Como você se sentiria se descobrisse uma vacina capaz de prevenir um câncer altamente prevalente, em especial nas regiões mais carentes de recursos? E se fosse um dos raros casos de cientista, ainda em pleno vigor profissional, a desenvolver uma droga desde a ciência básica, passando pelas quatro fases necessárias de estudos clínicos, e presenciando sua utilização em larga escala?
Não à toa o imunologista de origem escocesa Ian Frazer, 64 anos, inventor da vacina contra o Papilomavírus Humano (HPV), ao lado do imunologista chinês Jian Zhou, morto em 1999, recebeu do país para onde imigrou, 40 anos atrás, honrarias como “Australiano do Ano”, “Tesouro Vivo Australiano” e “Companheiro da Ordem da Austrália”. Fora de lá, entre os muitos prêmios, foi laureado com o European Inventor Award – espécie de Oscar da pesquisa mundial, no seu caso concedido por voto popular. Formado em Medicina pela Universidade de Edinburgh, na Escócia, Frazer é cirurgião e clínico renal, mas sempre se dedicou à pesquisa.
Produzida e patenteada em 1991, por ele e por Zhou, a vacina contra o HPV foi reconhecida anos mais tarde como “a primeira na história desenhada para prevenir câncer”. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), os dois imunizantes disponíveis, sob os auspícios da dupla, demonstram-se “muito eficazes” contra quatro cepas do vírus, evitando 70% dos cânceres cervicais – infecção viral mais comum do trato reprodutivo que, apenas em 2016, matou mais de 260 mil pessoas, 85% delas em nações pobres ou em desenvolvimento.
Engana-se, no entanto, quem pensa que as preocupações desse filho de um casal de pesquisadores clínicos restringem-se às quatro paredes dos laboratórios nos quais trabalha. Em entrevista exclusiva ao Centro de Bioética do Cremesp, publicada originalmente em 2017 na revista Ser Médico, ele deixa clara sua visão social, defendendo, por exemplo, que os imunizantes descobertos por ele (e outros ainda a caminho) sejam disponibilizados ao maior número possível de pessoas. “Você obtém o valor total das vacinas apenas quando efetivamente implantadas em todo o planeta”, afirmou. Para garantir tal fim, atuou, pessoalmente, junto a várias organizações, no sentido de fazer com que a vacina contra o HPV seja disponibilizada amplamente, como ocorre em mais de 120 nações.
Apesar da importância indiscutível do seu feito mais conhecido, outros protagonizados por esse professor das Universidades de Queensland (Austrália) e de Edinburgh (Reino Unido) também entraram para a história científica: seus estudos contra a hepatite B ajudaram a confirmar que o HIV era a causa da Aids, em 1984.
Atualmente debruça-se sobre pesquisas de imunizantes contra o herpes genital – a serem lançados em breve – e contra o câncer de pele causado pelo HPV, previsto para 2020.
Por Concília Ortona*
Centro de Bioética – Como se sente sabendo que o resultado de seu trabalho livrou da morte por câncer de colo de útero tantas mulheres ao redor do mundo?
Ian Frazer – Como pesquisador, fico bastante satisfeito que um esforço coletivo de várias pessoas, por meio da Ciência, tenha contribuído no combate de um problema global significativo e que atinge tanta gente, em especial nos países em desenvolvimento. Agora, temos apenas de fazer com que as vacinas cheguem lá. Talvez a minha contribuição nesse campo tenha sido mostrar a outros colegas a grande diferença que seu trabalho pode fazer. Mas não dá para deixar de mencionar que foi Jian Zhou, imunologista visitante em Cambridge, tão interessado em papilomavírus quanto eu, quem deu o norte para uma vacina, por meio de suas pesquisas com clonagem da superfície do HPV. Infelizmente morreu aos 42 anos, antes de o produto chegar ao mercado. Sob o ponto de vista pessoal, sinto-me contente pela decisão de desistir da carreira médica para me dedicar exclusivamente à pesquisa.
Cbio – Isso aconteceu por influência de seus pais, pesquisadores?
Frazer – Em minha mente sempre fui pesquisador, mas, obviamente, o interesse deles em Ciências me influenciou. Meu pai era médico patologista e passou boa parte da vida em laboratórios; e minha mãe era cientista, PhD em assuntos relacionados a nervos periféricos de pacientes com diabetes. Todos os meus três filhos são médicos, mas é cedo para dizer se eles também focarão seus trabalhos em pesquisa.
Cbio – Como um vírus consegue induzir o aparecimento de células pré-cancerosas?
Frazer – Os cânceres mais comuns não são associados a vírus. O HPV abriga o gene E7, capaz de melhorar sua aptidão replicativa, por meio de diferenciação celular: quanto mais divisões celulares, mais vírus. Tais replicações aumentam as chances de erros genéticos, que podem culminar em lesões. Além disso, o HPV codifica uma proteína capaz de dificultar o mecanismo de reparo do DNA, o que pode causar câncer. Qualquer vírus associado ao câncer pode ser evitado se houver um imunizante que previna a infecção por ele. As vacinas contra o HPV e a hepatite B (que, na prática, detém o câncer de fígado causado pela hepatite B) provaram que isso é possível. O mesmo, no entanto, não é tão simples com todos os vírus. Por exemplo, vacinas contra o HCV (vírus da hepatite C) e o HTLV-1 (vírus linfotrópico da célula T humana) são complexas de serem desenvolvidas. Já um imunizante contra o poliomavírus de Merkel, que leva ao câncer de pele de células de Merkel, ainda não conseguiu se provar efetivo.
Cbio – Existe algum produto curativo contra o câncer cervical? Quais são as dificuldades científicas para que isso aconteça?
Frazer – Vacinas curativas à infecção pelo HPV e aos cânceres associados ao mesmo agente estão em desenvolvimento. Contudo, o vírus demonstra-se bastante hábil para evadir-se desse tipo específico de resposta imunológica (das células T citotóxicas), necessária para matar células infectadas por ele, inclusive as células cancerígenas infectadas pelo vírus.
Cbio – No início dos anos 80, o senhor identificou que uma imunodeficiência que afligia homossexuais em São Francisco, nos Estados Unidos, também estava presente em homens estudados para a hepatite B. Em 1984, isso ajudou a confirmar que o vírus HIV era a causa da Aids. Como é fazer parte da luta histórica contra uma epidemia tão emblemática?
Frazer – Na verdade, desempenhamos uma pequena parte nessa história, mostrando que a supressão imunológica em pacientes com HIV/Aids consegue incentivar o surgimento de précâncer anal associado ao HPV. No início da década de 80, passamos bastante tempo realizando pesquisas sobre o vírus da hepatite B, no Instituto Walter e Eliza Hall, em Melbourne. Nessa tarefa, acompanhamos um grupo de homens homossexuais, à época, propensos a um alto risco de hepatite B crônica, e percebemos que em um número significativo deles o sistema imunológico não conseguia reagir à infecção. Em 1981, soubemos que casos semelhantes de imunodeficiência afligiam homossexuais em várias partes do mundo e, suspeitando de uma origem viral, eu e outros colegas testamos uma variedade de vírus capazes de levar a problemas imunológicos. Eu não trabalho com HIV/Aids desde a década de 1990. Neste momento, meus esforços direcionam-se à prevenção do câncer de pele e à compreensão de como nosso sistema imunológico ajuda a deter o desenvolvimento de câncer, com vistas a melhores tratamentos. Mas fico encantado que agora existam medicamentos para controlar o HIV e, em certa medida, impedir a transmissão do vírus de mãe para filho.
N.R.: Apesar da modéstia do pesquisador, atribui-se ao trabalho de Frazer a confirmação de que um vírus era a causa da Aids. Ele e seu grupo suspeitaram da origem viral da doença ao testarem um vírus, então recentemente identificado, o HTLV-III, que, mais tarde, passou a ser conhecido como HIV.
Cbio – Que aspectos bioéticos se vinculam ao desenvolvimento de uma vacina destinada a conter a propagação de um câncer que aflige principalmente indivíduos de países pobres?
Frazer – Sempre pensamos nessa vacina para ser destinada ao mundo em desenvolvimento, onde o câncer cervical é mais prevalente e, por isso, há potencial para fazer a grande diferença. Também é o local onde o rastreamento e o tratamento não estão prontamente disponíveis e, sendo assim, a prevenção sempre vai ser mais eficaz. Nossa universidade, Queensland, abriu mão de todos os royalties para as vendas das vacinas às nações mais carentes, possibilitando às empresas reduzirem os preços por lá. Isso é maravilhoso. Porém, reconhecemos que continua sendo uma vacina cara, pelas dificuldades de produção. A boa notícia é que se vacinássemos todos, o câncer causado pelo HPV praticamente desapareceria após imunização universal, da mesma maneira que ocorreu com o vírus da varíola.
Cbio – Quando a vacina contra o HPV foi disponibilizada pelo governo brasileiro, em 2014, houve certa surpresa entre uma parcela dos pais, pois a faixa etária alvo envolve meninas a partir de nove anos de idade – ou seja, foi preciso admitir o início precoce da atividade sexual. É algo típico de países de maioria católica e em desenvolvimento?
Frazer – A atividade sexual é um traço humano natural e usualmente começa muito mais cedo do que os pais percebam. E a Saúde Pública precisa levar em conta esse fato. Mesmo assim, os pais têm grande responsabilidade em educar seus filhos sobre sexo, quando esse é apropriado e quais são os riscos. Embora a raça humana dependa disso, alguns deles nunca gostam de pensar que seus filhos serão sexualmente ativos, e isso cria certos problemas quanto à aceitação da vacina em meio a determinadas faixas etárias. Na Austrália (onde a vacina contra o HPV é disponibilizada de forma gratuita) consideramos que 12 anos seja a idade certa para receber a vacina, antes do início da atividade sexual e, portanto, antes do risco de contrair o HPV. Se estivéssemos no sudeste da Ásia, aos nove anos seria mais seguro. De qualquer forma, nunca encontrei nenhuma religião em particular ou grupo religioso para os quais trabalhei, incluindo o de católicos, que negue a atividade sexual, por mais que isso possa ser contra os seus princípios. Todos reconhecem a fragilidade humana e que aquilo que eles gostariam de ver nem sempre é o que acontece.
Cbio – Além de meninas entre nove e 15 anos, recentemente o governo brasileiro expandiu a faixa etária de meninos a receberem a vacina contra o HPV, que passou a ser entre 11 a 15 anos. Também ampliou o público-alvo à parte de mulheres com HIV, pacientes oncológicos em quimioterapia e transplantados. Qual a importância dessa conduta?
Frazer – Aumentar a faixa etária do público masculino é uma boa conduta para melhorar a proteção de jovens contra os cânceres causados pelo HPV na boca e regiões genitais e, ainda, com vistas a aumentar a imunidade em rebanho (correspondente a benefícios da aplicação de vacinas recebidos por pessoas que não as tomaram) entre as meninas. Já as pessoas imunodeprimidas estão em maior risco de câncer associado ao HPV, sendo importante a vacinação antes de serem expostas ao vírus.
Cbio – Pelo menos três das doenças cujos agentes foram estudados pelo senhor – HPV, hepatite B e HIV – têm nas relações sexuais desprotegidas o principal meio de transmissão. Essa característica pode levar a discriminações, incluindo as de gênero?
Frazer – Não acho que gênero faça muita diferença para o cientista ou a indústria, geralmente interessados em conseguir benefícios para toda a humanidade. Creio realmente que a maioria dos pesquisadores faça seu trabalho para beneficiar a humanidade – ao mesmo tempo em que estamos curiosos sobre como as coisas funcionam. Também queremos que nossa pesquisa faça a diferença, justificando assim nossa oportunidade de fazê-la. Mas discriminação pode, sim, interferir no pensamento das pessoas quanto à priorização das estratégias de tratamento e prevenção – e essa é uma questão sociocultural mais bem resolvida pela educação. Esse é o caminho, quando o preconceito já está instalado.
Embate sobre patentes
Uma inesperada disputa sobre propriedade intelectual entre o grupo de Frazer, na Universidade de Queensland, Austrália, e a Universidade de Rochester, EUA, marcou o histórico da vacina contra o HPV.
Conforme disse em entrevista à Academia de Ciências da Austrália, “a pequena confusão” deu-se pela maneira como as leis de patentes funcionam nos EUA, onde as solicitações locais são examinadas antes das que chegam do Exterior. Apesar de o pedido de patente da vacina australiana ter sido feito em abril de 1991, a de Rochester, posterior, foi concedida antes – levando a uma situação que, na ocasião, Frazer assim definiu: “nós realmente não sabemos quem inventou primeiro, então, vamos ter de levar à Justiça para descobrir”.
Por isso, o reconhecimento da invenção da vacina aconteceu em tribunais – e apenas em 2007, bem depois da morte de um de seus protagonistas. “Obviamente, você não vai afirmar que fez algo, se acha que não fez. Tenho a convicção de que fomos eu e o Jian que ensinamos a tecnologia aos demais, já que divulgamos informações claras relativas à vacina em encontro científico, em setembro de 1991, e publicamos um artigo em novembro do mesmo ano”.
Resolvidas tais contendas, além dos pesquisadores da Universidade de Rochester, outros, do Instituto Nacional do Câncer e da Universidade de Georgetown, foram reconhecidos pelo campo científico depois, “por sua contribuição ao desenvolvimento da vacina contra o câncer cervical”.
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