Plenária Temática: Confira a cobertura completa

Plenária discute a descriminalização ao porte de cannabis por usuários

A plenária temática “Descriminalização do Porte por Usuários de Cannabis” aconteceu no dia 4 de dezembro, na sede do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), Consolação. Representantes da área Médica – em especial, psiquiatras – do Direito, da Antropologia e da Sociologia participaram do debate sobre tema aberto à discussão democrática, além de atual, já que tramita na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF).

Naquela Casa, a pauta sobre descriminalização chegou a ser discutida em setembro, mas continua sem definição. Partiu da história do detento Francisco Benedito da Silva que, em 2009, foi surpreendido em presídio em Diadema, São Paulo, com três gramas de maconha para uso pessoal, sendo condenado, apesar de preso, à prestação de serviços comunitários. À época, a defensoria pública de São Paulo valeu-se de recurso especial para questionar a constitucionalidade do Art. 28 da Lei de Drogas – que, em essência, penaliza pessoas que portam drogas para uso pessoal – usada para como base da condenação de Silva. 

As peculiaridades presentes nos desdobramentos do caso tornaram-se o fio condutor de várias falas da plenária temática no Cremesp. No abertura dos trabalhos, o coordenador do evento, Mauro Aranha, afirmou que o Conselho, do qual também é vice-presidente e encabeça a Câmara Técnica de Psiquiatria, ainda “não tem uma decisão ou consenso sobre o tema”, e por isso, sugeriu um debate, com o intuito de discutir aspectos como é necessário diferenciar usuário de dependente?; é factível usar a quantidade de drogas, como critério de distinção entre usuários e traficantes?entre outros pontos.

Em intervenções promovidas entre cada palestra,Aranha enfatizou “ser essencial” prestaratenção em determinados grupos mobilizados pela comercialização do principio ativo da maconha por interesses próprios e escusos, “nem sempre ladeados com a saúde pública”.

Além disso, argumentou que cabe à sociedade decidir descriminalizar ou não. Porém “se descriminalizar é preciso regular, senão os riscos sociais e médicos vão ser maiores” do que os atuais. Em consequência, lembrou que, “para regular, é preciso legalizar”.

Vanguarda
A necessidade de fomentar o debate também esteve presente na fala de Bráulio Luna Filho, presidente do Cremesp. “O Conselho de São Paulo sempre esteve na vanguarda do debate de assuntos importantes no país, e não seria dessa vez que ficaria de fora (...). Como tribunal de ética, é óbvio que a intenção não é dar um direcionamento político e, sim, abrir caminhos para discussõesdemocráticas e construtivas”.

Reforçou que o Conselho não ousaria propor medidas imediatas no assunto até que “estiver maduro o suficiente” para tanto.

Em seu discurso de abertura, o conselheiro Reinaldo Ayer de Oliveira, destacou o fato de sero Cremesp é o primeiro e único CRM do Brasil a contar com um Centro de Bioética,que surgiu como espaço de reflexão sobre assuntos não incluídos nos ditames deontológicos do Código de Ética Médica – como o que motivou a plenária temática em tela. Atual coordenador do Centro, Ayer considerou “que temas polêmicos deveriam ser tratados de várias maneiras, de acordo com os valores presentes em determinado momento histórico”.

Isso ocorreu, por exemplo, com as discussões referentes às limitações em terminalidade de vida, iniciadas na Câmara Técnica Interdisciplinar de Bioética do Conselho, abertas a consulta pública, e assumidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), em Resolução, e no Código de Ética Médica.

Potenciais terapêuticos?
O psiquiatra André Malbergier, coordenador do Grupo de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria do HC-USP destacou o fato de o tetraidrocanabinol (THC) ser a principal substância psicoativa encontrada nas plantas do gênero Cannabis e ter, em princípio, potenciais terapêuticos. Porém, os números mostram que o hábito, como recreação, merece reflexão: “no mundo estimam-se 181 milhões de usuários de maconha, o que significa ‘um Brasil’ de adeptos”. Entre médicos, defende ser“preciso analisar não apenas o uso, mas também os graus de dependência”.

Dados do II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD), promovido pelo Instituto Nacional de Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (INPAD) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), apontam que,ao longo da vida, de cada dez homens adultos, um já experimentou maconha. Dentre os usuários, os homens usam três vezes mais que as mulheres e quase 40% dos adultos usuários de maconha são dependentes. Dezessete por cento dos adolescentes que usaram maconha no último ano conseguiram a droga na escola.

Como explica Malbergier, estima-se que 9% dos que usam maconha se tornarão dependentes, quantidade que sobe para 17% entre os que iniciaram o uso antes dos 20 anos.

Para o médico, antes de uma eventual tomada de decisão a respeito da descriminalização do porte algumas questões precisam ser respondidas, como: a sociedade tem o direito de legislar sobre uso de drogas do individuo?; quais seriam os benefícios?;descriminalizar aumenta o consumo?; asociedade aceita os possíveis riscos associados ao uso de cannabis?

Por fim, o psiquiatra relatou a experiência dos conhecidos coffee shops holandeses, situados principalmente em Amsterdã, onde se pode vender e é tolerado o consumo de até cinco gramas de maconha: era esperado o aumento do uso – o que não aconteceu –, talvez porque os preços mantiveram-se elevados, por conta de limitações voltadas à produção. “O sistema holandês serve para argumentos tanto pela proibição completa quanto para a total legalização”.

Segura?

Apesar de não ser isenta de riscos, a maconha é uma droga relativamente segura.

Esta é a opinião do psiquiatra Luís Fernando Tófoli, coordenador do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (LEIPSI),da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). “Em qualquer discussão, torna-se necessário diferenciar descriminalização, despenalização e tolerância às drogas. Em nosso meio, estamos refletindo quanto à descriminalização, isto é, continuam sendo proibidas, mas os infratores não vão ser presos”.

De acordo com estudos,explicou, os riscos de dependência parecem maiores àqueles que fumam maconha precocemente e intensamente. Porém, “há claros confundidores sociaise muita cortina de fumaça sobre o tamanho dos efeitos”.

Nesse contexto, um eventualdiálogo focalizado nos riscos médicos é insuficiente na realidade brasileira, com pouca literatura a respeito: torna-se fundamental investigar os impactos epidemiológicos e sociais associados à descriminalização do porte de cannabisnos paísesem queesta ocorreu. Em Portugal, por exemplo, onde desde 2001 há descriminalização de todas as drogas,estudos demonstram que não houve redução no preço das drogas ilícitas e nenhuma diferença substancial nas taxas de uso.

De acordo com Tófoli, a maioria dos trabalhos que avaliaramo impacto social da descriminalização –inclusive da maconha–não aponta grandes riscos sociais. “O maior parece ser o de uso por adolescentes, mas há resultados contraditórios. É difícil definir causa e efeito, sendo possível que isso se deva a como a mensagem social é disseminada”.

Por fim, trouxe editorial do Jornal Brasileiro de Psiquiatria, do ano de 1980, no qual é ponderado que o perigomaior do uso da maconha é expor jovens a consequências de ordem policial sumamente traumáticas. “Não há duvidas de que cinco dias de detenção em qualquer estabelecimento policial são mais nocivos física e mentalmente do que cinco anos de uso continuado de maconha”.

Como definir quantidade de porte?
Na opinião dos juristas que estiveram presentes ao evento do Cremesp, o que motivaas atuais discussões é, na verdade, o Art. 28 da Lei n° 11.343/2006 (que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas), que, em suma, pune com advertência, prestação de serviço à comunidade ou medida educativa indivíduo que “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

A lei determina que as punições valhampara quem porta para consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

Como reza a lei, “para determinar se a droga destina-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como, à conduta e aos antecedentes do agente”.

Na opinião advogado João Daniel Rassi, coautor do livro Lei Antidrogas Anotado,mensurar a quantidade de drogas para criminalizar quem porta é um equívoco. “No momento em que é pego, um traficante pode estar com três papelotes de cocaína, mas continua sendo um traficante”.

Segundo informou, existem dois tipos de tendências jurídicas em relação à matéria, a de proibicionismo, herdada da época do presidente republicano dos EUA, Richard Nixon (1969 a 1974), e o liberalismo, deflagradoem alguns países da Europa. “A lei mais recente do Brasil, de 2006, além de não despenalizar quem carrega a substância para consumo próprio ainda criou novas punições”, disse Rassi, explicando que o legislador deste texto não difere a maconha de nenhum outro tipo de droga.

A Lei sobre Drogas, para Vicente Greco Filho, membro da Procuradoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo e professor de direito da USP, chega a ser um avanço, no sentido de propiciar um tratamento legal às drogas consideradas ilegais. “No meu entender haveria uma contradição entre punir o distribuidor e não punir o usuário”. O que, explica o professor, não chegaria a ser novidade, considerando-se, por exemplo, que a prostituição não é crime no país, mas incentivá-la, sim; suicídio não corresponde a crime, mas induzi-lo, é.

Desde 1940 e até 2006, a doutrina dominante era de que trazer consigo droga para o uso próprio não se constituiria em crime. Porém, “não vamos implodir se o Supremo declarar inconstitucionalidade ao Art. 28” brinca o velho professor, que levantou algumas “deformações” perigosas do âmbito do direito administrativo, de descriminalizar o uso, mas não regulá-lo, vinculadas aos efeitos de drogas ao dirigir; usá-las no ambiente de trabalho e em relação a fumantes passivos.

De qualquer maneira, antes de qualquer medida ser adotada pelo Supremo, assegurou ser necessário um amplo debate. “Neste ponto, o STF está evocando um poder que não possui. O representante do povo é o Congresso Nacional e, pelo menos em tese, deveria ser a sede do conflito”.

Dossiês
Em seu discurso, o antropólogo Maurício Fiore, coordenador Científicoda Plataforma Brasileirade Políticade Drogas (PBPD) trouxe a público dois dossiês elaborados pelo órgão ao qual representa.

O primeiro dossiê busca responder três perguntas: 1) Descriminalizar o uso de drogas ilícitas pode levar a um aumento do consumo?; 2) Descriminalizar a posse de drogas para uso pessoal pode causar aumento da violência?; 3) Quais são os principais danos acarretados pela criminalização do uso de drogas e que efeitos positivos poderia trazer?

Para reflexão, o antropólogo trouxe estudos, como o do Centro Europeu de Monitoramento de Drogas e Dependência (sigla em inglês, EMCDDA), que revelam não haver relação direta entre prevalência de consumo e restrições legais mais ou menos rígidas ao porte de maconha para uso pessoal. Ainda de acordo com o pesquisador, outros trabalhosindicam que a prevalência do consumo de drogas, inclusive do consumo mais problemático, “responde a um conjunto muito mais amplo de fatores, entre os quais a criminalização tem pouca influência”.

O segundo dossiê sobre o assunto direciona-se ao que chamou de“dados questionáveis” apresentadas ao STF. Um dos Procuradores Gerais da República, por exemplo, afirmou, no julgamento da matéria, que “consumir drogas sempre causa dano. E, se é ilícita, então, o dano pode ser irreparável”. O documento da PBPD argumenta ser o termo “drogas” muito abrangente, e que as afirmações não condizem com as evidências disponíveis.

Outro dado “questionável” identificado pelo PBPD refere-se à declaração de que “a conduta de porte traz consigo a possibilidade de propagação do vício no meio social”. Segundo o antropólogo, ninguém provou que “a posse de uma substância consiga, por si só, servir como um vetor para o aumento do consumo”.

Segundo Fiore, coordenar uma política sobre drogas é algo extremamente complexo: não se trata, apenas, de legalizar ou descriminalizar. “Não existeneutralidade em política neste assunto, pois a forma com que apresentamos os dados e escolhemos os instrumentos políticos nunca é neutra”.

A própria maneira com que as questões são formuladas à população para criar estatísticas consegue influenciar nas respostas. “Se perguntamos ‘você é a favor da descriminalização das drogas?’ teremos um resultado muito diferente de sequestionarmos ‘você é a favor de que o Estado tribute e regule as drogas’?”.

Estigma
No último discurso da plenária temática, a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC),da Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro, opinou que a proibição ao porte de drogas para o consumo próprio “provoca uma guerra no Brasil que mata milhares de pessoas”, sendo que as piores consequências recaem sobre as “populações já estigmatizadas”, em especial, negras e pobres.

Apenas para dar uma ideia, dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado em 2014, estimam que de 2009 a 2013 ocorreram mais de 230.000 mortes violentas vinculadas ao consumo-trafico de drogas; diariamente são registradas oito mortes pela polícia. Entre 2009 e 2014, mais de 2.000 policiais envolvidos na guerra contra as drogas foram mortos. “O combate violento ao tráfico provoca medo e é uma das causas das tragédias cotidianas nos grandes centros urbanos”.

Como argumentou Lembruber, a falta de regulamentação leva a custos financeiros e humanos muito altos todos os anos, atingindo a casa de R$ 3.6 bilhões.

Considerando números como os citados, explicou a socióloga, o CESEC lançou a campanha permanente “Da Proibição Nasce o Tráfico”, para estimular o debate público sobre os danos que a proibição de determinadas drogas causa à sociedade. Utiliza estratégias criativas de comunicação – por exemplo, cartazes em ônibus – para demonstrar como o modelo de “guerra às drogas” falha em seu principal objetivo: diminuir o consumo de drogas e garantir segurança e bem-estar.

Ao final da plenária temática o debate foi aberto à plateia, que se manifestou com opiniões de ambos os lados – contrárias e favoráveis à descriminalização do porte.

Lembrando: em breve, será lançado um livro com a íntegra deste evento. Não perca! 


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