Desde que se intensificaram no país os debates referentes a pesquisas com células-tronco embrionárias, depois do advento da aprovação da Lei de Biossegurança pelo Congresso Nacional, em 2 de março, o imunologista Júlio Voltarelli vem recebendo mais telefonemas de jornalistas, pedindo detalhes sobre o estudo que conduz na Unidade de Medula Óssea do Hospital das Clínicas/Faculdade de Medicina da USP Ribeirão Preto.
“O assédio é grande. Para muitos leigos, célula-tronco é tudo igual”, brinca o professor. Obviamente, não é: além das peculiaridades técnicas envolvendo a cultura e o emprego destas promissoras fontes terapêuticas, a modalidade “adulta” fica livre dos dilemas éticos embutidos na que envolve criação e destruição de embriões. Outra diferença: o estudo com células adultas está relativamente adiantado, trazendo esperanças concretas a portadores de doenças auto-imunes como esclerose múltipla e até diabetes – ambas focalizadas pela equipe do Dr. Voltarelli.
Veja, a seguir, entrevista concedida pelo professor ao Centro de Bioética do Cremesp.
Nota da R. Infelizmente o professor Voltarelli viria a falecer no dia 21 de março de 2012, após receber um transplante de fígado
Centro de Bioética – Como começaram suas pesquisas envolvendo células-tronco adultas?
Júlio Voltarelli – Partiram de minha experiência clínica com pacientes reumáticos e, em segundo lugar, por haver tido a oportunidade de acompanhar o início das pesquisas voltadas a lúpus e esclerose múltipla em unidades norte-americanas de transplante, durante estágio que fiz em San Diego em 1999 e 2000.
Voltando ao Brasil, organizei workshop em Ribeirão Preto, do qual participaram alguns convidados do exterior e, juntos, decidimos que iríamos mexer especificamente com lúpus; esclerose múltipla e esclerose sistêmica, as doenças mais graves que estavam sendo tratadas com células-tronco. A partir daí iniciamos estudo cooperativo com outros centros, principalmente o Hospital Albert Einsten que, em 2001, realizou o primeiro transplante contra esclerose múltipla.
Cbio – A técnica para a captação e a utilização de células-tronco adultas é muito diferente em comparação a que utiliza células embrionárias?
Voltarelli – A preparação da primeira é bem diferente. O que fazemos é dar ao paciente o fator de crescimento de granulose (G-CSF), hormônio que leva as células-tronco a se “desgrudarem” da medula e irem para o sangue. Depois, o sangue é coletado, submetido a uma cultura cérica e congelado em nitrogênio líquido. A pessoa, então, é submetida à quimioterapia e imunoterapia, que causam a destruição de seu sistema imunológico, reconstruído posteriormente pelo transplante do material coletado e congelado.
Cbio – É mais fácil usar células adultas, já que não há o entrave ético vinculado ao uso de embriões?
Voltarelli – Bem mais fácil, pois as células adultas estão fora de toda essa celeuma. Não é preciso a autorização do casal de doadores de gametas, enfrentar tanta gente contrária... Fora as éticas, há também dificuldades técnicas ao uso de células embrionárias. Uma delas: devemos encontrar uma forma de dar origem à linhagem celular que queremos, excluindo a possibilidade de gerar teratomas.
Estudos com células adultas também são mais imediatos, cerca de mil transplantes já foram realizados.
É claro que, para terapia regenerativa, células-embrionárias se constituem numa promessa melhor, no sentido de você poder injetá-las diretamente numa lesão de medula espinhal ou na retina, por exemplo, e estabilizar o problema. Veja: nosso grupo faz um tipo de terapia regenerativa, mas queremos regenerar o sistema imunológico, não um órgão em si, como o pâncreas. Na verdade, promovemos terapia antiinflamatória para a qual células adultas já dão conta.
Cbio – Quantos pacientes já receberam de seu grupo autotransplante de células-tronco? Todos se beneficiaram?
Voltarelli – Tratamos 30 pacientes com esclerose múltipla, dos quais 22 estão com a doença estabilizada; 16 com doenças reumáticas, sendo que dez melhoraram bastante e, depois disso, entramos em outra etapa, voltada ao diabetes. A doença mais difícil de se lidar talvez seja o lúpus, considerando-se que o paciente, às vezes, apresenta doença renal ou acometimentos no pulmão e cérebro, que resultam numa tolerância baixa ao processo.
Em breve, em parceria com o (Instituto Israelita) Albert Einstein, pretendemos usar transplante contra esclerose lateral amiotrófica (ELA, doença que se caracteriza pela degeneração progressiva dos neurônios motores no cérebro e na medula espinhal). A pesquisa já foi aprovada por nosso Comitê de Ética, mas ainda estamos buscando financiamento para promovê-la. Temos planos até para tratar fibrose pulmonar, como a ELA uniformemente fatal e que, por isso, carece de alternativa urgente de tratamento.
Recentemente escrevemos um capítulo de um livro do professor Richard Burt, da Northwestern University de Chicago, autoridade mundial no assunto, falando a respeito de transplante no combate da asma, que apesar de não ser doença auto-imune, é imunológica. Ainda não contamos com protocolo no tema, porém existe uma base racional que indica a possibilidade do procedimento.
Cbio – Em média, depois de quanto tempo o transplantado apresenta melhora?
Voltarelli – Tudo depende da doença, mas, em geral, os resultados são imediatos: a imunossupressão é muito forte, estabilizando o sistema imunológico da pessoa. Por exemplo, em esclerose múltipla os surtos são interrompidos. Quanto ao diabetes, a melhora é quase imediata, o paciente pára de tomar insulina.
Cbio – Seu grupo é pioneiro no tratamento com células-tronco adultas em diabetes?
Voltarelli – Pelo que eu saiba, não existe no mundo nenhum protocolo com estratégia semelhante. Um outro método, diferente, implementa transplantes de ilhotas pancreáticas.
O nosso é bastante promissor em diabetes do Tipo 1, mas há uma limitação, ou seja, não estamos tratando pacientes com a doença estabelecida a longo tempo e, sim, logo que aparecem os sintomas. Buscamos, no fundo, impedir que a pessoa fique diabética.
Começamos com um grupo de jovens, capaz de entender as implicações de um tratamento que acarreta certo risco, inclusive de morte, por causa da imunossupressão e quimioterapia. Não quisemos envolver apenas as famílias deles, deixar a responsabilidade da decisão apenas nas mãos dos pais.
Devido a essas implicações não incluímos crianças. Só que os resultados são tão animadores que estamos revendo tal decisão.
Cbio – Com a aprovação pela Câmara da lei de Biossegurança e a intensificação do debate sobre o emprego de célula embrionárias existe a hipótese de que os projetos com células-tronco adultas sejam relevados a um segundo plano?
Voltarelli – Não, porque tais estudos já estão funcionando.
As coisas mudariam se fosse feito estudo comparativo randomizado, no qual fossem superadas dificuldades relativas ao cultivo de células embrionárias em laboratório; contando com garantia das condições de segurança; derivando exatamente as linhagens que a gente quer; tratando alguns pacientes...
Enfim, se pudéssemos demonstrar que células embrionárias são melhores do que as adultas. Se isso ocorresse, pararíamos de usar células adultas e usaríamos só as embrionárias.
Médico é paciente em transplante com células-tronco adultas
Apesar de sua especialidade ser ginecologia e obstetrícia, o médico Antônio Roberto Torquato Alves tem muito para contar sobre transplantes com células-tronco adultas.
Em 1992, desenvolveu os primeiros sintomas de esclerose múltipla, doença degenerativa progressiva que acomete o sistema nervoso central: inicialmente foram dificuldades de realizar exercícios físicos, depois necessidade de bengalas e muletas e, a seguir, incontinência urinária.
“Assim que obtive o diagnóstico, decidi pesquisar tratamentos. Fui à Bélgica e aos EUA e percebi que, infelizmente, ninguém sabia direito o porquê de a doença aparecer e como se manifestava. O máximo que os especialistas podiam fazer era prescrever medicamentos para evitar os surtos e a progressão”, lamenta.
Até que, durante sua pesquisa, chegou ao grupo de imunologia da Faculdade de Medicina da USP/Ribeirão Preto e se candidatou a um transplante experimental com células-tronco adultas. Nem tudo, porém, saiu conforme Torquato esperava. “A imunoterapia e quimioterapia causaram complicações que resultaram em coma e sete meses de internação”.
Os esforços da equipe da UTI do HC/Ribeirão conseguiram reverter o quadro e, em março de 2004, o ginecologista retornou para casa e em agosto, voltou a clinicar. “Se tudo correr conforme estamos esperando, no final de 2005, dois anos depois do transplante, voltarei a andar. Minhas células-tronco foram geneticamente ‘limpas’ e estão se dividindo em células boas”, se anima.
Enfim, o “sacrifício” valeu a pena? “Quando me perguntam isso, nem pestanejo em responder: se precisasse, faria outro transplante. Estou tranqüilo, era a minha única chance”.
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