Quem mantém o mínimo contato e tem acesso a alguns trechos da biografia do filósofo Peter Singer, professor da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, fica com a impressão de ser injusta e infundada a alcunha atribuída a ele pela imprensa de "Dr. Morte" australiano. Polêmicas, suas idéias são. Mas nem de longe podem ser comparadas aos atos dos outros "Doutores Morte" que já passaram para a história, como o médico inglês Harold Shipman (condenado à prisão perpétua por ter matado 215 pacientes, boa parte com injeções letais de cocaína) ou seu colega americano Jack Kevorkian (criador da "máquina" do suicídio).
Controversa ou não, sua visão a respeito da eutanásia apenas concorda em lógica com a linha filosófica a que segue, a Utilitarista, segundo a qual uma ação é moralmente correta se tende a promover a felicidade e condenável caso cause infelicidade - considerando não apenas o bem-estar do agente da ação, como também a de todos os afetados por ela.
"Se as perspectivas de futuro de um ser conterão mais sofrimento do que prazer e a morte não tiver impacto sobre a vida de outras pessoas, um utilitarista não se oporia a ela", defendeu o filósofo, durante mesa-redonda Morte Assistida, os últimos desenvolvimentos, realizada no VI Congresso Mundial de Bioética, de 2002 Além de Singer, falaram a norte-americana Margaret Peggy Battin e do holandês Jjm Van Delden.
Outra opinião que surpreendeu a platéia - mas nem tanto os admiradores do australiano - referiu-se aos direitos dos animais. Para o professor, é menos aceitável "tirar a vida de um animal, com certa capacidade mental do que a de um ser humano, com nenhuma". Vegetariano convicto (como forma de rebelar-se contra o sofrimento imposto aos não-humanos pela indústria alimentícia) é autor de Animal Liberation - livro considerado como a "Bíblia" dos direitos dos animais. Doutor Morte?
Gentil, no dia seguinte à sua palestra, Peter Singer concordou em conversar, com exclusividade, com o site do Centro de Bioética do Cremesp. Veja, a seguir, a entrevista.
Centro de Bioética - Ontem, o senhor disse algo como "é pior realizar a eutanásia em um animal que, de alguma forma, possui capacidade mental, do que em um ser humano, sem nenhuma". A idéia é polêmica, não?
Singer - Realmente, é controversa. Porque gostamos de pensar que os seres humanos sempre têm um nível mental mais elevado do que o dos animais. Mas, na verdade, isso é cientificamente falso. Sabemos que há humanos com prejuízos mentais tão severos, que os impedem de se comunicar; tomarem conta de si próprios ou resolverem problemas, muitas vezes solucionados facilmente pelos não-humanos. Deveríamos reconhecer isso, no lugar de acharmos que os seres humanos são sempre superiores aos demais.
CB - O senhor se refere a alguma determinada espécie de animal?
Singer - Na verdade, não. Mas, obviamente, chimpanzés se demonstram os melhores candidatos a terem capacidades mentais superiores, quando comparados a homens com prejuízos cerebrais graves.
CB - Na mesa-redonda sobre eutanásia, seu debatedor, o Dr. Van Delden, argumentou que a eutanásia pré-requisitada é "inconsistente" pois, nem sempre "é possível para o médico saber se um portador de demência quer realmente ser sacrificado, na época da consumação do ato". Está errado?
Singer - Gostaria de esclarecer que Van Delden não é sempre contrário à eutanásia voluntária. É favorável, quando pode-se conversar com o paciente e ter-se a certeza de que está decidido e preparado para a morte. Van Delden discorda da eutanásia voluntária apenas em situações específicas, quando o doente não tem capacidade mental para reafirmar seu desejo de morrer.
Concordo com ele que, nesse ponto, há uma brecha na lei aplicada na Holanda e na Bélgica (que exige que o solicitante da eutanásia esteja bem informado, possua compreensão clara e correta de suas condições e de outras possibilidades médicas). Deve-se respeitar a vontade de pessoas com demência que optaram pela eutanásia no passado? É difícil!
Sob o meu ponto de vista, sim, esses pacientes têm o direito da eutanásia, já que ponderaram e usaram sua autonomia enquanto ainda estavam aptos. Deixaram claras aos seus médicos especificações do tipo: "se eu me encontrar demente e não conseguir reconhecer meus próprios filhos, não quero mais continuar vivendo".
No momento da prática da eutanásia, o médico conta com autoridade suficiente para resolver. Para ele, lógico, seria melhor se fossem elaboradas regras diferentes a respeito de eutanásia voluntária em pacientes confiáveis e em não confiáveis.
CB - Mas o que o Dr. Van Delden levantou é a impossibilidade de se avaliar se a pessoa demente está infeliz e quer realmente morrer... Chegou a questionar exatamente esse critério: O paciente pode "não se lembrar mais dos nomes dos familiares. Mas como saber se não reconhece o calor humano envolvido nessa relação?"
Singer - De qualquer forma, acho que as preferências da pessoa devem ser respeitadas. Se, quando consciente, avaliou "não há dignidade em viver se eu não conseguir reconhecer meus próprios filhos", como contrariar?
Talvez alguém possa parecer bastante feliz enquanto está brincando com uma bola, ainda que não consiga reconhecer seus entes queridos.
Eu não gostaria de viver desse jeito. Ainda que exista algum mecanismo em meu corpo que me permita brincar com uma bola, mas nenhum outro, capaz de me levar a reconhecer meus parentes, falar ou fazer quaisquer outras coisas que me eram valiosas... Se for essa a situação, o certo para mim seria alguém avaliar: "ele não quer viver mais".
CB - A mesa-redonda relativa à Morte Assistida contou ainda com a presença da professora Battin, que chocou a todos quando abordou a Nu Tech, "tecnologia" barata, acessível e cada vez mais popular, que permite às pessoas se matarem em casa, sem dor nem vestígios, usando freqüentemente a inalação do gás hélio. Para os médicos, estar fora do processo de suicídio de seus pacientes não seria o caminho mais fácil?
Singer - Obviamente, seria muito mais fácil para os médicos. Mas não acho que seria o mais adequado.
Gosto da idéia do paciente poder contar um médico, ou melhor, com dois médicos, como acontece na Holanda e na Bélgica. A pessoa pode questionar, ter com quem conversar e, principalmente, confiar em alguém capaz de dizer "veja, você ainda pode aproveitar sua vida" ou, na pior das hipóteses, obter uma posição técnica referente às chances reais de recuperação ou sobre a inexistência das mesmas.
Se o suicídio for facilitado a esse nível, alguns podem cometer o erro de se matar enquanto estão temporariamente deprimidos ou coisa assim...
CB - Então, essa popularização da Nu Tech é perigosa?
Singer - Em todos os sentidos. Contraria a postura daqueles que acreditam em eutanásia voluntária. Mesmo nos países que proíbem a eutanásia voluntária, essa facilitação levaria a algumas pessoas a acabarem com suas vidas, quando o ideal seria que não o fizessem.
CB - Primeiro, a eutanásia foi aprovada na Holanda, depois, na Bélgica. Também é permitida no estado de Oregon, nos EUA. Trata-se de uma tendência, que pode se expandir para outros países?
Singer - Sim, penso que isso vai acontecer. Só não posso prever quando... Pode demorar mais de 10 anos. A Bélgica custou a seguir o exemplo da Holanda que, durante um bom tempo, foi o único país a permitir a eutanásia, em certas circunstâncias e com regras bastante severas.
CB - É diferente defender a eutanásia em seu país, a Austrália, se o senhor comparar com outros tipos de culturas, onde prevalecem padrões religiosos rígidos?
Singer - Isso é verdade. Mas tudo parece estar mudando. Veja: a Espanha e a Itália são dominadas por padrões religiosos rígidos, são países fortemente católicos, mas que vêm demonstrando abertura com relação a outras áreas da vida, em termos da aceitação do aborto e fertilização in vitro, por exemplo. Acho que os pensamentos já não são tão radicais e, talvez, outros países latino-americanos católicos estejam indo pelo mesmo caminho.
Esse enfraquecimento das autoridades religiosas é algo positivo. As sociedades inseridas em culturas fortemente religiosas demoram mais a se desenvolver em vários aspectos, dentro de diferentes perspectivas. Existem culturas e países que simplesmente rejeitam as pessoas que não aceitam suas crenças religiosas, tentam impedir o direito dos cidadãos de tomarem suas próprias decisões. Trata-se de uma violação enorme.
CB - O senhor foi o primeiro presidente da International Association of Bioethics (IAB), nos anos 70. Com relação à Bioética, quais foram as principais mudanças, de lá para cá?
Singer - Uma grande modificação: estamos no Brasil! Seu país, além da Argentina, Chile, enfim, vários representantes da América Latina, têm se mostrado preocupados com os dilemas bioéticos e estão trabalhando nisso.
Na década de 70, a Bioética era essencialmente um fenômeno norte-americano, acompanhado por poucas pessoas da Inglaterra, Austrália, Canadá... Nos anos 80, "explodiu" em países europeus e na década de 90, se tornou bastante difundida em vários países. É a "globalização" da Bioética!
E a Bioética se inseriu em perspectivas diferentes, pensamentos variados, o que é muito bom, pois tornou os debates maiores e mais abertos.
CB - O VI Congresso Mundial teve como tema O Poder e a Injustiça. A Bioética está mais politizada?
Singer - Sei que o tema escolhido foi Poder e Injustiça. Mas, para ser sincero, não notei que as discussões e as sessões tiveram tendências muito diferentes das verificadas nos Congressos Mundiais anteriores. Não sei o quanto a política realmente norteou os debates.
CB - Buscou-se transformar a Bioética em uma disciplina não apenas reflexiva, mas também com perspectivas intervencionistas.
Singer - Penso que a Bioética não deve intervir diretamente na vida dos indivíduos. A intervenção deve acontecer, no sentido de conduzir as pessoas a terem diferentes pensamentos, capazes de levá-las a diferentes modos de vida e posturas.
Não vejo que isso seja nem reflexão, nem intervenção: trata-se de uma intervenção nas reflexões. Complicado?
Idéias polêmicas
- Achamos que a morte é sempre uma coisa má e, por isso, tendemos a ver a eutanásia como algo que viola as regras. Mas não seria melhor, em certas circunstâncias, quebrar essas normas para se chegar às melhores conseqüências?
- É errado considerar só o que sentem os membros de uma determinada espécie, se há outros seres vivos que também experimentam emoções.
- Os utilitaristas trabalham com as preferências e a autonomia. Atuam com qualquer ser capaz de trabalhar com a razão. O que não inclui todos os seres humanos e não exclui todos os animais.
- "Não vamos matar nunca" pode não ser o certo: a vontade de morrer, as vezes, é a decisão correta para um pobre sofredor.
- Ao praticarmos a eutanásia previamente autorizada, no caso de pessoas dementes, devemos também ponderar a respeito do impacto sobre os outros. Dependendo das circunstâncias, as conseqüências podem ser devastadoras, sem efeito ou até um alívio.
- Por que nós trancamos chimpanzés em pavorosos centros de pesquisas e os usamos em experiências, que variam de desconfortáveis a agonizantes e letais e nunca pensaríamos em fazer o mesmo com seres humanos, com nível mental muito menor? A única resposta possível é que os chimpanzés, não importa o quão brilhantes forem, não são humanos. (do livro A Liberação dos Animais)
- Como pode um homem que não seja sádico passar seu dia de trabalho aquecendo um cão não anestesiado até levá-lo à morte ou conduzindo um macaco a uma depressão eterna e, depois, apenas tirar seu jaleco branco, lavar as mãos e ir para casa jantar com sua esposa e filhos? (do livro A Liberação dos Animais)
* Peter Singer foi o fundador e o primeiro presidente da International Association of Bioethics (IAB)
Atualmente, é professor da Princeton University, nos Estados Unidos. Foi fundador e professor de Filosofia do Centre for Human Bioethics, da Monash University, Melbourne, Australia.
É autor dos livros A Liberação dos Animais e Ética Prática
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