A vida do espanhol Francesc Abel, presidente do Instituto Borja de Bioética, em Barcelona, pode ser considerada – no mínimo – curiosa e interessante.
Nascido em uma família simples, sobrevivente a circunstâncias dolorosas trazidas pela poliomielite e pela guerra civil em seu país, cedo se decidiu pela carreira médica, especializando-se em Ginecologia e Obstetrícia. Depois de anos atuando na profissão resolveu mudar de rumo, surpreendendo ao entrar na Companhia de Jesus, tornando-se jesuíta e professor de Teologia e Sociologia.
"Durante o noviciado, uma das situações complicadas ocorreu quando me colocaram para polir cristais. Enquanto perguntava a mim mesmo o que fazia ali, quando poderia estar realizando uma cesariana, um 'irmão' entrou e, provocativo, questionou se o Todo Poderoso acharia aqueles vidros limpos e dignos dele. Respondi: 'Ele não opinaria a respeito disso. Diria apenas: nunca pensei que você agüentaria tanto!'" contou, às gargalhadas, o velho professor, ao conceder entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp.
A conversa aconteceu minutos após sua participação na mesa-redonda Bioética, Vulnerabilidade e Proteção, no VI Congresso Mundial de Bioética, em 2002.
Engana-se, no entanto, quem imagina que o teólogo católico desenvolveu visão estritamente conservadora, em relação a alguns temas recorrentes em Biética – disciplina que, aliás, viu nascer e ajudou a impulsionar.
Por exemplo, avalia que um embrião humano produzido in vitro "merece respeito", mas "não proteção total, até que seja implantado no útero materno". Abordando outro assunto, considera que a decisão final sobre um eventual aborto deve ser da mãe, pois sua história e sofrimento individual precisam pesar mais do que qualquer consenso, seja religioso, seja científico.
Conheça, a seguir, outras opiniões do bem-humorado Dr. Abel:
Nota da R. Infelizmente o professor Francesc Abel faleceu do dia 31 de dezembro de 2011, em San Cugat del Valles, Espanha.
Centro de Bioética - O senhor atuou em Ginecologia e Obstetrícia e, estando em pleno exercício, entrou para a Companhia de Jesus, tornando-se jesuíta. Depois, de certa forma, voltou à Medicina, coordenando um grupo de aconselhamento reprodutivo e, finalmente, fundou o Instituto Borja de Bioética. Por que esse retorno, da religião para a Medicina?
Francesc Abel – Como jesuíta, consegui a licenciatura em Teologia e Sociologia. Enquanto me dedicava ao estudo da Teologia Moral, disciplina que escolhi para ensinar, passei a refletir se as respostas que haviam dentro da antropologia católica eram adequadas às muitas questões, sobretudo aquelas que afetavam minha especialidade, a Ginecologia.
Surpreendido, notei que as respostas teológicas sobre divindade humana pareciam convincentes. Algumas perguntas é que se mantinham pendentes.
CB - Que espécies de perguntas?
Abel – Aquelas referentes à problemas éticos na saúde reprodutiva. Concretamente: ninguém perguntava o porquê de muitas mulheres adoecerem durante a gravidez, um período de criação divina. Observei aí certa ambigüidade.
Mais: uma estabilização cirúrgica em uma mulher por problemas, digamos, no sistema reprodutor, era facilmente aceita dentro da Igreja. Mas o que fazer quando está com seu sistema reprodutor gravemente doente e o quadro piora durante a gestação?
Também comecei a achar meio absurda a avaliação alguns, de que certos aspectos relacionados à reprodução poderiam estar "desligados" da saúde da mulher. Simplesmente porque o sistema reprodutor faz parte do corpo dela!
Para mim, essas foram as primeiras dificuldades. Pontos da antropologia católica que precisariam ser revisados.
E as dúvidas começaram a ficar mais e mais difíceis de encontrarem solução. Depois, conhecendo a Bioética, ponderei que são necessários diálogos com pessoas competentes em um determinado âmbito, para tentar encontrar respostas, já que ninguém ou nada agregam a verdade absoluta.
CB – Então, se já é difícil para os médicos achar respostas para os inúmeros dilemas que vivem em seu dia-a-dia, isso se torna bem complicado, em se tratando de um profissional católico praticante...
Abel – Vários médicos católicos resolvem seus conflitos de forma esquizóide (tendência à abstração). Tipo assim, de segunda a sexta, como sou médico, atuo de acordo com critérios médicos. Sábados e domingos, estou livre para usar critérios não-médicos, apenas católicos.
Para mim ou se vive ou não se vive em paz. E muitos de meus colegas, católicos praticantes, não conseguiam viver em paz e tampouco queriam denunciar que existiam formulações antropológicas que mereceriam correções, ajustarem-se à realidade.
Procurando resolver alguns desses problemas, passei a me empenhar mais neste assunto. Até que a Bioética foi descrita. Partindo daí, fundei, em 1976, o Instituto Borja, onde abrimos um serviço de orientação familiar obstétrica, que buscava manter uma mentalidade aberta. Imagine quantos desgostos sofremos por parte dos mais conservadores!
Por outro lado, graças ao apoio dos irmãos também comecei ali comitês de ética assistencial. É lógico, as coisas só puderam andar graças a receptividade da própria Companhia de Jesus, que me autorizou a criar um instituto de Bioética.
CB – Reflexões encampadas pela Bioética envolvem temas difíceis de serem abordados por sacerdotes. Por exemplo, o senhor é contrário à "destruição" de embriões, em pesquisas científicas?
Abel – Diria que não as coisas não podem ser simplificadas em 'contra' ou 'à favor'...
Hoje em dia, se fala bastante sobre a história dos embriões. Primeiro, não é todo mundo que concorda que um embrião seja um ser humano. Então, está aqui a primeira dificuldade.
Minha opinião: se eu congelar um embrião recém-fertilizado antes da união dos pró-núcleos, não tenho nada ali. Não passam de células que não merecem nenhum respeito, por não haverem chegado à fase da formação de um novo genoma.
Agora, se realmente contamos com um novo genoma, o embrião merece respeito. No entanto, proteção absoluta, como se fosse um humano formado, é muito, muito, discutível!
Para mim, neste caso, não há razão para uma proteção "forte", de peso, antes de ocorrer aquilo que se requer como condição sine qua non para a vida: a possibilidade de crescimento e desenvolvimento. E isto não se dá in vitro, se dá a partir do momento da implantação.
CB – O embrião não é nada, até ser colocado no útero?
Abel – Não é bem o que quero dizer. São células diferenciadas, com potencialidade para virar uma pessoa. Mas para ter a plenitude da proteção, precisam ser implantadas.
Porque a conexão materno/embrionária é fundamental para o crescimento e desenvolvimento. Se você esquecer embriões em uma placa de pedra, depois de uns cinco dias terão apodrecido! Pode até tratá-los com carinho, tirá-los da chuva, mas não sairão daquilo.
Por outro lado, se falarmos de embrião não-gamético, com uma composição de 46 cromossomos, conseguido à base, digamos, de um óvulo feminino e um material informativo-genético de uma célula de intestino de um doador, penso que isso requereria uma redefinição de embrião.
Seria apenas uma loucura, pois a dignidade humana tem que ser prioridade perante a qualquer avanço científico.
É errôneo igualar progresso técnico ao progresso humano. Progresso técnico pode ser progresso humano ou não, depende da utilização que se faça. Se eu tenho uma central nuclear, pode ser progresso humano, na medida em que favorece o bem-estar das pessoas. Porém, se a finalidade for produzir uma bomba atômica e destruir os chamados "inimigos", será a decadência humana.
Devemos separar os logros conseguidos pela ciência das aplicações destes logros.
CB – Resumindo: que áreas são particularmente difíceis de serem abordadas por um católico praticante?
Abel – Primeiro, as que desafiam a moral da Igreja. Segundo, aquelas que atuam contra o Magistério (Na Igreja Católica, o exercício da autoridade de ensinar).
Imagine, há pessoas que querem que qualquer coisa que o papa diga seja um dogma de fé! Quando se fala de uma instrução, de um conselho, não é o mesmo do que uma encíclica, um documento papal.
Não se deve comparar um discurso de João Paulo II em um domingo, na Praça de São Pedro, a um discurso frente a sociedades científicas. São coisas distintas, falamos a pessoas com diferentes capacidades e responsabilidades. As formas de diálogo devem levar em conta os estilos.
CB – No Congresso Mundial de Bioética, o senhor falou sobre vulnerabilidade. Quais são os grupos mais vulneráveis?
Abel – Em primeiro lugar são vulneráveis todas as pessoas. Sofremos de vulnerabilidades "patológicas".
Pelo simples fatos de existirmos e estarmos sujeitos à morte, à solidão, à angústia, ao vazio, à alienação... Lógico que superaremos muitas coisas, frustrações e um certo grau de solidão interior, mas não a enfermidade e a morte, intrínsecas não apenas ao humano, mas a todo o vivente.
Focalizando vulnerabilidade social, creio que os mais vulneráveis são as pessoas "sem papéis", sem carteira de identidade, passaporte. Os imigrantes que escapam da fome e da miséria e vão para outro país e, lá, não são nada socialmente reconhecido. Nem conseguem falar a língua do local que os acolhe. São aqueles cujo silêncio e os gritos silenciosos pedindo ajuda deveriam nos fazer sentir perversos.
Vulneráveis são os miseráveis, milhões no mundo, que nem alcançam o nível da pobreza. Também as crianças; a juventude; as mulheres; os povos indígenas; as minorias; os agricultores que vêm do campo para a cidade, aonde não conseguem produzir nada... tudo deve ser superado com empenho social, político e econômico.
CB – Como os médicos e os bioeticistas podem influenciar nesse painel?
Abel – Os médicos, sendo honestos, honrados e competentes em sua profissão. É nosso dever ser algo mais do que licenciados ou doutores em Medicina. O significa? Precisamos fornecer respostas plenas aos nossos pacientes, utilizar os meios ao nosso alcance para ajudá-los em sua reabilitação. Mas, fundamentalmente, respeitá-los como seres humanos.
Todo doente é vulnerável. Então, a primeira pergunta deveria ser "o que está se passando com ele, nos variados campos de sua existência?".
Sobre os bioeticistas. Aqui, cabe um parênteses: nem gosto muito desta palavra, pois pode significar muito ou absolutamente nada. É como acontece com os sexólogos. O que são sexólogos?
Há curiosos que, pelo fato de lerem algo sobre sexo, se autodenominam assim. Só que não entendem nada da psicopatologia da sexualidade e não se apóiam em qualquer embasamento psicológico.
Mesmo assim... (risos). Um bioeticista, por mais que se debruce em cima de investigações científicas, deveria ser humilde o suficiente para saber que não sabe tudo. Querer dialogar. Saber ponderar sobre os objetivos e as influências dos demais. Só assim adentraremos num diálogo bioético e ampliaremos nossos conhecimentos.
CB – O saber ouvir, então, recebe um significado especial dentro do universo da Bioética?
Abel – O saber ouvir e o saber raciocinar.
Alguém pode chegar e falar "foi um prêmio Nobel" quem afirmou determinada coisa. Minha pergunta seria: "mas por que ele disse isso?"
O importante é verificar em que argumentação baseou tal afirmação.
Muitos estudiosos precisariam ser maleáveis e reconhecer os próprios preconceitos. Às vezes, recebem formação bastante precoce e desenvolvem comportamento autoritário. Penso que uma das condições para alguém ser livre é conseguir a liberdade de questionar a si mesmo.
Não estou dizendo, renunciar a liberdade de suas próprias convicções e valores, e sim, meditar sobre o porquê dessas convicções e valores.
Então, voltando. Chega aqui um prêmio Nobel de Medicina. Ninguém duvida de sua autoridade. Portanto, pode ser olhado com muito respeito, mas devemos ponderar sobre a racionalidade dos seus argumentos. Se não seguirem a lógica dos silogismos, nem a segurança da matemática, enfim, se não forem racionais, não poderemos aderir àquela idéia e não conseguiremos agir tranqüilamente.
CB – Mas existem vozes que, naturalmente, são mais respeitadas. Católicos, por exemplo, são levados à seguir a orientação da Igreja.
Abel – Uma questão bastante recorrente: chega uma senhora e fala que está pensando em abortar, mas teme desagradar ao Papa.
Se eu quiser ajudá-la como médico, como teólogo, primeiro perguntarei: "por que quer fazer?"; "O que acontece?"; "Está segura?"; "No fundo de sua consciência, concluiu que este é um caminho justo?"; "Ponderou sobre outras soluções?".
Caso a resposta for sempre 'sim', preciso respeitar essa decisão, como uma decisão ética.
A dor daquela mulher não se refere a contrariar ou não o papa ou ao governo. E, sim, ao que fará de sua própria vida!
CB – Então, para quase nada existe um consenso, uma resposta coletiva?
Abel – Que valor tem um consenso para aquela pessoa que está falando comigo?
Existem consensos puramente estratégicos e, por vezes, não ditam as melhores soluções. Há consensos de grupos políticos, de cientistas, porém nossa racionalidade individual não pode ser dirigida por consensos nem de cientistas, nem de religiosos.
Nem homens podem ser homens, nem mulheres podem ser mulheres, se não conseguirem chegar aos próprios consensos morais, que dependem dos valores particulares das pessoas.
É lógico que existe o mínimo a que todos devem atender. Diria, um consenso de mínimos, suficientemente aceitável para começarmos a andar e a legislar. É isso: hoje em dia, podemos falar sobre ética de mínimos, mas mínimos racionais e mínimos morais.
Se, socialmente, cada indivíduo cumprir os mínimos, já estará bem. O valor da consciência me parece mais forte do que qualquer lei.
*O Dr. Francesc Abel especializou-se em Cirurgia e Ginecologia e Obstetrícia. Entrou na Companhia de Jesus em 1962, tendo se licenciado em Teologia e Sociologia. Em 1975 foi para os Estados Unidos, onde defendeu tese sobre Fisiologia Fetal.
É co-fundador de sociedades como a Medicus Mundi Internacional; Societat Catalana de Bioètica e European Association of Centres for Medical Ethics e presidente do Comité de Ética Asistencial del Hospital Sant Joan de Déu, em Barcelona.
Como autor ou co-editor, participou de vários livros, como Human Life.
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