Ao que tudo indica, não vem de hoje o "desacerto" entre Maurizio Mori e a Igreja Católica - como é de domínio público, poderosíssima na Itália, país de origem do filósofo e bioeticista.
Ainda em 1997, por exemplo, quando publicou o livro A Moralidade do Aborto, dava a entender que a Santa Sé, no decorrer de mais de dois milênios de existência, costuma usar e abusar de sua força política para manter o controle do que ele chama de "processo de transmissão de vida" e a manutenção da instituição do casamento.
Bem depois, falando ao Centro de Bioética do Cremesp durante o VI Congresso Mundial de Bioética, reafirmou tal postura, por meio de várias opiniões contundentes, entre as quais: "no século XX, a guerra envolvendo a contracepção foi perdida pelos católicos. E eles, para abrir uma nova trincheira, levantaram a questão sobre o status moral do embrião".
A Autonomia da Reprodução, aliás, foi o tema defendido no evento pelo professor da Universidade de Pisa, na mesa-redonda Reprodução Assistida - novas tecnologias e implicações éticas, dividida com a teóloga católica norte-americana Lisa Sowle Cahill e a professora brasileira Marilena Corrêa, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
Logo no início de sua explanação, Maurizio Mori ganhou a simpatia do público feminino presente, lembrando um aspecto lógico - porém, nem sempre relevado - sobre "ética" reprodutiva: "a idéia de reprodução estar associada à mulher é um erro. É uma discriminação contra as mulheres".
Ao contrário do costumeiro perfil de seus compatriotas, Mori carrega uma expressão bastante séria, quase taciturna. Mas demonstrou-se extremamente gentil, enquanto concedia esta entrevista exclusiva ao site bioetica.org.
Centro de Bioética - Em sua palestra referente aos direitos reprodutivos (com ênfase à fertilização in vitro) o senhor movimentou a discussão, ressaltando que a responsabilidade não pode ser apenas da mulher. E que esta não deve ser moralmente condenada por suas escolhas reprodutivas. O que quis dizer?
Maurizio Mori - O mais simples: que em reprodução, o fator primordial a se considerar é a autonomia. De ambos, tanto do homem, quanto da mulher.
Por exemplo, um homem pode pensar em gerar filhos por volta dos 70 anos, sem causar espanto. Ao contrário, a mulher é moralmente condenada, se decidir engravidar aos 60, com a ajuda da Medicina. Por que, se é o que lhe traria bem-estar?
Alguém poderia dizer que, sem limites, prejudicaríamos os futuros recém-nascidos. Mas, se nós reconhecermos que existem muitas situações adversas que levam ao nascimento natural de crianças, deveríamos impor limites à reprodução natural.
Como sou contrário a tais impedimentos, não pensaria diferente no caso de reprodução assistida. Ao meu ver, trata-se de uma simples extensão da dita reprodução sexual.
CB - Então, para o senhor, nenhuma barreira é válida em reprodução assistida?
MM - Partindo-se do princípio de que é errado promover, por exemplo, esterilização compulsória, chegaremos à conclusão de que faz parte dos direitos humanos a possibilidade de formar uma família.
Acho que, se fossem estabelecidos limites, o "ônus da prova" deveria ser daqueles que pretendem frear a liberdade e a autonomia envolvidas em reprodução assistida.
Veja, recentemente fui questionado sobre um caso que ficou famoso: duas lésbicas surdas-mudas que pretendiam ter um bebê, também surdo-mudo, utilizando fertilização in vitro. Alegavam que, assim, ele se adaptaria melhor à comunidade em que o casal vive.
Será que deveríamos impedir?
Minha resposta se baseou nas situações de casais heterossexuais surdos-mudos. Não sei se é verdade, mas me contaram que, de acordo com a genética, existem grandes chances de que essas pessoas gerem crianças com as mesmas características.
Se todos sabem que o marido e a esposa têm tal defeito genético, alguém poderia proibi-los de se reproduzir? Não!
Pois se é permitido a esse casal gerar uma criança surda, não vejo o porquê de não empregarmos a reprodução assistida às lésbicas, pela hipótese de alcançarmos o mesmo resultado! (diz, enfático).
CB - Mas alguém poderia dizer que "em laboratórios, há intervenção de terceiros..."
MM - E eu responderia: sim, e isso faz diferença? (risos)
É errado caminharmos para a visão da "santificação da Natureza". Não devemos dizer que a Natureza não possui "agentes morais". Podemos agir como "agentes morais da natureza", pela possibilidade que temos de evitar a transmissão de defeitos genéticos.
CB - O senhor vem da Itália, país fundamentado no catolicismo. É mais difícil discutir temas como reprodução assistida ou aborto em nações arraigadas nessa religião, como é o caso da sua e da nossa (o Brasil)?
MM - Creio que a Itália é católica apenas pela capacidade que a Igreja tem de controlar as instituições.
Exemplo? Fizemos, há algum tempo, um referendum sobre o aborto (* na Itália, existe uma legislação que permite aborto gratuito até os três meses de gestação).
Resultado: apenas 22% da população disseram "não" ao aborto, sendo que outros 78% mantiveram-se favoráveis. Neste país tão "católico".
Mesmo levando-se em conta a força política da Igreja, dificilmente conseguirá modificar nossa lei constitucional relativa ao tema.
No ano passado, até o nosso ministro mais católico ponderou algo como "quero que a Lei do Aborto seja mudada, mas a autonomia da mulher não deve ser desafiada, está fora de discussão". Tal reflexão, pelo menos, pode significar que o respeito à autonomia vem crescendo entre as pessoas.
Claro que a Igreja Católica continua sendo ótima em controlar as instituições, mas isso tem a ver com política e não com problemas filosóficos ou aspectos éticos... Já que não sou político, simplesmente digo que é errado tentar controlar a consciência das pessoas por meio de instituições.
CB - Quando o senhor fala sobre "autonomia", considera também os "direitos" do feto, no caso de aborto?
MM - Em minha apresentação aqui no Congresso, abordei bastante esse aspecto: sob o meu ponto de vista, o verdadeiro debate não focaliza o aborto ou o feto. A discussão refere-se ao controle do processo de transmissão de vida.
Esse controle pode ser verificado na contracepção, certo? Se você permite contracepção, então você estará reconhecendo que as pessoas podem controlar seu próprio processo de transmissão de vida. Isso é uma coisa clara desde o início do último século.
No século XX, a guerra contra a contracepção foi perdida pelos católicos. E eles, para abrir uma nova trincheira, levantaram a questão sobre o status moral do embrião.
Trata-se de algo temerário, a ser descartado.
CB - O que o senhor quer dizer é que o ataque ao aborto, por parte dos religiosos, não é 100% motivado pelo fato de "estar se matando um ser humano?"
MM - Com certeza, todas essas coisas partem do mesmo princípio: se você se opõe à contracepção, lógico que será contrário ao aborto ou a qualquer método de reprodução assistida.
Só que, no fundo, a razão que leva à total discordância ao aborto não se calça em "está se assassinando um semelhante", como alegam os católicos. E, sim, porque está sendo violada a "ordem natural" da instituição do casamento.
De acordo com a doutrina católica, o casamento não é apenas uma instituição social. Ele é voltado à transmissão da vida. Com isso, ignora-se a importância do campo biológico.
Portanto, do ponto de vista conceitual, a discussão não é realmente "não devemos fazer o aborto" por causa do Quinto Mandamento dos cristãos (Não Matarás) e, sim, do Sexto. (Não Pecarás Contra a Castidade/Não Cometerás Adultério).
CB - Em resumo: o embrião não pode ser visto como um ser autônomo, uma pessoa com direitos...
MM - O embrião conta tanto quanto contam os gametas. Os gametas têm direitos? Não. Por que os primeiros deveriam ter?
Façamos uma analogia meio esdrúxula. Se colocarmos num recipiente dois gametas, um masculino e o outro feminino, com todas as características genéticas, seus 46 cromossomos e tudo, sabendo que eles irão se encontrar em dois segundos.
E, em outro, pusermos outros dois gametas que já se encontraram, dois segundos atrás. Pergunto: qual é a diferença?
No primeiro caso, não houve concepção, porque eles ainda não estão fundidos. Agora, no segundo, muitos acham que aquele "ser" não pode ser "assassinado", porque os gametas já estão juntos. Para mim, isso não faz qualquer sentido.
CB - Qual é sua opinião sobre o uso de células-tronco em pesquisas? De novo, aqui está algo vinculado à destruição de embriões.
MM - Quando a vacinação estava dando seus primeiros passos, em 1802 ou 1803, a Igreja Católica lançou um manifesto totalmente desfavorável, porque acreditava ser "imoral" misturar fluidos animais com os dos homens.
Enfim, que era um tipo de "degradação contra a dignidade humana" injetar fluídos animais em corpos humanos.
O que acontece hoje em relação à visão dos conservadores quanto ao uso de células-tronco é similar.
Digo e repito: é um erro sustentar esse argumento de que "destruir embriões" significa "assassiná-los". É uma coisa boba. Nem Tomás de Aquino ou outros representantes da Igreja chegaram a dizer que um embrião é uma pessoa.
Essa história do embrião foi inventada por quem gostaria de deter os direitos reprodutivos e restabelecer a doutrina do casamento.
Mais opiniões do filósofo Mori
- De acordo com a visão da santidade da vida, muito influenciadora da cultura ocidental, qualquer interferência no processo reprodutivo é proibida e imoral. Argumento que tais posições são inconsistentes e que as pessoas têm o direito de decidir
- Estamos presos a antigos tabus e lógicas que devem ser descartados
- Uma pessoa é, primeiramente, um "indivíduo" que se distingue dos demais seres naturais por uma possibilidade inédita, a racionalidade. Pessoa é, então, o indivíduo racional
- Não vejo no avanço da genética um risco de dominação do homem pelo homem, violando sua autonomia; pelo contrário, pode dar ao homem melhores condições de utilizar esse conhecimento, respeitando a individualidade (Durante entrevista concedida no início da década à revista Ser Médico)
- Somente se conseguirmos programar nosso organismo biológico poderemos resistir ao desaparecimento. Por isso, é justo intervir, não devemos ter medo (Durante entrevista concedida no início da década à revista Ser Médico)
- Espero que os homens façam melhor, ou mais bem feito que Deus. Porque não acredito que Deus tenha feito somente coisas boas. Existe tanto sofrimento no mundo, tantas pessoas que nascem com doenças terríveis! (Durante entrevista concedida no início da década, à revista Ser Médico)
* O filósofo Maurizio Mori é professor de Bioética na Universidade de Pisa e pesquisador em Bioética no Centro Politéa, em Milão.
Foi diretor International Association of Bioethics (IAB) e fundador da conceituada revista italiana Bioética. Escreveu vários livros, entre os quais A Moralidade do Aborto e A Fecundação Artificial.
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