificial e hidratação constituem-se em tecnologias passíveis de interrupção, se a intenção for prevenir o sofrimento do paciente. É prudente, então, organizar uma conferência internacional abordando o tema.
Cbio – De alguma forma, questões sem um consenso possível como essa têm o poder de retardar o progresso da Bioética ou é exatamente o contrário?
Caplan – As discussões acaloradas dirigem-se a alguns assuntos, como clonagem; pesquisas com células-tronco, aborto... Só que estas não obscurecem o fato de que se pode chegar a um consenso possível, com base em argumentos éticos.
Nos EUA, a Bioética progrediu muito em várias áreas. Posso citar a valorização da privacidade do paciente; do direito dele de saber tudo a respeito da própria condição; da atenção durante experimentação humana, entre outras. Mesmo o direito de recusar tratamento médico é garantido, apesar do caso Schiavo.
Cbio – Comitês de Bioética em hospitais são importantes para ajudar na discussão (e, eventualmente, na decisão) de casos que conduzem a problemas éticos difíceis?
Caplan – São úteis apenas nos hospitais onde estão localizados. Eles podem funcionar, mas precisam de um mandato claro por parte da administração e do corpo de curadores do hospital.
Cbio – Para encerrar. Quais foram as grandes modificações pelas quais passou a Bioética desde seu início?
Caplan – A Bioética tornou-se mais internacional, com o desenvolvimento da International Association of Bioethics (IAB). Outras mudanças: hoje existem vários programas de mestrado, propiciando formação na área. Os estudantes contam com curso de Bioética durante a graduação e pós-graduação! Além disso, a criação de publicações como o American Journal of Bioethics, em plena expansão, é responsável pelo impulso.
Outras posturas interessantes do professor Caplan
Periodicamente, Arthur Caplan assina uma – bastante lida e controversa – coluna para o MSNBC.com, site da rede de TV norte-americana NBC. Confira, a seguir, algumas de suas opiniões expostas no endereço:
Sobre alimentar por sondas pacientes em coma irreversível
- Se você não quer receber sangue, respiração artificial, diálise renal, insulina, comida, bebida ou qualquer tratamento médico, pode recusar isso. E mesmo uma pessoa em coma permanente ou estado vegetativo pode exercer os mesmos direitos, se deixou algo escrito ou informou a decisão a um familiar próximo
- O Papa aponta que todos os indivíduos, mesmo aqueles em coma permanente ou estado vegetativo, merecem, como seres humanos, compaixão e cuidados. Mas erra sobre aquilo que confere “dignidade” aos doentes e moribundos
Sobre o filme Godsend (o Enviado), que mostra Robert De Niro como um cientista ganancioso, cujo trabalho é criar clones de crianças mortas
- Não existem verdadeiros cientistas tentando, em ilhas desertas, clonar bebês por diversão ou lucro. E mesmo se existissem sua chance de sucesso em produzir um ser humano seria remota, senão zero
- Obrigado Hollywood! Agora que americanos comuns estavam começando a entender o processo de clonagem você faz um filme capaz de assustá-los e paralisar, por vários anos, (o tratamento) de pacientes
Sobre o banimento de recursos à clonagem, pelo governo Bush
- Os US$ 25 milhões alocados pelo presidente a pesquisas com células-tronco embrionárias constituem-se em um valor extremamente baixo. Quase o mesmo que direcionou à medicina complementar e à medicina alternativa
- Bush diz que a destruição de embriões é errada, mas não nos esclarece se realmente crê que um embrião destinado à destruição em clínica de infertilidade, que reside hoje em uma placa de Petri, é moralmente igual a uma criança sofrendo por causa de diabetes juvenil ou a outra pessoa, que não pode andar devido a uma lesão na coluna vertebral
* Arthur Caplan é professor titular da disciplina de Bioética da Universidade da Pensilvânia, Filadélfia, EUA, onde também atua como diretor do Centro de Bioética.
PhD em História e Filosofia da Ciência, foi o primeiro presidente da American Association of Bioethics e coordenou várias comissões internacionais em Bioética, como o Comitê Consultivo sobre Clonagem das Nações Unidas (2002) e Comitê Consultivo sobre Segurança e Viabilidade em Transfusões de Sangue, do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA (1997-2001).
É autor de 23 livros – entre os quais Who Ows Life? (De Quem é a Vida?); Am I My Brother’s Keeper? (Sou o Proprietário do Meu Irmão?) e When Medicine Went Mad: Bioethics and Holocaust (Quando a Medicina Enlouquece: Bioética e Holocausto) – além de artigos publicados em revistas renomadas como Science; New England Journal of Medicine e Nature.
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