Como resolver uma “bioturbulência”
Neste momento, figura entre as grandes preocupações do médico e professor Reinaldo Felippe Nery Guimarães sugerir “um arcabouço institucional” para que o país possa “enfrentar” de maneira adequada a Bioética – classificada por ele, ao lado da Biossegurança e da Biotecnologia, como uma das bioturbulências. “Tratam-se de temas aos quais têm sido colocadas perguntas numa velocidade maior do que os técnicos e demais interessados conseguem responder”.
Adentrar nesse – agitado – campo é desafio ao diretor do departamento de Ciência em Tecnologia do Ministério da Saúde desde 2003, assim que portaria do Ministério designou-o como coordenador do Grupo de Trabalho (GT) de Bioética. Tarefa número 1: propor anteprojeto de Lei sobre a criação do Conselho Nacional de Bioética, possível órgão consultor da Presidência da República nos assuntos da área.
“Na administração passada houve a tentativa de criação de uma Comissão de Bioética, no âmbito do Ministério da Saúde. Esta não prosperou não só porque ocorreu no final de governo, quando as energias não são tão fortes, mas talvez – e mais importantemente – porque um Conselho como este não pode localizar-se na Saúde, indicando que Bioética é assunto apenas sanitário” recordou o professor, durante apresentação do anteprojeto à platéia do Cremesp – um dos seis fóruns promovidos no Brasil com o mesmo fim.
Além de São Paulo, encontros voltados à discussão do texto sugerido foram realizados no Rio de Janeiro, Manaus, Recife, Porto Alegre e em Brasília. O esboço da lei foi submetido à Consulta Pública até o dia 30 de novembro de 2004.
Mas por que tanta abertura à participação popular na futura lei? “Entendemos que, muito embora houvesse a possibilidade de apresentarmos a proposta em outro ‘envelope’, em forma de decreto presidencial, nos pareceu que a relevância e a importância dadas a este tema seriam enaltecidas se pudéssemos contar com a intervenção da sociedade na conformação final do texto”, contou o – democrático – professor que, logo após o evento, gentilmente concedeu entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp. Veja o resultado:
Entrevista com Reinaldo Nery Guimarães
Centro de Bioética – A idéia de se organizar um Conselho de Bioética surgiu basicamente daquela “tentativa” feita no final de 2002, ou antecede a ela?
Reinaldo Guimarães – Não. Conforme Gabriel mencionou durante a exposição dos antecedentes internacionais em conselhos de Bioética (referindo-se a Gabriel Oselka, coordenador do Centro de Bioética e membro do GT) , há uma história que começou na década de 70 nos EUA e, um pouco mais tarde, na Europa.
Tais idéias ganharam destaque porque a Bioética tornou-se um tópico relevante: dúvidas e reflexões ficaram bastante freqüentes.
Mas no Brasil, sim, a primeira idéia que se teve, pelo menos da qual temos registro, ocorreu no final do governo passado, com disposições pouco propícias.
Cbio – A idéia é que o Conselho seja vinculado à presidência da República, em vez de dirigir-se ao Ministério da Saúde. Não seria mais “producente” se fosse subordinado ao segundo?
RG – Não, não me parece. Porque existem aspectos bioéticos, por exemplo, na questão ambiental, que, no âmbito do governo federal, está adstrita a outro Ministério.
Se você pegar um conceito ampliado de Bioética, com o qual o nosso grupo está trabalhando, esta não se liga somente à vida humana, mas também à vida animal, vegetal... Enfim, há outros componentes.
Reconheço, no entanto, que o Ministério da Saúde conta com um protagonismo grande, mas não com a exclusividade nas questões da Bioética. E o reconhecimento deste protagonismo já foi dado, quando a Casa Civil da Presidência da República pediu ao ministro Humberto Costa que criasse e organizasse o GT.
Cbio – Nem sempre é fácil aos não-iniciados distinguir que temas referem-se à Bioética. Somente fala-se nisso quando aparecem polêmicas... É possível demonstrar aos “leigos” o porquê da criação desse Conselho?
RG – As pessoas sentem e percebem que as questões da Bioética, bem como as relativas à Biossegurança, são capazes de resultar em um impacto público imenso à toda a sociedade.
Têm dúvidas e inseguranças que envolvem Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) e uma série de outras questões ambientais; o aborto em anencefalia; o conceito de quando começa a vida; a idéia do que é morte cerebral.....
Aspectos bioéticos que resultam de uma tensão legítima existente entre a necessidade de o país se desenvolver e, por outro lado, aos limites deste desenvolvimento.
Alguém pode dizer, “já existem vários organismos que tratam desses assuntos”. Só que o conceito é diferente...
Cbio – Existem organismos que tratam desses assuntos? (risos) Qual é a diferença?
RG – A principal: as outras instâncias prestam-se a normatizar, o que não será prerrogativa de um Conselho Nacional de Bioética.
Cito como exemplo a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). O sistema Conep/Ceps (Comitês de Ética em Pesquisa) formula opiniões, reage a estímulos individuais e também estabelece normas.
Diz: “esse protocolo de pesquisa está adequado, pode fazer. Este outro não está adequado, deve mudar”.
O Conselho Nacional de Bioética pode expressar uma opinião sobre algum aspecto de vigilância sanitária que se relaciona à Bioética. Entretanto, não estabelecerá regras, atribuição da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o órgão regulador específico.
O Conselho fará uma apreciação moral, uma apreciação ética, do problema tomado, digamos, como uma generalidade. E aí aconselhará o presidente da República.
Cbio – Durante a apresetação do projeto, (no Cremesp) o senhor citou uma espécie de “reclamação” feita por um membro do Conselho Nacional de Saúde (CNS), por este não haver “participado do processo” de elaboração do anteprojeto. O maior “choque” não seria com o próprio CNS?
RG – O CNS participou em parte do processo, porque o Dr. Moisés Goldbaum é conselheiro nacional de saúde e faz parte do GT. Entretanto, concordo que devemos apresentar essa proposta ao CNS, já que é um conselho muito importante e cioso de suas prerrogativas de ator essencial no controle social da área da Saúde.
Porém, é essencial salientar que não haverá superposição de papéis, pois o CNS não é consultivo. É presidido por ministro de Estado, possui missão deliberativa, de formulação da política nacional de saúde. Formular política é normatizar.
É totalmente diferente desse novo órgão.
Cbio – Terminada a consulta pública, quais serão os próximos passos?
RG – Entregar a proposta a quem a encomendou.
Isto é, incluímos as sugestões pertinentes e encaminharemos o documento às mãos do Ministro da Saúde, que o entregará ao ministro chefe da Casa Civil, quem fez a encomenda.
Aí, evidentemente se estiver de acordo, o governo vai encaminhar o texto como projeto de lei ao Congresso Nacional.
Cbio – Apenas para “arrematar” tudo o que estivemos conversando. Para a população, na prática, qual é a utilidade de um Conselho Nacional de Bioética?
RG – Cada vez mais, assuntos bioéticos incomodam e podem interferir na vida das pessoas. Para que o governo decida adequadamente é fundamental que seja bem aconselhado, segundo conteúdos técnico-científicos e éticos muito sólidos.
Então, um “bom conselho” ao presidente da República pode levar a um impacto muito grande na vida de cidadãos. A falta deste “bom conselho” gera, por exemplo, determinadas perplexidades como a que vimos no caso da tramitação da Lei de Biossegurança – onde se colocaram tópicos que não tinham relação entre si, como pesquisas com células-tronco. Fizeram uma enorme mistura.
* Reinaldo Felippe Nery Guimarães é médico e mestre em Ciência em Medicina Social e foi professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) até 1988. Detentor de profundo conhecimento acadêmico e sólida ligação com entidades de fomento à pesquisa, direcionou sua carreira para a área pesquisa e gestão de Ciência e Tecnologia. Possui extensa produção bibliográfica sobre o assunto, tendo publicado mais de 50 obras entre artigos científicos em periódicos e livros.
Atualmente é presidente do Conselho Superior da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ) e conselheiro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
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