14-10-2011

Diretivas antecipadas causam insegurança a médicos que lidam com pacientes terminais

Confira entrevista do –polêmico– médico holandês Johannes van Delden, especialista em final de vida


Pedidos de eutanásia com base em diretivas antecipadas –“testamento vital”, instruções escritas sobre final de vida, deixadas por pessoas ainda saudáveis– nunca foram atendidos por médicos holandeses, em casos de pacientes considerados “incompetentes” ou incapazes, que chegaram a um ponto tal de sua doença passível de prejudicar sua determinação.

Até certo ponto, a informação surpreende aos que consideram aquele país como exemplo de liberalismo, em temas relativos à morte. Foi transmitida pelo professor Johannes van Delden, da Universidade de Medicina de Utrecht e membro do comitê governamental da Holanda sobre Eutanásia, durante entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp, concedida logo após suas participações no IX Congresso de Bioética, realizado em setembro, em Brasília.

Como não poderia deixar de ser, suas falas versaram primordialmente sobre final de vida, assunto no qual ele é expert desde os anos 90, apesar de hoje acumular também funções diferenciadas, como a de coordenador do Council for International Organizations of Medical Sciences (CIOMS), voltado à Ética em Pesquisa.

Mas por que as diretivas antecipadas não são vistas pelos holandeses como instrumentos úteis a pacientes inconscientes? “Porque são inconsistentes com a Lei da Eutanásia” em meu país, ressaltou van Delden – postura, aliás, defendida desde 2002, quando as regras passaram a valer e época em que o professor participou do IV Congresso Mundial de Bioética em Brasília (veja outra entrevista).

Segundo ele, anos ou décadas podem separar as diretivas da fase de morte, levando insegurança ao médico em relação à circunstância da decisão – foi tomada de maneira informada e livre de coação? –e à motivação– é possível mensurar o que seja “sofrimento intolerável” de paciente que não consegue se expressar claramente?, ambos quesitos essenciais, impostos pela legislação.

Confira, a seguir, a nova entrevista com o simpático professor holandês:

 

 


Centro de Bioética – Afinal, a Eutanásia é ou não crime na Holanda?

Johannes van Delden – Pela Lei da Eutanásia de 2002, a eutanásia continua sendo ofensa criminal em meu país, a menos que o médico atenda a quesitos rígidos.

Determina-se que ele esteja convencido de que: o pedido tenha sido feito pelo paciente de forma voluntária e refletida; de que se trata de sofrimento intolerável e sem perspectiva de alívio; o paciente é bem informado sobre sua situação e perspectivas; de que a interrupção da vida será feita de forma profissional e cuidadosa e, juntamente com o paciente, estar convencido de que não há alternativa razoável ou solução para aquela situação.

Além disso, precisa ter a concordância de outro médico, por escrito, de que a morte é a melhor alternativa.

Depois de tudo isso, cada processo aberto deve ser informado a um comitê governamental, do qual participo.

Cbio – Há tempos o senhor insiste que as diretivas antecipadas são impossíveis de serem seguidas em certos casos. Mantém tal ponto de vista?

van Delden – O que eu disse no Congresso Mundial de Bioética, em 2002, e continuo afirmando agora, é que existem muitos problemas em relação a um trecho específico da Lei da Eutanásia, que ocorreram por desatenção dos legisladores: é extremamente improvável que o médico baseie sua decisão pela eutanásia em uma declaração deixada por escrito e, ao mesmo tempo, siga os quesitos determinados pela lei. É uma questão de coerência.

E, é até engraçado falar nisso agora, mas o que eu disse naquela época parece ser verdadeiro, pois, na prática, não houve nenhum médico holandês que tivesse concedido a eutanásia ou o suicídio assistido a pacientes incompetentes, com base em pedidos antecipados. Nenhum caso, zero, justamente pelos problemas a que ele estaria arriscado por não cumprir a lei.

Um dos critérios, por exemplo, determina que o paciente precise ser informado. Se este for incapaz na época da morte, você não consegue ter certeza disso. O profissional também precisa estar convencido de que a decisão é inflexível. Ora, a única informação que temos é o que o paciente queria antes, não o que ele quer agora.

De qualquer forma, as inadequações das diretivas antecipadas corresponderam apenas a um detalhe daquilo que eu apresentei no atual congresso, algo bem mais abrangente, que foi pois o Controle Social da Eutanásia.

Cbio – Em entrevista, o professor espanhol Jose Carlos Abellán, que dividiu consigo e com o professor brasileiro Léo Pessini a mesa sobre a Eutanásia, nos revelou: na Espanha, acontece a tendência de abandono do paciente pelo médico, por causa da Lei da Morte Digna. Segundo ele, por vezes, o médico se vê pressionado pela família e sociedade a interromper tratamentos, mesmo à margem do que a boa prática e a ética exigem.

van Delden – Você identificou um ponto interessante: também fiquei impressionado com as diferenças entre a Espanha e a Holanda nesses assuntos.

Talvez eu não tenha entendido bem o que o meu colega espanhol disse, mas parecia sugerir que os testamentos vitais são seguidos, sim, mas apenas aqueles que não vão contra a lei, contra aquilo que chamou de lex artis (conjunto de regras consagradas pela prática médica no estágio atual), e por objeção de consciência do médico.

Isso significa que, se existe uma indicação médica para tratar, normalmente o médico falará sobre ela com seu paciente, e esclarecerá “sim, seguirei suas diretivas antecipadas, contanto que isso não fira a lei, a lex artis ou haja objeção de consciência. Se isso acontecer, vou ter que tratar de qualquer forma”.

Não entendo por que, então, nossos colegas espanhóis se sentem desprestigiados e sem poder.

De qualquer forma, é claro que minha preferência seria que qualquer atendimento de declarações antecipadas fosse resultado de um processo, não apenas um ato simples.

Cbio – Com freqüência, o senhor relaciona a eutanásia à “dignidade” da vida. Em sua palestra, inclusive, destacou que a perda desta é um dos motivos mais alegados para as solicitações por abreviação da vida, ao lado da dor e do sofrimento. De acordo com sua experiência, o que é “dignidade”?

van Delden – Existem várias definições do que seja “dignidade” e todas conseguem ser diversas entre si e, ao mesmo tempo, defender argumentos sólidos. Ou seja, você pode usar a dignidade em prol da eutanásia, e usar o mesmo conceito para se contrapor à prática.

Quando eu falo em “dignidade” em eutanásia refiro-me à “dignidade pessoal”, aquela em que é a própria pessoa quem avalia o que significa a qualidade de sua própria vida.

Outros diriam, “não, não e não. Nada disso! ‘Dignidade’ é concordar que o ser humano é subordinado às leis de Deus e que, portanto, ninguém pode acabar com a própria vida, passe pelo que passar, porque estará indo contra as intenções do Divino”.

Cbio – Por que, na Holanda, não é possível atender às solicitações dos chamados tired of life os “cansados da vida”, indivíduos que querem morrer, mas não necessariamente pelo fato de enfrentarem doenças ou dor?

van Delden – Como enfatizei em minha apresentação, meu país percorreu uma via na qual o médico ocupa posição central no processo de Eutanásia.

O caminho pelo qual tateamos, já que a Holanda foi um dos primeiros países a discutir e legislar sobre o tema, nos levou à conclusão de que o jeito melhor para se lidar com esse assunto é medicalizar a eutanásia. Por isso, considerarmo-na como sendo coisa que necessariamente envolve médicos.

Significa que não apenas o paciente, mas também seu médico, precisa chegar à conclusão de que não há mais nada a ser feito em um caso específico. Tal pensamento fez com que aflorasse em nossa sociedade e, em especial, nos juízes, o sentimento de que existe aí, de fato, um conflito judicial, e que, de fato, deve haver motivos razoáveis para permitir a eutanásia, e obediência a critérios e exigências, para colocá-la em prática.

Na hipótese de se permitir a eutanásia aos “cansados da vida”, pessoas que estão sofrendo, mas não necessariamente têm doenças graves e/ou quadros terminais, teríamos que começar tudo de novo, voltar à década de 70 e questionarmos que tipo de regulação gostaríamos de adotar para tirar essa posição central dos ombros do médico.

Acho difícil retornarmos a esse patamar, pois, creio, nos países baixos atingimos o máximo o que conseguimos sobre o assunto.

De uma forma, ser o primeiro em um determinado campo também coloca limites àquilo que podemos ou não fazer.

Quem está vindo depois aprende com a experiência daqueles que lhes precederam – e talvez consiga fazer as coisas de uma maneira diferente.

Foi por isso que eu terminei minha palestra dizendo "faça do seu próprio jeito".

Cbio – O senhor mencionou no Congresso que, nos anos 90, quando começou a trabalhar com fim de vida, acreditava que o médico preferiria suicídio assistido à eutanásia, evitando permanecer no papel central do processo, só que constatou, em estudo, que se equivocara. Responsabilizar-se pelas decisões faz parte da cultura do médico de achar que sempre sabe o que é o melhor para o paciente?

van Delden – Em parte isso consegue explicar o porquê de termos eutanásia, em vez de suicídio assistido.

Porém, também é uma conseqüência do jeito com que encaramos o final de vida. Medicalizando, colocando o médico em uma posição central, enfatizamos a idéia de que tomar conta de tudo faz parte da responsabilidade profissional.

Caso entendêssemos e fosse permitido que a decisão final fosse do paciente, certamente o médico preferiria o suicídio assistido, porque a opção se originaria da avaliação pessoal do indivíduo sobre a sua própria vida, não de minha avaliação médica. Se fosse assim, eu diria ao meu paciente: “não tenho razões para encurtar seus dias. É você que as têm, então cabe a você agir”.

Se colocássemos o paciente e sua autonomia em uma posição central no processo, talvez preferíssemos o suicídio assistido, argumentando: “estou disposto a ajudá-lo, mas se isso for sua própria decisão, então é justo que você se responsabilize pelos seus atos”.

Cbio – Além de ser membro do comitê sobre eutanásia, o senhor atende idosos, em uma casa de repouso. A partir de sua prática, pode afirmar que as pessoas mudam de idéia quando a morte se aproxima?

van Delden – Sim. (enfático)

Cbio – Isto é comum?

van Delden – Claro.

De fato isso é comum. Depois de receber o diagnóstico de, por exemplo, doença progressiva e ainda sem cura, como a esclerose múltipla, ou esclerose lateral amiotrófica (ELA), o primeiro pensamento de muita gente é “não quero levar isso à frente”.

Quando decidem esperar um pouco mais para ver como as coisas se desdobrarão, muitos pacientes mantêm-se contentes ou, pelo menos, não infelizes demais – e acabam mudando de padrão. Mais relaxados, acabam trocando de pedido, por: “se você puder me curar dessa pneumonia sem muita dificuldade, por favor, faça isso”.

Veja: ninguém está dizendo que essas pessoas qualquer dia no futuro não voltarão a pedir pela eutanásia. Mas, neste momento, se houver tratamentos comuns e razoáveis para algumas conseqüências da sua doença a opção será por viver.

Cbio – Com essas mudanças freqüentes de opinião, fica difícil considerar aquele paciente elegível à eutanásia. É preciso então boa dose de sensibilidade, por parte da equipe.

van Delden – A única coisa que você precisa ser é razoável: não é necessário alcançar uma certeza absoluta, mas sentir-se razoavelmente certo sobre a sua decisão.

Um pedido por eutanásia é algo que deve ser alvo de profunda reflexão, mas se o seu paciente, alguém que você conhece, insistir e disser com muita veemência e freqüência algo como: “ouça, eu realmente quero morrer” – ao que tudo indica, parece que é o que ele realmente deseja.

Tive uma paciente com esclerose que mudou sua decisão o tempo todo. Só que, em certo ponto da doença, ela teve pneumonia e disse conscientemente “não me trate”. Um belo dia deixou bastante claro que já era suficiente para ela. Não a tratamos – e ela morreu.

É claro que esse tipo de conduta é facilitado por minha posição privilegiada como médico de casa de repouso, o que me dá condições de conhecer profundamente cada paciente. É um contato capaz de tornar mais simples avaliar que direção tomar, em comparação aos colegas que atuam em prontos-socorros e hospitais e que correm para lá e para cá, lidando com dramas de pacientes que nem conhecem...

Cbio – No Brasil, está muito em voga a discussão sobre os Cuidados Paliativos, modalidade de atendimento que se tornou área de atuação por aqui. Por que o senhor considera que “no final de vida, o cuidado paliativo ajuda, mas nem sempre”?

van Delden – Bem... Porque até uma coisa ótima como o Cuidado Paliativo não é útil a todos.

Há realmente duas boas razões para que eu afirme isso.

Primeiro, parece até meio arrogante falar assim, mas existem profissionais que dão a entender que com cuidados paliativos qualquer tipo de sintoma será tratado, o que não é verdade, de forma nenhuma.

Já vi médicos dizendo coisas como “aconteça o que acontecer, eu sempre poderei amenizar a sua dor”. Isso não é verdade, simplesmente não é verdade e, pior, acaba criando falsas expectativas aos doentes e familiares.

A segunda coisa: reconheço que o cuidado paliativo consegue fazer muito. Na verdade, sou totalmente favorável a ele, especialmente por que atuo em casa de repouso onde, por vezes, é tudo o que podemos oferecer. Só que ao lado de tratar sintomas físicos, o médico deve dar atenção suficiente aos aspectos psicológicos, espirituais, que nem sempre são remediados com cuidados paliativos.

Isso significa que algumas pessoas vão dizer: “é legal que você esteja comigo em meu final de vida, use recursos para o meu tratamento, mas, de verdade, gostaria de parar com tudo agora. Não quero viver desta maneira, ficar dependente de outros”.

Cuidados paliativos são importantes em determinadas circunstâncias, talvez devêssemos até fazer ainda mais do que estamos fazendo agora, pois a área avançou bastante desde a década de 80... Mas, ainda assim, creio que, em determinadas circunstâncias, deva ser a pessoa aquela a decidir se quer ou não continuar sendo tratada e confortada, a partir de avaliação pessoal.

Veja aquele exemplo de Luiggi (italiano que, apesar de tetraplégico, sofrer dores e viver em uma cama, era líder em vários âmbitos na aldeia em que vivia), citado por um participante da platéia aqui do Congresso. Em sua visão própria, sua vida tinha sentido.

Se outra pessoa que não chegar ao mesmo tipo de conclusão, pode não querer ter mais dez anos de vida enfrentando situações gravíssimas.

Cbio – Sua opinião em relação a temas como final de vida, suicídio assistido e eutanásia, mudou desde a década de 90, quando começou a se dedicar a eles?

van Delden – Na verdade, sim... Sedação terminal não é assunto completamente novo, mas, de qualquer maneira, é mais forte e conhecido agora.

Algo que também se aprimorou nos últimos dez anos é a discussão sobre a demência: por si só ela é razão suficiente para que seja atendido um pedido por eutanásia?

O que é claro é que a demência afeta a competência. Mas em que nível? Vamos supor que um paciente que ainda esteja competente receba um diagnóstico de demência que tende a piorar – e decide morrer. Em alguns casos, pode se enquadrar nos critérios para solicitar a eutanásia e ser atendido.

Por outro lado, se você está ainda totalmente capaz, mas deixa diretivas antecipadas solicitando algo que está no plano da hipótese, como “se, algum dia, ficar demente e incapaz, quero ser submetido à eutanásia”, nenhum médico vai lhe atender, pelas inconsistências em relação à lei, sobre as quais falei antes.

Cbio – Seus argumentos se baseiam em aspectos legais, deontológicos, profissionais... Porém, algo mudou quanto à sua posição pessoal sobre o assunto, com o passar dos anos?

van Delden – Nove anos atrás, no Congresso Mundial de Bioética, alguém da platéia fez uma pergunta que desencadeou uma profunda reflexão: “devemos fazer a mesma coisa que vocês, regulamentar a eutanásia e permiti-la, em certas circunstâncias?”. Eu disse taxativamente “Não!”.

Revi minha opinião: se a construção do tema em nível de sociedade brasileira levasse a tal decisão, por que não?

Só que seria errado para a sua sociedade regulamentar a eutanásia, mas não ter nada direcionado aos cuidados paliativos. Da mesma forma, seria errado que uma sociedade não tivesse respostas para aqueles que fazem pedidos por eutanásia, simplesmente porque seu sistema ainda não está pronto. O que vale como regra é trabalhar, ao mesmo tempo, com as duas questões, ou seja, melhorar o cuidado paliativo e também, de uma maneira respeitosa, responder à questão de uma pessoa que quer morrer. Acho que isso funciona para o Brasil também, como funcionou para a Holanda.

Cbio – Em seus princípios fundamentais, o novo Código de Ética Médica brasileiro, de 2009, pela primeira aborda a limitação de tratamento e os cuidados paliativos. Isso pode ser um começo da discussão sobre a eutanásia?

van Delden – Sim. Creio que a inclusão seja importante em um código deontológico como o dos médicos.

Abre espaço para a discussão, mesmo porque, em essência, não vejo grande diferença entre limitar tratamentos a pedido do paciente e eutanásia ativa se solicitada, porque, na verdade, estaremos apenas aceitando a avaliação pessoal do paciente em relação a continuar a viver, em determinadas circunstâncias.

Mais informações trazidas pelo Dr. Van Delden

-Decisões sobre final de vida podem não levar ao óbito. De cada pedido por eutanásia, apenas 1/3 chega a ser atendido: muitos morrem durante a espera.

- Estudo holandês concluiu que 50% dos médicos já admitiram ter feito a eutanásia; 35% fariam, se fossem solicitado e 10%, não realizariam em nenhuma circunstância.

- Há cada vez mais idosos e isso aumenta os pedidos pelo fim da vida. A faixa etária em que as pessoas mais solicitam eutanásia na Holanda vai dos 65 aos 80 anos.

- Primordialmente devemos nos ater à discussão sobre como aliviar a dor do paciente, não a relativa à eutanásia.

- Quando comecei a trabalhar com final de vida, nos anos 90, pensei que os médicos prefeririam os suicídios assistidos, ou seja, que a concretização da morte fosse decidida e protagonizada pelo próprio doente. Me enganei.

- Mesmo paliado, o paciente pode achar que aquele não é um fim digno e exigir “quero sair disso já”.

- Em relação às questões de final de vida a Holanda pode ser vista como um laboratório social. Nossa experiência pode ser um ponto de partido para outras discussões.

- Na Holanda, se um tratamento for fútil, não será feito.

 

 


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