27-12-2002

"A morte não pode ser vista como uma derrota na guerra. Os médicos não estão em um front"

Boa Morte não tem nada a ver com Eutanásia, diz o professor americano


Abordar certas questões delicadas sempre exige "algo mais" por parte dos encarregados de passar sua mensagem à platéias selecionadas - como as que agregam especialistas em áreas centralizadas na Ética, como é o caso da Medicina, do Direito e da Filosofia.

Pode-se dizer, então, que James Drane, professor emérito da Universidade da Pensilvânia, nos EUA,  conseguiu um verdadeiro "prodígio", ao promover uma palestra leve, clara e até bem-humorada, tratando de um tema aparentemente desafiador, como Pacientes Terminais e Cuidados Paliativos, durante o VI Congresso Mundial de Bioética ocorrido em 2002.

Drane e os outros componentes da mesa-redonda Futilidade e Cuidados no Final da Vida, os professores brasileiros Délio Kipper e Leo Pessini, caminharam para um enfoque que, em resumo, significaria "não basta cuidar do paciente. Deve-se respeitar profundamente seus limites, na hora de decidir até aonde ir, para mantê-lo vivo".

"Na prática da medicina moderna, a doença é o inimigo. A morte é a derrota da guerra e os médicos estão no front de batalha: pedem baterias de exames e lutam contra células invasoras. Usar essa metáfora no final da vida é um desastre" explicou o professor católico, que traz em seu currículo formações em Teologia, Filosofia e Medicina, com especialização em Psiquiatria e ênfase em Bioética..

Tantos diplomas, entretanto, não conseguiram alterar seu jeito simples e generoso, como confirmaria mais tarde por meio de atitudes, durante conversa exclusiva com o site do Centro de Bioética do Cremesp: ao menor sinal de dificuldade de entendimento por parte da entrevistadora, rapidamente buscava traduzir a frase do inglês para o espanhol ou o italiano - diga-se de passagem, três das cinco línguas nas quais o médico expressa-se com fluência.

Veja, a seguir, a conversa com o - adorável - professor Drane:

Centro de Bioética - Hoje, os cuidados com pacientes terminais têm mudado, devido a gama de avanços tecnológicos da Medicina? O próprio conceito de paciente terminal foi modificado, se compararmos com algumas décadas atrás?

James Drane - Os conceitos estão sempre abertos para mudanças e estou certo de que existem variações quanto ao entendimento sobre pacientes terminais. É bastante difícil fazer uma avaliação precisa e universalizar uma definição aceitável a respeito desses pacientes, considerando-se que os indivíduos contam com tantas possibilidades diferentes... Ninguém sabe com absoluta certeza e de forma fechada quando outra pessoa está morrendo.

CB - Parece que algumas especialidades estão experimentando mais concretamente essa mudança de visão, com relação aos pacientes terminais. Infectologistas, por exemplo, viram vários de seus pacientes "ressuscitarem", após o advento dos remédios contra o vírus da Aids...

Drane - Sim. E essa é a razão pela qual um diagnóstico específico relativo a pacientes terminais é algo sempre envolvido com ambigüidades. Mas dizer que é ambíguo não significa que não existam critérios que delimitem quem são os pacientes terminais.

Em outras palavras, sempre existiu e sempre existirá em Medicina exemplos de melhoras repentinas e inesperadas. Realmente parecem "ressurreições". Mas isso não quer dizer que 99% das pessoas não seguem um processo muito identificável, ou que nós não temos as pistas de quem são os pacientes terminais.

Neste grupo, incluem-se, entre outros,  aqueles que desenvolvem doenças para ainda sem cura e que vão perdendo, gradualmente, suas capacidades para qualquer tipo de atividade, seja em casa ou na respectiva comunidade... Doenças capazes de impedir o homem ou a mulher de cuidarem de si mesmos; de se relacionarem com os demais, de se recuperarem...

Somados a esses, há critérios envolvendo doenças específicas e degenerativas, etapas que servem para avaliar cada situação. Falando-se de um paciente de Aids, como você mencionou. Acontecem vários estágios. Portanto, num dia, pode aparentar estar morrendo e, no outro, apresentar melhoras, o que nem é tão difícil. Mas, infelizmente, se estiver num processo de morte é provável que cedo ou tarde desenvolva outra série de sintomas.

CB - Então, é neste momento que o senhor e outros médicos que lidam com pacientes terminais defendem a não aplicação de métodos demasiadamente agressivos, com a única intenção de manter a vida?

Drane - É nesse ponto exato que surge a reflexão, "será que devemos tratar agressivamente qualquer sintoma que aparecer?" Ou, "quando você reconhece um processo de morte, não seria melhor aliviar as conseqüências dos sintomas da patologia, cuidando do indivíduo de maneira paliativa e, dentro do possível, procurando ter a certeza de que não está sentindo dor?"

"Não é melhor procurarmos fazer de tudo para evitar que o paciente sofra devido a várias preocupações, tipo, por estar se sentindo exposto, sozinho, enfim, cuidar também da situação social daquele atendido?" São algumas das coisas que podem ser feitas, em vez de tratar-se de maneira cada vez mais agressiva cada coisinha que aparece...

Qualquer pessoa que já viu a batalha estabelecida entre os médicos e a morte e observou, de perto, todas as técnicas empregadas, acaba concluindo da mesma forma: "Eu não quero morrer desse jeito".

CB - Mesmo os médicos, podem ser levados a pensar Eu não quero morrer desse jeito?

Drane - Não, pelo menos, não nesse momento. Os médicos estão bastante ocupados, avaliando as opções e tomando as decisões.

Falo de algum observador, vendo aquilo que os médicos costumam fazer, seguindo a versão que aprenderam na escola de Medicina. Isto é, que cada sintoma, como uma demonstração física, merece algum tratamento. "Iremos agressivamente fazer tudo para vencer a doença!", pensam.

Essa crença poderia ser modificada e transportada para outra realidade. O técnico poderia parar e analisar "sim, eu vou usar tudo aquilo que eu conheço, escolher o tipo correto de intervenção para amenizar o sofrimento deste outro ser humano". Decidir que métodos devem ser interrompidos, se usados até então com a  única intenção de impedir que a pessoa morra. Essa é medicina paliativa, dentro da perspectiva que tento oferecer como alternativa.

CB - Entre leigos, chega a ser um pensamento comum acreditar que  se o médico deixar de apelar para todos métodos disponíveis para impedir a morte, estaria se colocando no lugar de "Deus",  decidindo sobre a vida e a morte. Então, na opinião do senhor, acontece o contrário? Se insistir demais,  o profissional pode estar assumindo uma posição arrogante, atribuindo-se um poder quase "divino"?

Drane - Essa é uma das formas de nos referirmos a essas situações. Pessoalmente, não gosto desta imagem em particular. Porque, seriamente, nenhum médico, como simples ser humano, se colocaria numa posição divina. Nem ele e nem ninguém!

Sob alguns aspectos, entretanto, é bastante positivo para o médico "assumir" a postura de "Deus" (diz o professor, enfatizando as aspas). Quando você está apenas doente e não morrendo, é ótimo estar sendo cuidado por alguém que acredita: "eu posso fazer isso". Isto é, o necessário para fazer você melhorar. É uma conduta respeitável, não existe nada de errado nela.

Só que não há a necessidade de o médico reconhecer a morte como "a inimiga" ou a "ladra". Se aprender a diagnosticar com correção a progressão do processo de morte pode ajudar, de maneira mais efetiva, seu paciente a ter uma partida digna.

Basta mudar a compreensão relativa à palavra "fim". Assim, em vez de intervir agressivamente como num campo de batalha, conseguirá dar maior atenção, assistência, suporte, tocar realmente naquele sofredor.

CB - É o que chamam de ortotanásia? (*de acordo com algumas publicações, ortotanásia significa a morte digna e humana, na hora certa. Procura respeitar o bem-estar global da pessoa, abrindo espaço para o viver e o morrer com dignidade)

Drane - Ortotanásia é uma maneira de referir-se a esse tipo de atitude. Outra forma é encarar estas ações simplesmente como valorização da "morte humanitária".

Veja: a percepção da Medicina a respeito do quanto é importante "o morrer bem" teve impulso na Idade Média. A única forma de ver-se livre de várias  moléstias, na concepção daquela época, era  o doente encaminhar-se até santuários e pedir a Deus pela cura.

No caminho, os peregrinos que não agüentavam a viagem paravam em pequenas casas, espécies de "hotéis", recebendo a ajuda de padres e freiras. Como mais e mais peregrinos passaram a ficar doentes, os religiosos dedicaram-se a montar nestas pequenas casas "hospitais" improvisados, agora chamados de "hospícios".

Esta foi a base para toda tradição cristã de tomar conta de doentes, não importando muito se existiam ou não métodos eficazes para curá-los. Quem cuidava, fazia de tudo para amenizar o medo daquela pessoa, abraçava-a, tocava-a, rezava com ela... Em resumo, lutava para aliviar as dores que provocam o sofrimento. Não somente as dores físicas. São os cuidados paliativos, datados do início da Medicina.

A Medicina moderna mudou essa tradição. Tudo começou a ser avaliado em termos de partes físicas, patologias e intervenções agressivas, como se estivéssemos em um cenário de guerra. Agora, depois de mais de um século, parece que estamos retornando a alguns conceitos de cuidados paliativos.

CB - Parece ser difícil dizer aos médicos que devem simplesmente amenizar sofrimentos... Eles ouvem, desde os primeiros anos de faculdade, que precisam fazer tudo para impedir a morte.

Drane -  Acho que o médico que tem como únicos objetivos salvar a vida e impedir a morte pode nem perceber, mas pode estar apenas contribuindo para a manutenção do sofrimento do seu paciente.

Será que alguém que aceita e reconhece a morte, que faz um diagnóstico médico correto de que, infelizmente, seu doente está partindo, não estaria ajudando muito mais se prestasse cuidados paliativos? O que queremos fazer, buscar o impossível? (enfático)

Hoje, parece que a medicina tradicional está "incorporando" a medicina de cuidados paliativos. Trata-se de uma nova especialidade, para a qual médicos  recebem treinamento especial.

CB - Na prática, quais são os cuidados paliativos a respeito dos quais o senhor tanto fala? A grande meta é fazer com que o paciente terminal não sinta dor?

Drane - Há alguns enfoques. Mas, basicamente, procuramos ter a certeza, o quanto é possível, de que nosso doente não está sentindo dores físicas.

Um especialista em cuidados paliativos deve, por exemplo, conhecer cada milímetro do sofisticado sistema nervoso que vai da coluna vertebral até o cérebro. Lá, estão localizados vários comunicadores químicos de dor. As vezes, em casos extremos, deverá cortar um nervo, visando acabar com a dor.  Então, a assistência médica, técnica, vem em primeiro lugar.

Em segundo, nossos doutores também precisam estar preparados para auxiliar nos casos de sofrimento, sem dor. Entenda: nem toda a dor leva ao sofrimento e nem todo o sofrimento leva à dor. Exemplo? Se um jogador de futebol brasileiro defender a bola no tórax, evitando o gol do adversário. Sentirá dor, mas estará sofrendo? Não, estará feliz da vida!

Muitas pessoas que se encontram no final de vida, carregam terríveis sofrimentos, mesmo que não sintam quaisquer desconfortos físicos. Algo do "eu interior" delas pode estar machucado, sem que ninguém perceba. Essas dores têm que ser respeitadas!

CB - É um tipo de pensamento bioético, não? 

Drane - Exatamente. Tentar descobrir a fonte interior do sofrimento e empenhar-se em ajudar faz parte das funções de um especialista em cuidados de fim de vida. Este profissional precisa ser sensível.

Qual é a causa daquele sofrimento? Talvez exista um problema dentro na família do paciente, pode ser que precise de alguém com quem dividir... O problema pode estar ligado às suas crenças, ele realmente acredita que Deus o está punindo. Isso é capaz de criar um terrível sofrimento! O paciente pode sentir que está perdendo sua proposta de vida, como alguém que escreveu um livro anos a fio, mas não apresenta mais condições de finalizá-lo... 

Por tudo isso, o médico que pretende dedicar-se a cuidados paliativos deve ter alguma coisa de psicólogo, filósofo, padre...

CB - Padre?!

Drane - Claro! Pois o sofrimento, às vezes, vem do âmbito espiritual. O doente sofre por estar preocupado com o "julgamento final", com seus "pecados"...

Há causas para o sofrimento tão variadas e particulares... Certa vez, ouvi a história de um homem à beira da morte. Todo o bairro, a comunidade, sabia da situação. Só que, de acordo com ele, o sofrimento pela dor física era nada, perto daquilo que descreveu como o "sofrimento terrível": de forma alguma, as pessoas em volta pareciam não entender ou respeitar pelo que ele estava passando. Não prestavam atenção, falavam banalidades...

É um bom exemplo sobre um jeito horrível de morrer. Quando não há atenção ao sofrimento. Não existe compaixão.

Este homem sofria e se questionava: "por que todos estão agindo como se não fosse verdade?" Os outros até acreditavam que ele estava partindo, mas ninguém agia como se isso fosse acontecer... Naquele lugar, havia apenas uma pessoa capaz de fornecer a esse homem cuidados paliativos...

CB - Seu médico?

Drane - Não, seu criado. Efetivamente "percebeu" a aproximação da morte, ficou ao lado do seu patrão, falou com ele, ouviu seus medos. Tocou-o, ajudou-o a manter-se limpo, fez massagens. À sua maneira, deixou-o partir sem tanto sofrimento. Esta sim, é uma enorme batalha. Especialmente quando quem está partindo é um ser amado.

CB - Por parte dos leigos, há um certo temor de que motivos econômicos, tipo, pressões de empresas de planos de saúde, por exemplo, levem alguns especialistas a pararem com tratamentos agressivos, sem ter a certeza absoluta de que aquele paciente se encontra em processo de morte. É apenas impressão?

Drane - Compreendo o que você quer dizer. Hoje, isso não acontece mais em meu país, os Estados Unidos, ao contrário de uns 25 anos atrás.

Gradualmente, vem crescendo por lá, em todos, a conscientização de que certas atitudes "suspeitas" só servem para criar problemas, dores e rejeições. Por essa razão, a comunidade médica veio a público e afirmou categoricamente "Nós não podemos, não devemos e não iremos ceder a qualquer pressão". As Associações Médicas, a cada dia, desenvolvem mais projetos relacionados à cuidados paliativos.

CB - O  senhor é contrário ou favorável à simples eutanásia?

Drane - Devemos entender a palavra eutanásia com todo o cuidado. Na minha linguagem significa alguém, quero dizer, um médico, finalizar a vida de uma outra pessoa.

Etimologicamente, entretanto, eutanásia quer dizer Boa Morte. Ora, o que eu estive falando até agora sobre boa morte nada tem a ver com aquilo que é convencionalmente entendido por eutanásia.

Definitivamente, matar o paciente não é o que devemos fazer! Se a eutanásia se tornar legal, quem vai sofrer são os mais vulneráveis. Os mais pobres; os mais fracos e parte da população feminina serão os prováveis "candidatos" a perderem as suas vidas.

Crenças do professor Drane

.Em alguns casos, os médicos devem praticar uma medicina de cuidado, reconhecendo que a morte não é uma derrota, mas algo inevitável

.Aqueles que tratam de pacientes no final da vida precisam entender que pode haver sofrimento sem dor e que o limite da tolerância é muito individualizado

.A participação da família é fundamental. A sensação de abandono é o que de pior pode acontecer para essas pessoas (pacientes no final de vida)

.Não se pode praticar a Medicina como se fazia há 2.500 anos. A introdução da tecnologia obriga a que o paciente e sua família participem de decisões que afetem diretamente suas vidas. (Em entrevista dada ao site chileno La Tercera en Internet)

* James Drane é professor emérito de Ética Clínica da Universidade da Pensilvânia e assessor da Organização Panamericana da Saúde (OPAS) em temas de Bioética, desde o início do programa. Atualmente, é membro do Comitê Internacional Assessor em Bioética, também da Opas.
Publicou mais de 13 livros e 230 artigos em revistas científicas.

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