Ser transexual é uma escolha? Crianças percebem seu transtorno de identidade de gênero (TIG)? É ético possibilitar o início da transição para a mudança de sexo a adolescentes?
Questões sobre este tema delicado – e pouco abordado – voltaram à tona no Brasil, em julho, quando o Ministério da Saúde (MS) lançou, em 2014, duas portarias em 24 horas: a inicial, entre outros pontos, antecipava, de 18 para 16 anos, o emprego de hormônios a transexuais, e de 21 para 18, a operação, no âmbito do SUS. A norma seguinte derrubou a anterior, até a “definição de protocolos clínicos e de atendimento”.
Enquanto as discussões tomam forma no país, o Centro de Bioética do Cremesp entrevistou, originalmente para a revista Ser Médico, duas autoridades norte-americanas no assunto, que, além de explicações técnicas, transmitem pontos de vista de protagonistas dessa história: são transgêneros.
A primeira parte da entrevista focaliza a ginecologista Marci L. Bowers, 55 anos, (em 2014) que foi Mark até os 40 – tendo, inclusive, se casado e sido pai de três filhos. Figurando da lista dos “Melhores Médicos Norte-Americanos”, em 2002 e 2003, atualmente tem como expertise proporcionar mudança de sexo a outros homens e mulheres.
Na segunda, quem fala é o médico Ben Barres, 58 anos (em 2014), PhD e presidente do departamento de Neurobiologia da Stanford University School of Medicine. Com 42 ainda era Barbara e, apesar de hoje ser oficialmente homem, se indigna contra pares que sugerem “aptidão intrínseca” do sexo masculino à Ciência.
Em ambos os casos, pode-se observar o equívoco de restringirem-se as opções profissionais de transgêneros a determinadas carreiras.
Por: Concília Ortona*
Centro de Bioética – No Brasil, tentou-se antecipar o início do processo de mudança de sexo, algo derrubado talvez por pressões religiosas e/ou políticas. Um adolescente com 16 anos consegue saber, com certeza, se é transexual?
Marci L. Bowers – É vergonhoso e perigoso política e religião desempenharem quaisquer papéis na tomada de decisão médica.
De qualquer modo, sou sensível a tal questão: nos EUA, como em outros locais do mundo, vemos uma população cada vez mais jovem solicitando hormônios e cirurgia. Nem sempre são situações fáceis de se lidar, pois nosso juramento nos impede de tomarmos medidas, quando riscos excedem os benefícios.
Em geral, em transexuais, sentimentos confusos quanto ao gênero começam bem cedo, antes da puberdade, sugerindo a existência de uma base biológica de gênero. Só que é preciso cuidado: apenas ⅓ das crianças com comportamento não compatível com o sexo biológico vai se tornar um adulto transexual. Por outro lado, o agravamento do desconforto, pela puberdade, é altamente preditivo de identidade de gênero contrária.
Pela minha experiência, um bom momento o início da transição é a partir dos 17 anos, quando parece haver a combinação perfeita de idade, maturidade e apoio dos pais, necessários para resultados cirúrgicos e sociais bem-sucedidos.
Cbio – Quando a senhora percebeu que era mulher, depois de viver por tantos anos como homem? Houve horas em que pensou: “posso manter-me como marido e pai, e continuar feliz?”
Bowers – Sempre pensei em mim como do gênero feminino, mas não conseguia colocar isso em palavras: naquele tempo, nos anos 60, nem sabíamos a maneira correta de chamar esse tipo de comportamento: sentia-me esquisito, constrangido e sozinho em meus pensamentos. Bem que tentei dar um jeito de ser machão na adolescência, mas a “persona masculina” simplesmente não se encaixava bem em mim.
De forma inconsciente, sabia da disforia de gênero o tempo todo: muitas das minhas memórias mais antigas e pungentes vinculam-se ao travestismo. Por exemplo, lembro-me de minha mãe chorando, em 1963, porque o presidente Kennedy havia sido assassinado, e ficar mais assustada ainda ao deparar comigo, com cinco anos, com o vestido de chiffon amarelo da minha irmã.
Gostaria de ter feito a transição ao sair do ensino médio, aos 19 anos, mas faltavam coragem e dinheiro: o casamento e a chegada das crianças foram importantes em minha vida adulta, mas perpetuaram meu sacrifício por mais 21 anos, quando finalmente realizei meu destino como mulher. A verdade é que chegou a um ponto em que viver como homem parecia cada vez mais perigoso para a minha saúde mental.
Cbio – Talvez por preconceito, no Brasil os transexuais parecem ter oportunidades profissionais restritas: vemos dançarinos, artistas, cabeleireiros, maquiadores, mas (muito) raramente médicos ou professores universitários. É o mesmo nos EUA?
Bowers – Nos EUA, houve um relaxamento dos papeis estipulados por gênero, masculino e feminino, refletindo os avanços sociais conseguidos pela população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT). A ideia de que alguém possa ser transexual e funcionar como advogado competente, médico, ou piloto de avião, reflete tal mudança de atitude.
Vinte anos atrás, isso seria inimaginável: quem se classificasse como transgênero seria visto como mentalmente desequilibrado, na melhor das hipóteses, ou psicologicamente perturbado, na pior.
Cbio – A senhora já foi considerada por seus pares do Conselho de Pesquisa Americano como um dos “Melhores Médicos da América”. A que atribui tal reconhecimento?
Bowers – Durante os vinte anos em que atuei como obstetra era visto como um profissional compassivo e carinhoso, e esta reputação permaneceu em meu trabalho atual, como cirurgiã especializada em transgenitalização.
Depois de ajudar cerca de 2.500 bebês a nascer, fiz meu último parto em 2007: foi uma época maravilhosa. Sinto falta, principalmente, da intimidade do momento e da alegria de trazer o potencial humano ao mundo.
De certa forma, no entanto, mudar a genitália de alguém permite também uma espécie de renascimento para a verdade. Até agora realizei mais de 1.100 operações do sexo masculino para feminino e cerca de 250, do feminino para o masculino.
Cbio – Falando sobre este assunto, já enfrentou algum conflito de interesses, por ser transexual e possibilitar mudança de sexo a outras pessoas? Do tipo, “será que minha experiência influenciou na decisão deste paciente”?
Bowers – Engraçado... Sabe que ninguém nunca havia me feito esta pergunta antes?
Sinceramente não enfrento nenhum conflito, pois estou no fim da engrenagem: antes de chegar à cirurgia, os pacientes já vivenciaram todas as dúvidas e indefinições, abriram o jogo com familiares e amigos, com psicólogos e psiquiatras, além de terem usado hormônios do sexo oposto, durante, pelo menos, um ano.
De qualquer maneira, faço o papel de “advogado do diabo”, falando a respeito de prós e contras, voltando no tempo a respeito dos fatos que culminaram em sua decisão. Se ainda assim insistirem, estão prontos.
Ninguém nunca me acusou de haver interferido indevidamente, e quase nunca ouço algum paciente reclamando de que cometeu um erro. Na verdade, a pergunta mais fascinante talvez seja “por que há tão pouco arrependimento?”, que mostra o quanto o gênero é algo pessoal e, se estiver errado, impossível de se ignorar.
Cbio – O que diria a colegas que alegam “objeção de consciência” à cirurgia de mudança de sexo, comparando-a à “mutilação”?
Bowers – Machos e fêmeas são biologicamente bem mais parecidos do que diferentes. Todos surgimos como embriões do sexo feminino, e os sinais biológicos e hormônios que alteram nossos caminhos na região genital são bem discretos. Na realidade, o que nos separa na infância são os limites trazidos pelas expectativas sociais em relação a meninos e meninas.
Além disso, há um grande número de bebês nascidos com condição intersexual, com genitália nem essencialmente masculina nem feminina. Como a sociedade mantém-se desconfortável com algo que não seja estritamente masculino ou feminino, logo após o nascimento chamamos rapidamente especialistas, para suavizar essas – confusas – situações.
Assim, a partir de uma lógica biológica, pode-se ver porque faz tanto sentido oferecermos mudança de sexo, quando esta se traduz em melhoria da qualidade de vida: transexuais são mais felizes após a transição – isso é fato. Comparar-se essa lógica a mutilação ou a fetiches referentes à amputação, corresponde a uma tática para assustar os desavisados.
É como alertar os pacientes de que a remoção do apêndice pode levar à doença de Alzheimer.
Cbio – Já se sentiu discriminada por colegas ou pacientes?
Bowers – Se ocorrer alguma discriminação é idêntica àquela contra qualquer outra de nós, mulheres. Mas, pensando bem, médicas lidam com dificuldades específicas: certa vez, uma paciente solicitou um “cirurgião de verdade”, enquanto eu lhe explicava detalhes de sua histerectomia. Da outra, me peguei usando mais calças e jaquetas, a fim de ganhar mais credibilidade profissional.
Recentemente fui apresentada por um colega como “Esta é a nossa médica transexual”. Já pensou como pareceria, se introduzisse alguém como “Este é o meu advogado judeu”. Ou: “Conheça o meu contador mexicano”. Ou: “Você vai adorar a comida preparada por nosso chef bissexual”.
Sim, enfrento mais tensões e desafios do que outros, em muitos aspectos. Mas, como profissional adequadamente remunerada, tive vantagens. Arcar com minha cirurgia foi uma: seria bem mais difícil para um transgênero que vive nas ruas, ou que trabalha em uma oficina mecânica.
Cbio – Por que decidiu ajudar, de graça, mulheres que passaram pela – terrível – experiência de amputação de clitóris?
Bowers – Em 2007, Nadine Gary, diretora da organização internacional Clitoraid, perguntou se queria aprender uma técnica desenvolvida em Paris por Pierre Foldes, para a reconstrução de clitóris mutilados por motivos culturais. Aceitei sem hesitar: é um pequeno sacrifício em repúdio a esse crime contra a humanidade.
Só anos mais tarde soube que mais de 30 ginecologistas haviam declinado. Existem céticos que duvidam da eficácia da operação, mas esta absolutamente funciona, pois, na maioria das vezes, boa parte do órgão permanece sob a pele. Ao apelar à técnica, em parte, as mulheres pensam na função sexual. Só que, principalmente, querem recuperar a identidade perdida. Geralmente se sentem violadas, envergonhadas e diminuídas.
Cbio – Como é sua relação com seus filhos? Hoje, a senhora diz preferir relacionamentos amorosos com mulheres, em vez de homens. Isso não leva a dúvidas de que sua essência continua sendo masculina?
Bowers – Meus filhos são fantásticos: a mais mais velha terminou a faculdade e a outra, se prepara para a escola de Medicina. Meu filho tem 17 anos, frequenta o ensino médio, e mora comigo. Felizmente, minha ex-esposa manteve-se como um grande apoio e amiga.
Depois da transição, eu saia exclusivamente com homens, e não tinha dificuldade em atraí-los. No entanto, com o tempo, descobri que faltava uma certa conexão emocional, pelo menos, em relação àqueles que conheci. Parecia ainda que se sentiam meio intimidados com a minha posição, como médica conhecida.
Seria melhor classificar-me como bissexual: a tal conexão emocional acontece atualmente com a mulher com quem vivo há cinco anos, que também é médica.
Barres: transexual feminista?
Cbio – O senhor é um cientista respeitado, sendo, inclusive, presidente do departamento de Neurobiologia, em Stanford. Por ser transexual, enfrentou mais desafios, comparado a colegas?
Ben Barres – Minha família, amigos e alunos têm me dado um apoio incrível, desde que anunciei a mudança de sexo, 16 anos atrás. Confesso que, na época, fiquei preocupado que minha carreira pudesse acabar, que os colegas não compreendessem, e os estudantes, não viessem mais ao meu laboratório.
Felizmente, meus medos foram exagerados. Não estou ciente de qualquer financiamento perdido; artigos não publicados; colaborações em trabalhos não aceitas; ou convites para congressos cancelados pelo fato de ser transexual. Não significa que não tenha havido alguma discriminação, só que, pelo visto, não foi relevante.
Minha situação pode ter sido diferente de outros, por viver na Baía de São Francisco, região receptiva dos EUA, e atuar em uma carreira onde é amplamente aceito que as diferenças humanas são fundamentais para impulsionar inovação e sucesso na academia.
É preciso considerar também que a transição me tornou um homem, em uma sociedade menos propensa a aceitar mulheres em certas áreas: a história de cientistas mulheres, transgêneros do masculino para o feminino, ou de gays, pode ser menos positiva.
Cbio – Quer dizer que é mais difícil ser um cientista do sexo feminino do que do masculino? É mais difícil ser mulher do que homem?
Barres – A cientista transexual Joan Roughgarden disse bem: em nossa sociedade, se você é mulher é considerada incompetente até provar o contrário. Se é homem é competente, até prova em contrário.
Portanto, ao longo de suas vidas, homens parecem contar com uma vantagem constante, enquanto as mulheres, uma desvantagem que também nem percebem, pelo menos, enquanto jovens. Essa diferença simples, em forma de expectativa social, pode ser suficiente para explicar diferenças de realizações entre homens e mulheres.
Cbio – Por que criticou colegas que diziam que “a razão pela qual há menos mulheres do que o homens em Ciência e em cátedras de Engenharia e Matemática é que mulheres não contam com níveis elevados de ‘aptidão intrínseca’, exigidos para essas carreiras”?
Barres – Larry Summers (economista norte-americano, secretário do Tesouro na presidência de Bill Clinton) e muitos homens antes dele, usaram o mote “quanto mais gênios, mais idiotas”, para argumentar que os cérebros masculinos são mais inconstantes, de modo que haverá um maior número de homens talentosos do que de mulheres talentosas. Não há estudos que suportem tal raciocínio e, de fato, há uma quantidade cada vez maior de informações contra ele.
Simplesmente não conseguimos prever o motivo de algumas pessoas se tornarem grandes artistas, cientistas ou inventores. Tentou-se avaliar, por meio de testes de QI e de matemática, mas acontece que vários ganhadores do Nobel não possuem QI de gênio, e muitos gênios não alcançam grandes feitos.
Cbio – No decorrer de seus estudos, o senhor encontrou –ou sequer procurou– alguma explicação na Neurobiologia do porque alguém nasce com o corpo contrário à sua essência?
Barres – É uma pergunta fascinante. É evidente que existem circuitos neurais que controlam e moldam os comportamentos específicos de gênero. Por exemplo, há evidências de que a exposição a hormônios sexuais exógenos (de causas externas), ou a produtos químicos chamados “disruptores endócrinos”, que imitam os hormônios, é capaz de perturbar o desenvolvimento de circuitos cerebrais e de alterar comportamentos específicos de gênero.
Estudos anteriores mostraram que as “filhas de DES” (meninas expostas, enquanto fetos, ao dietilestilbestrol, anti-neoplásico que inibe a secreção de determinados hormônios) são dez vezes mais propensas ao lesbianismo do que as demais. Além disso, há alguma evidência de que “filhos de DES” são mais propensos ao transexualismo.
Quando eu era um feto fui exposto a uma droga a base de testosterona, e suspeito fortemente que esta tenha masculinizado meu cérebro, como ocorre com fetos de macacas, masculinizando irreversivelmente o seu comportamento.
No entanto, para a maioria dos transexuais, não há histórico de tal exposição, sendo ainda um mistério o porquê eles são transgêneros: é muito provável que as variações genéticas seja a responsável.
Enquanto muitos consideram que ser LGBT corresponda a uma escolha, muitos de nós afirmam estar cientes de sua diferença desde crianças pequenas. Ninguém optaria livremente por enfrentar a angústia emocional e o prejuízo social que surgem de tal “escolha”, a menos que conseguisse viver de um modo coerente à sua identidade sexual inata.
* Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp, especialista em Bioética e mestre em Saúde Pública (USP)
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