No espaço de tempo que teve para desenvolver sua palestra sobre o Estatuto Moral do Embrião, durante o VI Congresso Mundial de Bioética, em 2002, Daniel Serrão, professor de Bioética e Ética Médica da Universidade do Porto, Portugal, se dedicou a traçar um perfil histórico (quase) imparcial sobre o assunto, correspondente à visão do Conselho da Europa - organização intergovernamental da qual faz parte, que agrega 42 países europeus, cujos objetivos incluem a busca por soluções para questões complicadas, como clonagem humana, xenofobia e tráfico de drogas.
A exposição de Serrão foi tão controlada que nem chegou a chocar-se contra a proferida por sua principal debatedora, a inglesa Mary Warnock - baronesa e filósofa que coordenou no parlamento britânico o Estatuto do Pré-Embrião que permite, desde a década de 80, a manipulação em laboratório de embriões de até 14 dias, para fins terapêuticos.
Na verdade, se por um lado Serrão não foi tão veemente como o de costume em sua postura contrária à destruição desses "seres", por outro Lady Warnock demonstrou-se bem mais flexível na defesa do seu Estatuto: admitiu até que está na hora de uma revisão, frente aos novos achados da Ciência. Ambos se mantiveram em perfeita sintonia com o terceiro participante da mesa-redonda, o professor colombiano Guilhermo Hoyos, responsável pelo tema A Moral Comunicativa e a Ética da Espécie.
Apenas para dar-se uma idéia a respeito da posição de Serrão relativa a pesquisas genéticas que levem à destruição de embriões: no ano passado, após definir-se como "católico que procura discernir no mundo os sinais da misteriosa presença de Deus e médico patologista dedicado aos estudos sobre a vida humana", durante evento na PUC de São Paulo, o professor afirmou que todo o corpo, mesmo nos estágios mais iniciais, tem direito biológico à sobrevivência.
Extremamente simpático (por vezes, indignado) Daniel Serrão voltou a esse discurso com força total depois de sua apresentação no Congresso Mundial, quando gentilmente concedeu entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp. Confira, em seguida, a conversa:
Nota da R.: Infelizmente o professor Serrão faleceu em 8 de janeiro de 2017 na cidade do Porto, em Portugal.
Centro de Bioética - Durante sua palestra, o senhor disse que o Conselho da Europa (organização da qual participa como membro do Comitê Diretor de Bioética) não possui posição clara sobre o estatuto do embrião. É difícil chegar-se a um consenso?
Daniel Serrão - Sim, é muito difícil alcançar-se um consenso com relação a alguns aspectos do estatuto do embrião, ou melhor, a respeito das atribuições de um determinado estatuto e suas conseqüências éticas e morais.
O estatuto biológico do embrião é reconhecido: é indiscutível que se trata de um ser humano. Aquele embrião não vai dar em um cavalo ou em um eucalipto. O que é diverso é o valor que se atribui a este ser humano nas fases iniciais do seu desenvolvimento, consoante às teorias éticas e à posição das sociedades.
Para as teorias éticas personalistas, o embrião é um ser humano que merece proteção idêntica à dada aos adultos humanos.
CB - O senhor concorda com isto?
Serrão - Totalmente. O corpo humano, na minha opinião, é a primeira apresentação pública do ser humano. Portanto, assim como não destruo o corpo humano de um adulto, porque é um corpo humano, também não destruo o corpo humano de um embrião, pois também é um corpo humano, digno da mesma consideração.
Como o embrião ainda não é uma pessoa, não poderei respeitar suas convicções filosóficas, por exemplo, porque ele ainda não as tem. Ainda não responde por si. Mas possui corpo humano e isso para mim é o suficiente. Eu já fui um embrião, você já foi um embrião e imagine se, na época em que era, alguém a tivesse destruído. Não estaria aqui, falando comigo!
Sou absolutamente contrário a qualquer manipulação e destruição do ser humano na sua fase mais insipiente, da mesma forma que defendo a vida dos corpos animais. Não destruo um animal por prazer, nem concordo que se coloque um animal numa gaiola, para se apresentar num jardim zoológico.
CB - Os defensores da manipulação de embriões para fins terapêuticos argumentam que esta seria capaz de salvar milhares de vidas...
Serrão - Admito que você possa dar a sua vida para salvar a vida de outra pessoa porque, a essas alturas, já tem consciência e liberdade para tomar suas próprias decisões.
Por outro lado, se o Brasil exigisse que um certo número de brasileiros adultos dessem a vida para salvar a vida de outros brasileiros adultos, quem concordaria?
Ninguém pode dispor da vida de um embrião, ainda que para um fim benéfico... Porque os fins não justificam todos os meios. Quando um meio é intrinsicamente mau e, para mim, matar um embrião é intrinsicamente mau, não podemos utilizá-lo, mesmo que seja para obter o melhor benefício deste mundo. A não ser que o embrião pudesse dar o seu consentimento.
Não critico os cristãos primitivos, em Roma, que deram a vida por sua fé ou os mártires islâmicos, capazes de perder a vida na defesa de seus pontos de vista. Não acho errado, visto que o fazem de forma livre, voluntária e com exercício da autonomia.
CB - Então, os humanos deveriam salvaguardar os embriões de sua espécie, do mesmo jeito que buscam proteger outros humanos?
Serrão - Quem protege o embrião está tentando, na verdade, defender toda a sociedade. E, como disse na minha palestra, a mãe é a primeira defensora natural da vida do embrião. Confio demais nas mães, pois é nelas que podemos substanciar a proteção de um ser humano.
Continuo otimista, mesmo sabendo que algumas mulheres são capazes de produzir o abortamento, levando seus embriões ou fetos à destruição.
CB - Em sua fala, a baronesa Warnock delimitou algo bem conhecido dos cientistas, que é a chamada "linha divisória" entre pré-embrião e embrião, correspondente a 14 dias. Ela considera que, até essa fase, é lícito destruir essas células para fins justos. (* o termo "pré-embrião" é a denominação utilizada por alguns autores, em especial, norte-americanos, para o concepto humano nos primeiros dias de desenvolvimento, ou seja, desde a fecundação até a implantação no útero)
Serrão - Isso não tem qualquer espécie de significado, primeiramente, porque não existe nenhum embrião in vitro que consiga se desenvolver para além do 7° dia. Portanto, ao contrário da fecundação natural, não há nunca embriões in vitro com 14 dias, nem com 10, nem com 8. Na época em que foi feito o Warnock Report, (o Estatuto do Pré-Embrião) não havia nenhuma técnica de laboratório que permitisse desenvolver um embrião por mais de 72 horas!
Portanto aquilo foi um truque para dizer aos parlamentares ingleses 'Nós vamos proibir a investigação em embriões com mais de 14 dias', o que chama a atenção, porque é uma proibição. E, abaixo dessa data, 'faremos o que quisermos'.
Isso não têm conotação ética nenhuma. O argumento sobre a 'linha primitiva', que é o esboço da orientação do embrião no sentido longitudinal e, eventualmente, o aparecimento do primeiro tecido cerebral, não tem rigorosamente nada a ver com nada. Não faz diferença. O embrião é o mesmo ente social e o mesmo ente humano antes e depois da linha primitiva.
O cérebro não faz nenhuma distinção: em sua base, um tecido nervoso muito primitivo é igual ao do adulto. É a mesma coisa que defendermos a morte de um indivíduo débil mental, só porque o cérebro dele não funciona direito.
CB - Durante sua apresentação, o senhor disse que espera que até o fim de 2003 possa ser iniciada no Conselho da Europa uma nova discussão sobre a manipulação de embriões. Algo deve mudar, com relação ao que se pensa hoje?
Serrão - Depende do que for aprovado. Se for aprovada uma posição ética gradualista, que permita experiências que possam levar à destruição de embriões, cada país deverá fazer uma lei específica, com os critérios para essas investigações.
Se for aprovado o contrário, isto é, a proibição de pesquisas que levem à destruição desses seres, sejam quais forem os fins, como já acontece atualmente na Alemanha e em outros países, os governos deverão elaborar uma lei que as impeça.
Hoje, há países com leis que vedam a experimentação com embriões e outros que liberam.
CB - O senhor diria que existe alguma tendência, contrária ou favorável?
Serrão - A título indicativo, fizemos uma votação. Deu praticamente 50% para cada lado, fora as abstenções. Isso significa que não temos idéia sobre as posições. Como sempre estão entrando 'novos' países no Conselho da Europa, pode ser que em 2003 o sentido da votação seja diferente.
Nós, do grupo de trabalho sobre o assunto, pretendemos dirigir nossos esforços a informar os delegados, representantes dos diversos países. Todos deverão receber um documento, trazendo argumentos contra e a favor. Só depois vamos ver o resultado.
Posso ter as minhas convicções, mas como o sistema democrático dá razão à maioria, se houver os indispensáveis 2/3 favoráveis à experimentação destrutiva, será autorizada.
CB - Mesmo no meio científico onde o senhor trafega, há um apelo ou uma conotação religiosa, no momento da tomada de decisões? (Daniel Serrão, por exemplo, é membro da Academia Pontifícia Para a Vida, do Vaticano)
Serrão - Não! O fundamento da dignidade do embrião é puramente biológico, não tem nada a ver com religião!
Se as coisas fossem simplificadas a conotações religiosas, seria muito fácil. Veja: o embrião é criado por Deus, como são todos os seres. E os seres não podem ser destruídos; nem manipulados; nem comercializados; nem utilizados para coisas que não respeitem a sua dignidade. Ponto.
Matar uma pessoa é a forma mais grave de não respeitar a dignidade dela. Do ponto de vista religioso, por conseguinte, assim como a Igreja Católica, a Ortodoxa e outras não aceitam a pena de morte, também não aceitariam a destruição do embrião.
A questão se coloca no plano técnico, científico e biológico. O embrião é ou não constituído por uma estrutura biológicamente humana? É! E isto nos obriga a que nível de respeito?
É aí onde mora a diferença: o nível. Os ingleses dizem 'É humano, mas.... a gente usa, como também usamos de forma diferente outras pessoas e coisas, para obtermos os maiores benefícios. Faz parte, somos utilitaristas'.
Quer dizer que a sociedade é assim, uns pagam pelos outros?
Se não somos utilitaristas, somos personalistas, olhamos assim: isto é uma estrutura humana, e eu respeito a vida humana em todas as suas manifestações. Portanto, não devo destruí-la.
Reflexões de um patologista católico
. Essa história de se poder usar e descartar embriões até o 14° de existência porque são 'pré-embriões' é invenção de britânicos, que não querem ser chamados de antiéticos
. Hoje, diferente da época em que o Relatório Warnock foi lançado, sabemos que o embrião se desenvolve de forma contínua, desde a fecundação do óvulo. Para que o Conselho da Europa se defina é necessária uma definição clara a respeito do que eles chamam de 'pré-embrião'
. Toda pesquisa que não destrua é legítima... A descoberta da estrutura do DNA foi um dos passos mais brilhantes da ciência. Mas, se para buscar curas, for preciso realizar pesquisas que destruam embriões, isto não será aceitável no plano ético (durante seminário Manipulação da Vida: certo ou errado? realizado em dezembro de 2001 pela PUC de São Paulo)
. Mesmo nos casos de doenças genéticas, a negação do sofrimento não pode ser uma justificativa para a destruição de uma vida que já existe (durante seminário Manipulação da Vida: certo ou errado? realizado em dezembro de 2001 pela PUC de São Paulo)
* Daniel Serrão é professor de Bioética e Ética Médica na Universidade do Porto, em Portugal. Membro do Comitê Diretor de Bioética do Conselho da Europa, atualmente preside o grupo de trabalho responsável pela preparação de protocolo para a Proteção do Embrião e Feto, a ser apresentado em plenária no final de 2003.
É, ainda, membro da Academia Pontifícia para a Vida, do Vaticano.
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