Cada paciente é único e, por isso, os dilemas éticos devem ser analisados caso a caso pelos Comitês de Bioética. Correto?
Nem sempre, defende o professor Daniel Gutiérrez-Martínez, do Colégio Mexiquense de Ciências Sociais que, em seu (impressionante) currículo, apresenta títulos como o de PhD em Sociologia da Religião pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), Paris, França, e de Mestre em Antropologia da Sociologia Política, pela Panthéon-Sorbonne, também na capital francesa.
Na visão de Martínez os limites se apresentam porque “a diversidade entre os indivíduos é tão complexa e vasta, que seria bastante difícil gerar um espaço específico para cada diferença”.
A forma com que propõe a avaliação de situações de conjuntos de pessoas, capaz de estruturar um raciocínio ético comum, parte, então, da identificação dos valores compartilhados por todas as culturas.
Esses pontos existem, sim, conforme exemplificou em entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp, concedida depois de sua participação no último Congresso Brasileiro de Bioética, que teve como tema a Bioética, Laicidade e Diversidades. Na ocasião chegou a questionar se o Brasil é realmente um Estado “laico” (que não possui uma religião oficial), conforme sugere a Constituição de 1988.
Confira, a seguir, a íntegra da conversa:
Daniel Gutiérrez-Martínez
CBIO – O senhor defende a possibilidade de aplicação de uma “ética comum” às mais diferentes situações, inclusive, as sanitárias. As análises não deveriam ser feitas caso a caso?
Daniel Gutiérrez-Martínez– Existem diferentes grupos, que devem ser respeitados e considerados, e
que têm seu próprio espaço. O problema é que a diversidade é tão
complexa e vasta, que seria bem difícil gerar um espaço específico para
cada diferença. Há, então, limites extraordinários para a análise caso a
caso, no que diz respeito a aplicação e a prática, mesmo com as
melhores intenções.
Mesmo a análise caso a caso não vai ser isenta: a reflexão
parte dos próprios valores e cultura de quem a está fazendo.
Por isso, um dos dificultadores ao trabalho dos Comitês de Bioética, por exemplo, é o fato de eles lidarem, de forma particular, com as diferentes situações que lhes chegam – como se buscassem uma ética para resolver cada uma delas. Penso que o ideal seria encontrar uma ética de reflexão comum, por meio da identificação das similitudes que existem entre as diferentes culturas.
Apesar de sermos diferentes uns dos outros contamos com, pelo menos, um ponto em comum!
CBIO – Há populações que parecem não
ter sequer um ponto em comum...
Martínez – Posso lhe dar um exemplo no âmbito antropológico e filosófico: a destruição de si próprio e/ou da própria espécie é denunciada por todas as consciências.
Ainda que seja a autodestruição com o uso de psicotrópico, ou, mesmo, para glorificar, como fazem os camicases e os homens-bomba, o suicídio é condenado por todas as sociedades.
A atração ou a repulsão pelos diferentes também é um ponto em comum. Podemos achar vários outros cotidianos, por exemplo, todos gostam de comer. As diferentes culturas humanas reconhecem que não nos alimentamos apenas como necessidade biológica, mas com rituais, seja em grupo seja de forma individual. Partilhamos tal ambivalência sobre a comida, bem como, em relação a outros hábitos vinculados aos sentidos humanos.
Se refletirmos sobre nossas similitudes, alcançaremos uma visão mais estrutural e aplicável aos diversos casos apresentados aos Comitês.
Sei que isso contraria o predomínio atual da visão singular no universo da Bioética.
CBIO – Mas o próprio Aristóteles defendia a avaliação caso a caso...
Martínez – A visão aristotélica é uma visão holista e o início de uma filosofia hipocrática em uma Medicina cuja característica fundamental é a avaliação caso a caso. Só que esta não é a única medicina que existe.
Há saberes médicos que sempre existiram, mas que só agora são reconhecidos, como a acupuntura, a medicina templária (respeitada no antigo Egito, em que os médicos, entre outras condutas, tratavam seus pacientes transmitindo-lhes “energia”, postando as mãos sobre as áreas afetadas).
Por muito tempo a Medicina e o saber hipocrático enfatizam o singular, fixando-se no indivíduo. Creio que a Bioética possa nos auxiliar, no sentido de chegarmos a algo mais abrangente: o diálogo entre os diferentes saberes, que começa por encontrar as semelhanças entre eles.
O grande desafio seria considerar os saberes diferentes não como competidores entre si, mas como complementaridades, já que todos pretendem beneficiar as pessoas.
CBIO – Ao final de sua participação no último Congresso Brasileiro de Bioética, sobre Laicidade, Bioética e Diferenças, o senhor classificou a Bioética “como um poder que pode se transformar tanto em potência quanto em injustiça”. O que quis dizer?
Martínez – Aquilo que acabamos de conversar: não se consegue um diálogo geral, de maneira diferencial. É preciso encontrar pontos convergentes nos mais diversos âmbitos, pois a sociedade não costuma viver em guetos, ou em grupos que se cruzam todos os dias, mas não se conhecem.
Se a Bioética funciona um pouco como um pensamento politeísta, diversificado, facilitar o diálogo entre os indivíduos, apesar das suas diferenças, leva ao poder, por lógica e sob qualquer racionalidade.
Somar novos saberes quanto a uma doença, ao acesso às medicinas, é algo que potencializa o papel da Bioética: quanto mais informações obtivermos das sociedades e das culturas, maiores serão as chances de achar detalhes que as vinculem, permitindo que convivam. Não que integrem as sociedades umas as outras, mas que as aproximem.
Por outro lado, a Bioética se transforma em injustiça quando perde o seu sentido etimológico, como ética da vida, e passa a considerar primazias entre os pensamentos. Chega-se então a uma “bioética católica”; ou “bioética muçulmana”; ou “bioética espiritualista”...
De qualquer forma, vale destacar que a bioética de fundo religioso não é a única responsável por imposições, que existem também no contexto da bioética liberalista, por meio de pensamentos cientificistas e capazes de levar à medicalização e à individualização. Os resultados são intolerância e cegueira ante a diversidade.
A Bioética não pertence a ninguém: trata-se de uma ferramenta de inclusão de todas as possíveis formas de convivência. Regra básica: se a sua forma de convivência prejudica e se impõe à do outro, estará ultrapassando os limites e levando à injustiça.
CBIO – Em sua palestra Laicidade, Bioética e Diferenças o senhor disse que o Brasil não é um Estado “laico”, como aponta o princípio constitucional, e sim, “secular”. Qual é a diferença entre um e outro?
Martínez – É complicado e controvertido explicar quando o país se considera “laico”, mas se comporta como “secular”. Mas isso é bastante aparente.
Tanto um Estado secular quanto um Estado laico promovem a inclusão das diversidades. Em poucas palavras correspondem a maneiras diferentes de buscar o mesmo: a não imposição de ideias.
As leis em um estado laico se destinam a não favorecer ninguém: as crenças de uns não podem se impor sobre a dos outros. Já em um estado secular busca-se o não-favoritismo através da diferenciação das esferas, ou seja, separando o que é público do que é privado.
Explicando melhor: no Estado laico a constituição busca a autonomia de decisão e o não favorecimento de ninguém. Sua constituição e leis se baseiam no princípio de laicidade, sobretudo, no que refere ao âmbito do sagrado e do religioso. Não se almeja necessariamente a separação do Estado e da Igreja e, sim, a autonomia nas decisões políticas, frente a qualquer crença ou filosofia.
Já em um estado secular ocorre a diferenciação de esferas pública e privada que, não necessariamente, consta na Constituição. O que fundamenta o estado é a sua capacidade de diferenciar o que é permitido no âmbito público e o que é permitido no privado.
Quando o Brasil firma um pacto com o Vaticano, por exemplo, imediatamente se torna um estado secular, não um estado laico.
Alguns feriados católicos (como o de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do país) são oficiais para todas as pessoas, seja qual for sua religião. Se o Brasil fosse um Estado laico, isso seria inconstitucional.
CBIO – De que forma ocorreu sua incursão nos campos da Bioética e da Diversidade? A motivação foi profissional ou pessoal?
Martínez – Há cerca de cinco anos organizamos uma associação chamada “Liberdades Laicas”, cujo objetivo central era estabelecer uma ponte entre acadêmicos e militantes ibero-americanos de organizações civis, em temas como laicidade e direitos sexuais e reprodutivos.
Nesse período organizamos fóruns, colóquios e cursos de verão, ocasiões em que discutíamos diferentes problemas envolvendo educação religiosa e laica; as religiões e as crenças; o Estado laico em si mesmo; e os direitos sexuais e reprodutivos, entre outros assuntos. Os resultados eram associados ao meu trabalho de investigação, voltado à sociologia das religiões.
E é justamente aí que entra a Bioética. Foi interessante encontrar um laço estreito de complementaridade não só entre a Bioética e a laicidade, mas também entre diferentes disciplinas, como antropologia, sociologia, ciências humanas e ciências biológicas.
Como a Bioética é uma disciplina que visa ser uma ponte entre todas estas ciências, um dos pilares pode ser a reflexão sobre a laicidade.
* O professor Daniel Gutiérrez-Martínez é pesquisador em um programa interdisciplinar de Estudos em Religião e Sociologia, dedicando-se a temas como Sociologismo das Religiões, Multiculturalismo, Interculturalidade e Etnicidade. Já publicou mais de 40 artigos em revistas especializadas nacionais e internacionais.