Por vários anos, Göran Hansson, professor emérito do Instituto Karolinska, em Estocolmo, Suécia, acostumou-se a ser figura das mais aguardadas por um seleto grupo de jornalistas vindos dos quatro campos do planeta. Missão da trupe: apurar o laureado com o Nobel de Fisiologia ou Medicina, que receberá medalha de ouro com a efígie do sueco Alfred Nobel, inspirador do prêmio e inventor da dinamite; diploma; e a quantia de oito milhões de coroas suecas (algo em torno de US$ 1,1 milhão). O mais importante: terá seu futuro profissional e acadêmico mudado pra sempre.
Na função de secretário-geral do comitê de escolha do Nobel de Fisiologia ou Medicina, entre 2009 e 2014, além de anunciar à imprensa, em cinco línguas, quem são os felizardos (já que a deferência e o dinheiro podem ser compartilhados por até três pessoas), coube a Hansson telefonar, minutos antes, aos próprios escolhidos. Tudo ligeiro, já que o Nobel de Medicina abre a série de anúncios dos contemplados em Economia, Física, Química, Literatura e Paz. Se parece complicado, vale imaginar que, entre 2004 e 2006, o sueco foi presidente do mesmo Comitê, lindando com os egos de 50 outros professores componentes da Assembleia do Nobel “que constantemente têm opiniões fortes” revelou, em entrevista exclusiva ao Centro de Bioética do Cremesp, publicada originalmente em 2015 na revista Ser Médico.
Segundo ele, que deixou o cargo em janeiro para assumir a secretaria da Real Academia Sueca de Ciências, no início das discussões o grupo “jamais concorda”, mas é frequente chegar-se ao consenso, “ao avaliar, em profundidade” os candidatos pré-escolhidos. Mas há decisões não unânimes? Em perguntas incontroláveis como esta, o professor prefere se sair com “Não posso responder, conforme nosso estatuto”. Aliás, discussões e documentos relativos à escolha do Nobel na categoria são mantidos em sigilo por – longos – 50 anos.
Confira, abaixo, a conversa com Göran Hansson, que atua ainda como chefe do departamento de Pesquisa Cardiovascular no Hospital Universitário de Karolinska – sua área de atenção são os mecanismos imunitários e inflamatórios da aterosclerose, pela qual ganhou vários prêmios, como da American Heart Association e da International Society of Atherosclerosis – e no Centro de Medicina Molecular da mesma universidade, e descubra como um pesquisador brasileiro pode chegar ao Nobel.
Por Concília Ortona*
Centro de Bioética – Qual é o trabalho do presidente do comitê que escolhe o Nobel de Fisiologia e Medicina? Qual é o trabalho do secretário-geral?
Göran Hansson – É o presidente quem lidera as reuniões do Comitê de Escolha do Nobel, em Assembleia geral no Instituto Karolinska. É eleito por período de um ano, podendo permanecer no cargo pelo máximo de três anos.
Já o secretário é o responsável pela organização dos trabalhos e o porta-voz do grupo que escolhe o Nobel. É eleito por três anos, mas seu mandato pode ser prorrogado por até 12 anos, cabendo a ele fazer os contatos com os premiados ao Nobel – inclusive, dar a notícia aos laureados –, e com a imprensa, consultores e outras partes da organização do prêmio. Diferentemente do que ocorre com o presidente, o secretário é funcionário da Assembleia do Nobel, que é autônoma em relação ao Instituto Karolinska. Dedica-se ao cargo em período parcial, em paralelo com seu trabalho como professor do Instituto.
Atualmente sou vice-presidente do Conselho de Administração da Fundação Nobel.
Cbio – Quais são os pré-requisitos para a nomeação e escolha dos laureados? É preciso ser um gênio da pesquisa para candidatar-se ao prêmio?
Hansson – Para ser um sério candidato ao Nobel de Fisiologia ou Medicina o pesquisador deve ter feito uma importante descoberta. É realmente o único critério. Nem liderança em universidade, nem publicações em periódicos de alto impacto, contam na escolha: o Comitê do considera apenas importantes descobertas.
Outra regra essencial: a pessoa não pode se auto candidatar ao Nobel, pois tal escolha nem será considerada.
Tudo começa quando o Comitê convida membros de academias científicas de todo o mundo, professores universitários, e pessoas já laureadas, a nomearem pesquisadores promissores. Ou seja, adotamos como princípio solicitar à comunidade científica internacional que aponte os candidatos, em vez pedir isso a organizações, já que descobertas científicas são méritos individuais, não de instituições poderosas.
Apenas para dar uma ideia da nossa dificuldade de escolha, em 2014 foram 380 indicações!
Cbio – Pelo estatuto do Nobel, os membros do Comitê não podem revelar detalhes da votação. Mas, de forma genérica, é possível citar casos em que boa parte dos votantes saiu decepcionada?
Hansson – Sempre há opiniões fortes, durante as discussões. Mas após todos os candidatos serem avaliados de maneira extremamente cuidadosa e minuciosa, muitas vezes conseguimos chegar ao consenso.
Não posso discutir casos envolvendo decisões tomadas durante meu período de participação no Comitê porque, conforme estatuto, nossos arquivos são mantidos em segredo por 50 anos.
No entanto, há livros que falam sobre prêmios controversos. Um exemplo conhecido é o Prêmio de 1923 aos canadenses Banting (Frederick) e Macleod (John), pela descoberta da insulina. Mesmo os dois ganhadores sentiram que outros mereceriam parte dos méritos, o que levou Banting a dividir sua parte do prêmio com Best (Charles), e Macleod, com seu colaborador, Collip (James Bertram)**.
Cbio – A profissão médica, em especial, em pesquisa, sempre envolveu muitos egos e vaidades. É comum nas decisões da Assembleia do Nobel e no Comitê que os votantes considerem sua própria área de atuação mais importante do que as demais?
Hansson – Os cientistas são seres humanos: nossa perspectiva é moldada a partir de nós mesmos e de nossas próprias atividades. Portanto é notável que esse viés consiga ser posto de lado na escolha para o Nobel. Apenas o mérito científico é considerado. Seria mesmo considerado de mau gosto entre nossos pares argumentar para a concessão ao nosso próprio campo.
Cbio – No decorrer da escolha do Nobel de Medicina os aspectos Éticos e Bioéticos das descobertas merecem a mesma relevância quanto os técnicos e científicos?
Hansson – Os prêmios Nobel são concedidos pelas descobertas científicas que mudaram paradigmas, e aumentaram nossa compreensão e nossas oportunidades de prevenir ou tratar doenças. Em geral, as técnicas não são consideradas, com exceção daquelas capazes de revolucionar a Medicina, como Ressonância Magnética por Imagem e Fertilização e Fertilização In Vitro (siglas em inglês, MRI e FIV, respectivamente).
Raramente pesquisas antiéticas conseguem levar a descobertas importantes. Além disso, a ética da pesquisa é apreciada com cuidado por Comitês de Ética, antes do início dos estudos.
Mas, veja: as análises e a ética dependem do momento histórico em que ocorrem, tornando as consequências de uma descoberta impossíveis de se prever. Por exemplo, pode-se argumentar que a bomba atômica foi construída com base em descobertas anteriores, premiadas com o Nobel, como a de Albert Einstein (em 1921, em Física, “pela explicação do efeito fotoelétrico”) e Otto Hahn (em 1944, em Química, “pela descoberta da fissão de núcleos pesados”). Não deixaram de ser prêmios éticos, apesar de resultados: o conhecimento é um benefício à humanidade, e teria sido muito errado não reconhecer a revolução na física anunciada por Einstein.
Para dizer a verdade, dois Prêmios Nobel em Fisiologia ou Medicina costumam ser criticados: o de 1926, concedido ao pesquisador dinamarquês Johannes Fibiger, sobre vermes “causadores” de câncer (teoria observada em ratos); e o de 1949, ao neurologista português Antônio Egas Moniz, pelo emprego da lobotomia. No primeiro caso, a descoberta nunca pôde ser confirmada por outros pesquisadores, e acabou por demonstrar-se incorreta.
A lobotomia foi abandonada, pelos efeitos colaterais graves, porém, não compreendidos à época da concessão: ao contrário, parecia um grande passo no tratamento da esquizofrenia. Poucos anos mais tarde foram desenvolvidos os neurolépticos, constituindo-se, estes sim, em uma verdadeira mudança de paradigma na psiquiatria.
Os dois casos ensinaram ao Comitê do Nobel a ir mais devagar e aguardar a confirmação do feito, antes de dar o prêmio. A cautela é criticada, mas, cremos justificada. Em relação a descobertas clínicas, também é importante seguir os efeitos em longo prazo do tratamento.
Cbio – No decorrer da história, qual foi o Nobel mais conhecido em Medicina?
Hansson – Provavelmente o concedido em 1945 Fleminig, Chain e Florey pela descoberta da penicilina. Curioso é que Alexander Fleming descobriu que um fungo teria efeito bactericida, chegando à penicilina, em 1923. Mas apenas em 1940, Howard Florey e Ernst Chain, da Universidade de Oxford, obtiveram a substância purificada.
Cbio – Em uma entrevista anterior, o senhor disse que, na fase contemporânea do Nobel, as áreas mais valorizadas direcionam seus estudos ao “DNA e à biologia molecular”. Ambas motivam muitos dilemas éticos e bioéticos. De que forma o Comitê lida com divergências religiosas, de governos e/ou, outras instituições?
Hansson – Mudanças de paradigma em Ciência podem tornar necessárias reavaliações políticas, bem como, de dogmas religiosos. Às vezes, tais dogmas podem manejados de forma tranquila pela comunidade científica. Bom exemplo disso foi a avaliação dos riscos com a tecnologia de DNA híbrido, em 1975, durante conferência em Asilomar, em Pacific Grove, na Califórnia. Em resumo, retomou estudos científicos sobre manipulação genética, após moratória decidida por um grupo de cientistas em 1974.
Esse período de interrupção foi fundamental e histórico, pois permitiu aos biólogos moleculares identificarem os riscos potenciais associados às tecnologias, avaliando-os e definindo regras para manipular o material. Tais normas foram inestimáveis e permitiram o uso da tecnologia do DNA híbrido de uma forma completamente segura em muitas áreas, inclusive, em medicina.
Por outro lado, há exemplos tristes envolvimento religião, regimes autoritários e ciência. O julgamento de Galileu Galilei pela Igreja, e à proclamação, pelo regime soviético, de que as teorias mirabolantes de Lysenko*** representavam “a versão correta” da genética, são os mais famosos. Ambos causaram efeitos prejudiciais à ciência e à sociedade.
Em uma democracia, os cidadãos têm o direito a informações relativas à Ciência, e seus representantes nos governos e parlamentos, o dever de legislar. Mas as decisões sempre devem se basear em conhecimentos validados, não em preconceito.
Hansson – Sim, absolutamente. Foi esse o tipo de pensamento que tivemos ao lermos, em publicações científicas, as descobertas dos receptores da imunidade inata, que trouxeram novas compreensões sobre o funcionamento do sistema de defesa do corpo humano. Foram publicadas na década de 1990, mas laureadas em 2011; e em relação à indução de células-tronco pluripotentes, divulgada em 2006, mas premiada em 2012.
Cbio – Em entrevista anterior, o virologista Robert Gallo admitiu haver ficado “aborrecido e surpreso” por não compartilhar o Nobel 2008 com os outros descobridores do vírus HIV. Essa decisão do Comitê chegou a ser contestada em carta endereçada à revista Science, e assinada por mais de cem cientistas de renome. Como costuma ser a reação do grupo de escolha, ao defrontar-se com críticas de não laureados?
Hansson – Ficar chateado por ser agraciado com um Nobel é uma reação muito humana: entendemos esses cientistas. No entanto, nossas decisões surgem de avaliações muito cuidadosas, tanto dentro Comitê Nobel quanto por nossos especialistas em todo o mundo. Sentimos um forte apoio da comunidade científica internacional quanto à integridade da avaliação.
Em relação à Gallo, revisamos nosso próprio trabalho com muito cuidado, mas decidimos não mudar a decisão apenas por motivação das discussões na mídia. Além disso, nosso estatuto social nos impede de trazer a tona avaliações, atas e relatórios em que as nossas decisões são tomadas.
Cbio – Em entrevista bem-humorada, a então já quase octogenária neurologista italiana Rita Levi-Montalcini, Nobel de Medicina em 1986, afirmou: “não é que existam poucas mulheres cientistas. A realidade é que vários descobrimentos científicos atribuídos a homens foram feitos por suas irmãs, esposas e filhas”. Por que, em mais de cem anos do prêmio, apenas 11 mulheres foram laureadas?
Hansson – É uma pena que as mulheres não contavam com igualdade de oportunidades para estudar, fazer carreiras em ciência e outros campos, e de receber o crédito por suas próprias descobertas.
Na primeira metade do século 20 poucas mulheres tiveram a chance de seguir uma carreira científica e apenas na década de 1960 e 70 se iniciou certo equilíbrio de gênero nas universidades e laboratórios de pesquisa.
De 1901 a 1950, apenas uma mulher, Gerty Cori, recebeu o Prêmio Nobel de Medicina.
De 1950 a 2000, mais cinco foram adjudicadas: além de Rita Levi-Montalcini, constam Rosalyn Yalow, Barbara McClintock, Gertrude Elion e Christine Nüsslein-Volhard. Desde 2000, mais cinco mulheres já receberam o Prêmio: Linda Buck, Françoise Barré-Sinoussi, Elizabeth Blackburn, Carol Greider e May-Britt Moser.
Felizmente, os tempos estão mudando, chegando-se a um equilíbrio razoável em muitos países, embora não em todos. A melhoria de oportunidades ao gênero feminino se reflete, sim senhora, nas estatísticas do Prêmio Nobel, reconhecendo que muitas descobertas importantes são feitas pelo sexo feminino. É uma mudança notável e sem quaisquer quotas por gênero.
Cbio – Na história do Nobel, a maioria dos vencedores é americana – ou de naturalizados norte-americanos – e de europeus ocidentais. Por que a primazia na investigação está nas mãos de cientistas desses países?
Hansson – Explico assim: a Europa Ocidental possui a mais longa – e bem-sucedida – tradição e trajetória em ciência no mundo. Já os EUA, na era pós-guerra, investem mais em ciência do que qualquer outro país ou região e seu “time” foi reforçado pela chegada de muitos refugiados, cientistas e outros, que fugiram da perseguição e guerra.
Cbio – Para finalizar: como incentivaria pesquisadores médicos brasileiros a pensar no Nobel? Diferenças de linguagem são impedimentos? (Apenas para lembrar: Carlos Chagas foi indicado oficialmente em 1913 e 1921)
Hansson – Não considero a língua um impedimento em Ciência, uma vez que publicamos nossos estudos em Inglês.
Cientistas brasileiros, como os dos demais países, precisam realizar um bom trabalho; dedicarem-se a problemas importantes em saúde; e manter elevadas exigências de qualidade da pesquisa. Além disso, o governo brasileiro e patrocinadores privados devem vislumbrar Ciência como um investimento em longo prazo, e certificar-se de promover um efetivo sistema de revisão por pares, na distribuição das bolsas de pesquisa.
* Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp, especialista em Bioética e Mestre em Saúde Pública (USP)
* N.da R. segundo historiadores, Bating claramente merecia o prêmio, mas a escolha de Macleod foi controversa: o primeiro chegou a se recusar a receber o prêmio ao lado do segundo, alegando que seu colaborador havia sido Charles Best, e que a única participação de Macleod na descoberta foi “emprestar seu laboratório na universidade de Toronto, enquanto estava de férias”. Consta que o Comitê ponderou por manter a nomeação de ambos, pois Bating tinha recebido bolsa de pesquisa financiada por Macleod. Mais tarde, tornou-se conhecida a história de que o romeno Nicolae Paulescu estava trabalhando em diabetes desde 1916, e que pode ter isolado a insulina – chamada por ele como “pancreatina” – um ano antes dos canadenses.
*** N. da R. – apadrinhado pelo ditador Stalin, o agrônomo russo Trofim Lysenko, nas décadas de 1920 a 1940 era partidário convicto da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos, decretando, em resumo, “a falsidade da genética.” Suas ideias levaram à perseguição de cientistas com pensamentos “ocidentais”, que eram demitidos e presos.
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