18-08-2003

Por que presos não podem doar órgãos?

Filipino vê injustiça nas restrições contra pessoas expostas a situações vulneráveis, como cárcere


Em primeira análise, a idéia defendida por Leonardo de Castro, então professor titular de Filosofia da Universidade das Filipinas, pode parecer esdrúxula a ponto de causar indignação geral por parte da platéia e dos participantes da mesa-redonda Doação e Transplante de Órgãos, durante o VI Congresso Mundial de Bioética realizado em 2002.

Resumindo: Castro defende um projeto chamado Kidneys for Life, que permite a condenados doar um de seus rins, em troca da diminuição de sentença. Indivíduos no corredor da morte, por exemplo, teriam a possibilidade de ver sua punição "reduzida" para prisão perpétua ou até menos. (A pena capital  ainda é aplicada naquele país, apesar de estar em vias de extinção, como garantiu a presidente Glória Macapagal-Arroyo).

Entre os que rechaçaram completamente a sugestão de permuta incluíram-se nada menos do que o ex-senador e sanitarista Giovanni Berlinguer contraponto de Castro no debate, que comparou o projeto à escravidão do século XVII. "Dizer que o direito de escolha do preso é respeitado é uma falácia", divergiu do colega. Em outra ocasião, o secretário da Saúde das Filipinas, Alberto Romualdez Jr., já havia dito algo semelhante: "pedir a condenados que doem órgãos em troca de redução de pena é o mesmo que compelir um homem pobre a vender seu rim".

Ainda que controversa  e causar mais opiniões contrárias do que favoráveis a posição de Castro, entretanto, mereceria alguns momentos de reflexão. É preciso abandonar uma visão 100% ocidental para avaliar a questão sob a ótica de um país onde a prática de autoflagelação por ímpetos religiosos é realidade.

"Mesmo que se encontrem em um ambiente restritivo, por vezes prisioneiros demonstram-se capazes de transcender e tomar decisões independentes. Podem estar buscando uma maneira genuína de sacrificar-se, visando redimir-se dos próprios 'pecados'. Neste contexto, proibir feriria o direito dessas pessoas, seria explorar sua vulnerabilidade de outra forma", defendeu o bioeticista, que depois da palestra gentilmente concedeu entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp.

Confira, aqui, o resultado:

Centro de Bioética: Como surgiu essa idéia de oferecer a prisioneiros a chance de encurtar a pena, em troca de doar um de seus rins?

Leonardo de Castro - Há uns trinta anos, o plano foi levado à frente por um grupo de cirurgiões, que buscava nos transplantes envolvendo criminosos um meio de praticar e aprimorar sua habilidade. Naquela ocasião, entretanto, as pessoas não pareciam estar verdadeiramente conscientes sobre todos os aspectos éticos envolvidos na questão.

Em alguns casos, além da diminuição da pena, havia promessas materiais de ajuda à família dos presos, normalmente não cumpridas.

Depois, cerca de dois anos atrás, quando a pena de morte voltou a vigorar em meu país, uma proposta foi feita pela Associação de Pacientes Renais das Filipinas, que ponderou não 'ser justo' desperdiçar tantos órgãos, quando havia tantos morrendo pela indisponibilidade deles.

Apensar de se vincular a doação de órgãos por parte de presos, a atual proposta possui enfoque totalmente diferente. Ou seja, sugere doações como um meio de os criminosos demonstrarem seu arrependimento contra o que de errado cometeram. Ajudando, como conseqüência, a quem precisa.

CB - Concretamente, o que os presos ganham em decidir-se por doar um órgão?

LC - Em troca, sentenciados à morte, por exemplo, teriam sua punição diminuída para prisão perpétua ou menos.  Pessoas com longas sentenças prisionais poderiam reduzi-las.

CB - Mas o senhor há de convir que não é fácil compactuar com a validade ética da idéia, pelo fato de presidiários serem considerados vulneráveis...

LC - O envolvimento de prisioneiros em transplantes de órgãos não deve ser visto como inerentemente ruim. É evidente que a condição de aprisionamento, por si só, é coercitiva e normalmente não condiz com escolhas livres: o controle dos presos sobre as próprias vidas é considerado restrito.

Só que uma decisão paternalista do tipo, a que impede por completo que um preso realmente arrependido doe um de seus órgãos apenas porque ele é considerado "vulnerável", no final, parece outro tipo de exploração da vulnerabilidade dele.

Presos podem ser avaliados de forma diferente à de outras pessoas apenas sob o ponto de vista de eles estarem sendo punidos, de acordo com a lei. Outras restrições, então, podem soar como excessivas e injustas.

Sobre o apoio ao projeto Rins para a Vida. Uma coisa que me surpreendeu foi que dentre as pessoas que defenderam a proposta esteve um arcebispo católico muito influente em meu país.

CB - Um arcebispo católico?

LC - Sim! Teodoro Bacani, arcebispo de Manila, disse não ver nenhuma objeção moral em permitir que presos tomem uma decisão voluntária do gênero. Classificou como "uma idéia criativa, na qual pessoas podem reparar seus crimes contra a vida, presenteando com a vida".

Hoje, no entanto, não há nada que indique que a proposta formulada dois anos atrás pela Associação de Pacientes Renais atrás vá à frente... Uma coisa tão controversa deve demandar muito tempo. Isso deveria ser colocado para o Congresso legislar. Mas pode ser que os políticos temam abraçar a uma causa, até certo ponto, impopular.

De qualquer maneira, atualmente vem sendo constituído um Comitê Nacional de Ética em Transplantes, do qual participa o Arcebispo que defendeu a proposta. Espero esse membro tão importante possa atuar como uma espécie de intermediário, para a aprovação.

CB - Os médicos filipinos costumam apoiar a proposta?  E o público em geral?

LC - Sei que existe um bom número de médicos que a defendem, só que não há apenas uma posição oficial das associações desses profissionais.
O público em geral, em sua maioria, não concorda.

CB - Na sua fala, o senhor deixou claro que está procurando argumentos convincentes contrários ao Rins pela Vida. Por que na sua opinião é defensável?

LC - Afirmo que defenderia essa idéia contanto que pudesse ser estabelecido que o prisioneiro quer doar seu órgão porque realmente lamenta pelo crime que cometeu.

CB - Parece impossível ter certeza absoluta quanto a isso...

LC - É difícil estar totalmente convicto, concordo.

Só que, deixando de lado a hipótese de transplantes de órgãos. Nas Filipinas e em muitos outros países existem mecanismos que garantem perdão ou liberdade condicional a criminosos que provarem que mudaram de comportamento, que estão arrependidos e gostariam de ser úteis à sociedade. A partir de uma investigação apurada, as autoridades prisionais podem recomendá-los ao presidente que decidirá, "sim, vocês podem ter liberdade condicional" ou "serão perdoados" ou "não, não existe esta chance".

O que nós gostaríamos que fosse feita exatamente a mesma coisa com uma proposta diferente, não apenas a de oferecer liberdade condicional ou diminuição da pena, mas em relação à doação de órgãos. Envolvendo a família do prisioneiro, advogados para atuarem em seu favor, avaliações de psicólogos...

Alguns podem argumentar que se o preso 'conscientemente se propõe à doação por motivos religiosos', não deveria ser 'recompensado com a diminuição da pena'. Penso diferente: o fato de o doador ser prisioneiro não diminui o valor social da doação, pois órgãos humanos são algo que não tem preço, não há como estimar...

Como qualquer outro doador, o preso mereceria justa compensação, por ter tomado uma atitude tão grandiosa.

Mais detalhes sobre Rins Pela Vida apontados pelo professor Castro

- As condições de aprisionamento, por si só, são coercitivas. Porém, quando o preso expressa um desejo inequívoco de doar, a proibição deve ser justificada mais fortemente do que a presunção geral sobre tais condições.

- É indiscutível que presos são vulneráveis, que requerem proteção de coerção e exploração. Mas isso não os desqualifica de se tornarem doadores. O paternalismo pode ser exagerado ao ponto de funcionar contra a pessoa que visa a proteger.

- Uma posição paternalista deve ser pesada em relação à perda de possíveis benefícios, em especial, a chance de salvar a vida de outra pessoa. Os riscos de prejuízos sérios são pequenos e proibir a prática poderia ser antiética tanto do ponto de vista dos possíveis doadores, quanto dos receptores.

- Existe a possibilidade de que os próprios presos ou oficiais de polícia vejam em Rins pela Vida uma chance de ganhar dinheiro. Esta eventualidade deve ser antecipada e evitada, por critérios rígidos. Mas uma nova iniciativa não pode ser paralisada pelo temor de que esteja sujeita a má-fé de alguns.

* Leonardo de Castro é PhD em Filosofia pela Universidade de Wales-Swansea. É professor e presidente do Departamento de Filosofia da Universidade das Filipinas; presidente da Associação Filipina de Saúde Social e Ciências e vice-presidente do Fórum do Pacífico Oeste para Ética em Pesquisa e membro do Comitê Internacional de Bioética da Unesco.
   É autor de vários artigos e livros voltados à Ética e à Bioética.
 

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