O que torna indivíduos, grupos ou países inteiros vulneráveis? De forma simplista, pode-se dizer que vulneráveis são as populações expostas à exploração. A partir desse ponto, fica difícil chegar-se a um acordo: o que é exatamente "exploração"? Afinal, nem todas as ações danosas aos seres humanos são resultado de repressão dos mais poderosos contra os mais fracos. Por outro lado, atitudes de proteção (aparentemente benéficas) podem não passar de absoluta falta de confiança na capacidade das pessoas de tomarem suas próprias decisões.
Exemplos dessa complicada linha de pensamento?
Há protocolos de pesquisa realizados em países pobres que - eventualmente - causariam malefícios aos participantes. Mas que... vêm ao encontro de seus anseios. "Ativistas da causa da Aids classificaram como 'paternalista e humilhante' o critério adotado pelo CIOMS (Council for International Organizations of Medical Sciences) de restringir aos países financiadores dos estudos certas fases de testes com uma vacina preventiva contra a doença", ponderou Ruth Macklin, filósofa e professora de Bioética do Albert Einstein College of Medicine em New York, a quem coube a - difícil - tarefa de conduzir a conferência Bioética, vulnerabilidade e proteção, no VI Congresso Mundial de Bioética.
Em vez de sentirem-se "protegidos", os representantes das Ongs "revoltaram-se, pois consideravam-se suficientemente informados sobre os riscos, ao assinarem o termo consentimento esclarecido", conta Ruth.
Do lado oposto da moeda, um estudo abordando nova droga contra meningite, empregado na Nigéria, a grosso modo aparentava ser benéfico, pois "várias crianças apresentaram melhoras e não havia nada para conter a terrível epidemia".
Só que " teve 'cheiro' de antiético, porque os pais não sabiam que a forma oral do remédio estava ainda em fase de testes", disse Ruth. "Os defensores da pesquisa encararam-na como 'um passo a frente em termos de 3° mundo'. Esqueceram-se dos bebês que ficaram cegos, surdos, mancos ou que morreram, sem serem avisados", lamentou.
"Para mim, a exploração ocorre quando pessoas ou agências poderosas ou ricas beneficiam-se da pobreza e impotência dos outros apenas para servir suas finalidades, sem que hajam vantagens ou benefícios a esses seres", analisou a filósofa, que abriu espaço em seu discurso para diferentes vertentes, como situações que transformam qualquer mulher em "vulnerável" - até as que contam com a "sorte" de nascer em nações ricas.
"Encontram-se assim as que não conseguem negociar o uso de preservativos com seus parceiros, ainda que eles tenham tido comportamentos sexuais de risco. E outras, que por motivos religiosos e culturais, não são donas de sua saúde reprodutiva".
Calorosamente, depois de sua apresentação, Ruth Macklin dedicou alguns minutos a uma entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp. Veja, a seguir, o resultado da conversa e o porquê da especialista julgar o Brasil como um país "poderoso".
* Por Concília Ortona
Centro de Bioética - Na abertura do VI Congresso Mundial de Bioética foi dito que seu discurso, proferido na versão anterior, em Londres, serviu como "inspiração" para o tema Poder e Injustiça. Sempre há uma relação estreita entre poderosos e injustiçados?
Ruth Macklin - É uma ótima pergunta. A resposta é que pode haver, mas não precisa haver essa relação. Minha explicação: se as pessoas que detêm o poder dedicarem-se a promover a igualdade, não há nenhuma contradição e o poder pode, sim, ser usado a serviço da justiça no mundo.
Por outro lado, se os detentores do poder não estão comprometidos com igualdade e justiça, usam sua força e influência apenas em seu próprio ganho ou a serviço de outros ricos e poderosos, então estão promovendo injustiça.
CB - Os países ricos e poderosos sempre têm maiores oportunidades de exercer seu poder contra as nações desprovidas de recursos financeiros, sociais e culturais?
Macklin - Na verdade, possuem maior habilidade para usar o poder. Usam a oportunidade para ganhar, quando poderiam empregá-la em tarefas que prestassem auxílio, assistência, enfim, dedicadas à construção da compaixão, voltada aos interesses dos países pobres. Vivemos no mesmo mundo!
Se os países ricos usarem os países pobres para seus interesses egoístas, principalmente para realizar estudos antiéticos, da mesma forma que obtêm manufaturas baratas para vender aos seus consumidores, então estão empregando seu poder para 'plantar' e divulgar a desigualdade.
Felizmente, há esforços louváveis por parte de organismos como as Nações Unidas, ou Organização Mundial da Saúde (OMS), que se comprometem em proporcionar melhor atenção à saúde ou fiscalizar as pesquisas, nos lugares carentes.
CB - O que a senhora pensa sobre pesquisas de duplo standard com seres humanos, isto é, aquelas que recorrem à metodologias diferenciadas, quando realizadas nos países ricos (que, normalmente, são os coordenadores dos trabalhos) e em países em desenvolvimento?
Macklin - (Indignada) Sou absolutamente contrária ao duplo standart. Acabam se transformando em um vergonhoso instrumento de poder, relacionado à pobreza e à impotência. Os sujeitos de pesquisa, por vezes, estão ansiosos por participar, por mera carência de atendimento digno. E, o que é pior, freqüentemente não recebem os benefícios da droga testada, depois de aprovada.
Realizar um estudo com nenhum outro objetivo a não ser estender um experimento viola o princípio bioético de primeiro não fazer mal. Todas as vezes que alguém discordar de estudos em duplo standart, seja quem for, vou me levantar e ficar ao seu lado.
CB - Na conferência de abertura do Congresso, o professor Giovanni Berlinguer referiu-se várias vezes às mulheres como um grupo vulnerável. Por sua vez, durante palestra, o professor chileno Miguel Kottow afirmou exatamente o contrário, ou seja, que "não é respeitoso referir-se às mulheres como seres vulneráveis, apenas por pertencerem ao sexo feminino". Como a senhora avalia essa questão?
Macklin - Na minha apresentação, também levantei a dúvida a respeito da 'vulnerabilidade' feminina. Concordo com o professor Kottow: certamente não é verdade e não podemos julgar que todas as mulheres, em gênero, demonstrem-se vulneráveis, pelo fato de terem nascido meninas.
Ao mesmo tempo, se olharmos para o contexto em que algumas mulheres normalmente vivem, quando a autonomia e os interesses delas são totalmente subordinados aos dos homens, às decisões tomadas por seus maridos, pais ou qualquer um que as controle, elas se tornam vulneráveis.
Situações assim acontecem tanto em países desenvolvidos, quanto em desenvolvimento: basta o poder da mulher ser 'gerenciado' por outro.
CB - Em seu discurso, a senhora falou muito sobre a problemática da Aids entre mulheres, dizendo que a epidemia, a cada dia, caminha mais para essa direção. Neste sentido, há problemas difíceis de serem solucionados: por exemplo, não é tão simples para uma mulher casada há vários anos "negociar" o uso de preservativos com o parceiro sexual, como pretendem os militantes da causa.
Macklin - Em princípio, todo portador do vírus HIV pertence a um "grupo vulnerável", sejam homens ou mulheres, pois são parte de um contexto de uma doença, infelizmente, incurável.
A questão do poder das mulheres no contexto específico da Aids e como elas se protegem, entretanto, deveria ser valorizada, tornando-se uma das primeiras exigências em educação em saúde e responsabilidade dos educadores e governos.
Mas educação é apenas o primeiro passo. O próximo: uma vez que as mulheres já estejam educadas o suficiente e sabem como proteger suas vidas, a pergunta, então, transforma-se em "elas têm habilidade para fazer isso, numa relação em que o parceiro é dominante e rejeita o uso do preservativo?"
É realmente difícil para uma senhora casada ou que tenha um companheiro há tempos exigir o uso do preservativo, ainda que existam razões de sobra para acreditar que ele mantém relações sexuais desprotegidas com outras pessoas. Então, essa mulher torna-se muito vulnerável!
São tipos de problemas e conflitos de complicada resolução, nas relações. Há 'casamentos' que, por si só, fazem das mulheres realmente vulneráveis, não apenas com relação à doença, mas também à pobreza. Especialmente se dependem financeiramente e não contam com quaisquer interesses fora do matrimônio e seus filhos.
CB - Atitudes paternalistas, quase sempre, parecem agressões contra a autonomia das pessoas. Na sua ótica, é possível que existam ações paternalistas e, ao mesmo tempo, éticas?
Macklin - Quando é ético ser paternalista? Diria que existem duas condições. Primeiro, quando quem vem sendo protegido por paternalistas concorda que realmente precisa de cuidados. Que a atutude corresponde ao respectivo anseio individual.
Há também pessoas que procuram proteger de forma compassiva seres que, teoricamente, não concordam com isso. Se enquadram aí crianças muito doentes ou portadores de problemas mentais, por exemplo. Precisam de proteção, sem prévia autorização. Nesses contextos, paternalismo pode ser justificado pela falta de autonomia.
CB - É possível incluírem-se embriões nos grupos de "vulneráveis", tomando-se por base as pesquisas médicas que levam ao descarte dos mesmos?
Macklin - Penso que embriões não devem ser vistos como seres humanos, com direitos. Então, não podem ser considerados "vulneráveis", como seriam homens, mulheres ou crianças em situações de exploração.
Pode ser que existam razões especiais para protegerem-se embriões em determinadas circunstâncias, tipo, salvaguardá-los da comercialização ou do uso inadequado. Existem, nesse ponto, aspectos que até poderiam ser classificados como vulnerabilidade...
Mas, como eu defendo um ponto de vista no qual a mulher possui o direito de controlar seu próprio corpo e de tomar as decisões pertinentes aos seus embriões no estágio inicial de 'vida', em tese, não poderia considerá-los como vulneráveis.
CB - Alguns bioeticistas vêm procurando implementar uma Bioética de intervenção e não apenas de reflexão. Como senhora, com a autoridade de ex-presidente da International Association of Bioethics (IAB), avalia isso?
Macklin - A Bioética abrange diferentes aspectos. Em algumas circunstâncias, assume posturas de reflexão e análise e, em outras, educação e treinamento. Há ainda posições apropriadas para intervenção por condições mais justas, quando fazemos parte de comitês médicos. Quanto pertencemos a estes comitês, temos a oportunidade de, por exemplo, proteger sujeitos humanos de pesquisas ou desenvolver determinadas políticas, no âmbito público.
Mas, infelizmente, muitos de nós que atuamos em Bioética, ou não temos a chance de intervir, ou podemos mudar as coisas de forma limitada, dentro das instituições nas quais trabalhamos.
CB - Hoje, a senhora considera que o Brasil seja o tipo de nação "vulnerável"?
Macklin - Não! O Brasil é um país extremamente poderoso! Trata-se de uma das mais fortes nações em desenvolvimento. Primeiro, porque tem tentado transformar seu panorama político, apesar da longa distância que separa os ricos dos pobres.
Segundo, diferentemente de outros lugares, aqui há vários movimentos fortes em defesa dos direitos da mulher.
E, finalmente, e mais importante, nos deixa absolutamente admirados a forma com que seu país vem lidando com a questão da Aids, fornecendo a terapia tripla para todos os infectados pelo HIV que dela necessitem. É um exemplo importantíssimo!
CB - Mas, em alguns aspectos, o governo foi bastante pressionado pelo movimento articulado pelas Organizações Não-Governamentais...
Macklin - A questão não é ter cedido ou não às pressões. A questão é o governo haver realmente propiciado o tratamento. Hoje, o Brasil possui uma voz reconhecida e respeitada pelo mundo afora.
Diferentes visões da professora Macklin
. Para se colocar em prática uma pesquisa, é preciso a garantia de que os pacientes entenderam suas implicações e, ainda assim, concordaram em participar
. Em pesquisas multinacionais, pessoas vulneráveis podem ser exploradas ainda que não sofram danos à saúde e prejudicadas, ainda que não passem por explorações
. Há grupos que classificam como "paternalismo" achar que países pobres, só porque são pobres, não devem ser usados como locais de pesquisas
. As religiões fundamentalistas utilizam os papéis reprodutivos da mulher como forma de controle. E o que dizer da posição da Igreja Católica, que proíbe o uso de preservativos e, portanto, permite a transmissão do HIV?
. Entre os principais exemplos de vulnerabilidade está o caso de meninas que sofrem de mutilação genital, na África: nem a motivos religiosos pode-se creditar tais crimes, praticado por pais ou responsáveis. Trata-se apenas de uma cultura machista, repressora e desumana, à qual as autoridades de saúde não conseguem acabar.
* Ruth Macklin é PhD em filosofia e professora de Bioética do Albert Einstein College of Medicine, em New York, tendo presidido a International Association of Bioethics (IAB) até o início de 2002.
É membro do Institute of Medicine dos EUA, participando atualmente de dois comitês da Organização Mundial de Saúde (OMS). Escreveu e editou dez livros, sendo que o mais recente, Against Relativism, foi publicado pela Oxford University Press. Tem mais de 180 artigos publicados em revistas das áreas de Bioética, Medicina, Filosofia, Direito e Ciências Sociais.
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