Quem se vê frente a frente com Diego Gracia – psiquiatra e professor de História da Medicina e Bioética e diretor de pós-graduação da disciplina na Complutense Universidade de Madri e do Instituto de Bioética da Fundação para Ciências em Saúde da mesma cidade, entre outros títulos – surpreende-se pela forma com que ele consegue manter a simplicidade, apesar de hoje ser quase “sinônimo” de uma das principais correntes de pensamento destinadas a fornecer fundamentos teóricos à Bioética: a espanhola.
Apenas para dar uma noção sobre a importância das idéias do professor, é de sua autoria o livro Fundamentos da Bioética, de 1989, responsável pelo impulso do tema na Europa. Merece a sua defesa, também, a lógica de que a ética na prática clínica se baseia nos fatos levantados na consulta, aliados à atenção aos valores verificados em cada sinal e sintoma – incluindo, aqui, os juízos clínicos e morais encontrados em cada paciente.
Alheio ao interesse criado em torno de sua presença no Congresso Brasileiro de Bioética, realizado no último trimestre de 2005, em Foz do Iguaçu, Paraná, (quando abordou Um Enfoque Socrático no Ensino da Bioética e, ainda, A Semiologia dos Conflitos Morais em Bioética) Grácia desceu à platéia para, didaticamente, solucionar as dúvidas. Além disso, foi um dos únicos conferencistas a assistirem várias sessões de temas livres, muitas promovidas por iniciantes na área.
Com idêntica gentileza demonstrada em suas apresentações, concedeu entrevista exclusiva ao Centro de Bioética do Cremesp, na qual comentou: “minha tese é de que os cursos de Bioética devem ser verdadeiras escolas de deliberação”.
Da conversa participou também sua ex-aluna (e seguidora) Elma Zoboli, professora do departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da USP.
A seguir, confira, a íntegra:
Centro de Bioética – O senhor não é apenas “contemporâneo” do aparecimento da Bioética. É um de seus precursores. Como surgiu o interesse pelo tema?
Diego Gracia – Minha formação começou na universidade de Filosofia, seguida de Medicina, em psiquiatria, e defesa de tese sobre História da Medicina, na Universidade de Madri.
Meu projeto de pesquisa, iniciado em 1974, tinha uma abordagem diferente em relação àquela traçada por colegas que também escolheram como tema a História da Medicina, pois eles vincularam este assunto a uma certa especialidade.
Quis dedicar-me a algo voltado à “imagem ideal do médico”, promovendo uma análise sobre como os médicos consideravam que deveriam ser vistos pelo restante da sociedade e como acreditavam que os demais indivíduos os viam.
Ou seja, a imagem que os médicos querem nos dar e que gostariam de ter.
A partir daí, me dei conta de que estava me dedicando à Ética – ou à antropologia médica, como preferiam naquela época. Parti, então, para os Estados Unidos, onde o movimento da Bioética estava surgindo. Tive a sorte de conseguir bolsa de estudos ótima, e que me permitiu freqüentar onze programas de humanidades médicas em Bioética naquele país, em escolas como Hastings Center, em Nova Iorque, Kennedy Institute, em Washington e Albert Jonsen, em São Francisco.
Assim, consegui uma idéia muito clara sobre como a Bioética era vista na América e os meios de investigação empregados por lá. Tentei levar este conhecimento à Espanha.
Centro de Bioética – Há alguma diferença em se estudar e/ou se praticar Bioética nos EUA, em comparação aos países latino-americanos?
Gracia – Claro! Quando eu voltei para casa, me dei conta da importância do que estava nascendo nos EUA, da necessidade de se “importar”, ou melhor, de se “recriar” a Bioética na Espanha e em outros países da Europa e Europa Mediterrânea.
Recriar, pois a cultura era distinta. Não se tratava de traduzir e, sim, de reescrever. Coloquei o resultado deste trabalho no livro Fundamentos da Bioética, de 1989, no qual falo sobre a história da Bioética – aproveitando minha pesquisa que levantou como os médicos se viam e, portanto, a história da diversidade médica e, portanto, da Ética Médica.
Respondendo sua pergunta referente às diferenças de aplicação da Bioética. A Ética, como disciplina, não surgiu nos EUA: nasceu na Grécia, muito perto da Espanha. Em um país latino e em outro mediterrâneo que seguem, em especial, uma linguagem mais clássica e freqüente em nosso meio, que é a Ética das Virtudes, de Aristóteles.
Diferentemente, as éticas que sugiram a partir do século XVII no Reino Unido, nos Estados Unidos, Alemanha, no Centro Europa, não são éticas das virtudes e, sim, éticas dos Princípios, ou Ética dos Direitos e dos Deveres – “coisas” um pouco estranhas a nós.
Então achei lógico estudar Bioética em um lugar que tinha uma matriz cultural muito distinta do país no qual eu nasci, a anglo-saxônica, com o desafio de “assumir” todos os seus objetivos, porém, adaptando-a à matriz cultural do meu país. Se fosse uma mera imitação, jamais funcionaria.
Centro de Bioética – É isso que se quer dizer quando se fala que os “princípios são cânones passiveis de conteúdo”?
Gracia – Exatamente! Vejamos a Ética dos Princípios ou a Ética dos Direitos, empregada nos países anglo-saxões. Creio ser um erro enorme considerar tudo referente ao primeiro mundo como algo péssimo e demoníaco.
Devemos analisar profundamente: isso me parece bom e pode enriquecer meu povo? Então é ótimo e útil adaptar à matriz cultural do meu povo.
Não se iluda: nada poderá nos livrar da “obrigação” de revermos nossas origens e estabelecermos nossa própria Bioética.
As prioridades éticas devem ser estabelecidas nos próprios países, segundo as respectivas condições históricas, tradições culturais, situação econômica, crenças...
Os bioeticistas brasileiros precisam fazer a bioética brasileira, tentando responder os problemas brasileiros. Os demais, não conhecem os problemas do país – ou conhecem de maneira superficial.
Por outro lado, há regras gerais e, ao mesmo tempo, compatíveis à singularidade dos contextos.
A consciência do dever é uma consciência geral. Brasileiros não possuem uma consciência do dever distinta da dos espanhóis.
A justiça também é vista sob idéias gerais. Normas sobre justiça valem tanto no Brasil como em outras partes do mundo.
Centro de Bioética – Fala-se muito da base “política” da Bioética. O Congresso Mundial realizado em 2002 em Brasília focou-se no poder e na injustiça. O senhor compartilha desta idéia?
Gracia – Sei da importância de tudo isso, mas fico de fora. O motivo pelo qual sou um educador e não político é acreditar mais na educação do que na política. A transformação da sociedade é de baixo para cima e não o contrário. Trabalhar em política sem a sociedade civil me parece falso.
Centro de Bioética – Analisando-se os princípios de Potter (Van Rensselaer, autor do livro Bioethics, Bridge to the Future, que referenciou historicamente os quatro princípios da Bioética, ou seja, Autonomia, Beneficência, Não-Maleficência e Justiça). Há algum que se sobreponha aos outros?
Gracia – É difícil, pois todos são importantes.
No entanto, nas bioéticas liberais existe um princípio que pode ser visto como básico, que é o de Autonomia. Nos Estados Unidos, é demasiadamente valorizado. Já no Japão, por exemplo, é inconcebível que um médico aparente “dividir” a responsabilidade do tratamento com o próprio paciente.
Já na Europa é tradição sobrepujar a Justiça, em especial, nos temas sanitários. Lá, é fundamental que os serviços de assistência sanitária sejam universais, públicos, e atendam a todos igualitariamente, ao contrário do que é fato em terras norte-americanas.
Certa vez, participei de uma reunião de Bioética, ao lado de um colega norte-americano, que vivia temporariamente na Holanda. Brincando, ele disse: “cada vez que eu atravesso o Atlântico, fico numa situação curiosa. Na Europa, todos os debates se direcionam aos problemas de Justiça. Nos Estados Unidos, relacionam-se à Autonomia”.
Centro de Bioética – Aos seus alunos, o senhor incentiva o emprego da Ética e da Bioética no processo de tomada de decisão, o que vem ao encontro de grandes preocupações dos médicos e demais trabalhadores da Saúde. Como é o método e no que torna os profissionais melhores?
Gracia – A associação da Ética à Clínica vem das origens da Ética, em Aristóteles. É essencial para médicos, enfermeiros e o contingente que lida com doentes.
Aos meus estudantes, costumo dar um exemplo bem claro e ilustrativo, que nada tem a ver com Ética.
Suponhamos que estamos dirigindo um ônibus em uma estrada e temos um caminhão pela frente e que o nosso problema se resuma em ultrapassá-lo ou não.
Conseguir promover tal ultrapassagem dependerá de múltiplos fatores, entre eles, a pressa dos condutores do ônibus e do caminhão; se o veículo da frente é mais ou menos potente do que o de trás; a distância entre os dois carros, enfim, podemos considerar inúmeros elementos até a eventual tomada de decisão.
Esse processo de dúvida se chama “deliberação”.
Precisamos deliberar se realmente temos que ultrapassar o dito caminhão e quando fazê-lo, e, principalmente, tentar adotar uma decisão prudente. Podemos nos equivocar, podemos matar, mas nossa obrigação é sermos prudentes.
Duas pessoas vão atrás do caminhão com carros exatamente iguais e com pressa. Uma pode possuir inúmeras afinidades comigo, ser minha esposa. Ponderaremos, tomaremos duas decisões, não obrigatoriamente unânimes. As duas podem ser distintas, porém corretas. Mas é necessário que ambas sejam prudentes.
Penso que, no dia-a-dia do médico, essa seja a regra de ouro. A função dele é conseguir trabalhar as decisões de tal maneira que sejam prudentes, ainda que distintas das que seguiriam outros colegas.
Numa decisão clínica há representantes de várias especialidades, tentando resolver qual é a terapêutica mais adequada a determinado paciente. Diferentes médicos podem discordar em relação ao indicado àquele doente e todos estarem atuando bem.
A função da ética não é buscar uma unanimidade. É evitar que as decisões sejam imprudentes.
Centro de Bioética – O que se pode compreender por uma “decisão prudente”?
Gracia – É muito difícil de dizer. Voltando ao “nosso” ônibus. Se você ultrapassar o caminhão sem prestar a devida atenção e alguém vier em sentido contrário e acontecer uma colisão. Se, naquele momento, você estiver displicentemente conversando com o co-piloto e se acidentar, será imprudente.
Assumirá riscos demasiados, não reconhecerá as chances de matar, ou seja, não ponderará sobre todas as possibilidades.
Centro de Bioética – Dependendo da pressa e da urgência, é factível avaliar 100% das situações negativas, capazes de acontecer?
Gracia – Nem todas, óbvio.
E se o motorista sofrer um infarto enquanto está dirigindo e provocar um acidente? E se dormir, sem querer? E se um pneu furar e ele bater?
Veja: as decisões prudentes não são necessariamente as mais certas. Porque, em ética, não existe certeza: há prudência ou imprudência. O objetivo da deliberação é tomar atitudes prudentes, não as decisões corretas. Posso me equivocar e matar, ainda que com prudência, e salvar, apesar da imprudência.
Centro de Bioética – O senhor não sente que, ao freqüentarem aulas de extensão ou atualização, a maioria dos médicos busca do professor a certeza?
Gracia – Por suposto! Todo o mundo quer a certeza! Eu também adoraria contar com a certeza de que nada vai me acontecer ao ultrapassar o caminhão... Mas nada vai me dar isso. Nada pode dizer “você está totalmente seguro ao fazer a ultrapassagem”.
O método proposto consiste em diminuir as incertezas a um ponto que se possa dizer que tomamos uma decisão prudente. Não pretende anular a incerteza, pois isso seria impossível.
Centro de Bioética – Agindo assim, o médico pode se considerar “ético”?
Gracia – Está sendo ético, mas não apenas ético. Uma deliberação é baseada em ética, sim, mas também é em clínica.
Não existe nenhum médico que inclua a totalidade de fatores referentes ao paciente durante uma tomada de decisão: se explorar exaustivamente o doente, nunca lhe passará um tratamento. Morreriam todos os que caíssem em suas mãos.
Centro de Bioética – O ensino da ética durante a graduação de Medicina deveria ser baseado neste método? Deve ser posto em prática junto com a clínica?
Gracia – Exato. O ensino da ética na faculdade de medicina ou de enfermagem deveria ter duas partes.
Numa primeira, quando ainda se está estudando anatomia, fisiologia e bioquímica, ofereceríamos um curso básico, composto por teorias morais e assuntos vinculados fundamentalmente à Filosofia, ou seja, um ensino teórico.
Na outra, o curso se voltaria à aplicação das teorias na resolução de casos clínicos. É como manejar os casos clínicos: o procedimento é o mesmo, se bem que ampliado.
É o bonito da história: ensinarmos que a lógica da clínica e a lógica da ética são iguais e, portanto, nenhuma parecerá aos alunos uma coisa “estranha”.
Pela minha experiência, se damos aos estudantes de Medicina condições para se interessarem por tais assuntos, eles captam a mensagem.
Outras opiniões de Diego Gracia
- O homem ocidental valoriza muito a vida, coisa que não ocorre em várias outras culturas. (...) Na cultura ocidental, vive-se de modo trágico o envelhecimento e a morte (entrevista ao IHU On-Line, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos, RS)
- Todo ser humano tem medo do envelhecimento, da decrepitude e da morte. É possível que este medo tenha crescido com o tempo. Sobretudo, na cultura ocidental, que está baseada no critério da eficiência (entrevista ao IHU On-Line, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos, RS)
- Os doentes, porque são terminais, não perdem seus valores, ainda que possam, como qualquer outra pessoa, mudá-los. (entrevista ao IHU On-Line, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos, RS)
- Nas revistas especializadas, cada vez se debate menos o tema da eutanásia. Isso acontece, por um lado, porque ele já está quase esgotado, e por outro, porque se chegou ao convencimento de que a eutanásia precisa ser encarada como uma situação excepcional. (entrevista ao IHU On-Line, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos, RS)
- Respeitar as pessoas passa por não mentir a elas (...). A ruptura da veracidade só se pode fazer como exceção, em situações muito extremas, quando temos justas razões para pensar que dizer a verdade vai ser incompatível com o respeito à sua dignidade. (entrevista ao IHU On-Line, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos, RS)
- Quanto a não dizer o que o paciente não quer saber, é lógico que seja feito assim. Ele é autônomo, e se é autônomo, tem de sê-lo para saber e para não saber (entrevista ao IHU On-Line, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos, RS)
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