Dar visibilidade a situações antiéticas em saúde; apoiar grupos de
defesa dos vulneráveis e buscar pontos em comum entre as nações, para o
desenvolvimento de uma Bioética Global correspondem a estratégias
eficazes para minimizar injustiças e transformar reflexão em prática, no
universo bioético.
Defende tal discurso o médico e filósofo
holandês Henk ten Have, que, entre outros feitos, nos anos 2000 dirigiu a
Divisão de Ética da Ciência e Tecnologia da UNESCO (Organização das
Nações Unidas para a Educação, à Ciência e a Cultura), onde se mantém
até hoje como consultor e militante pela garantia dos princípios da Declaração Universal
sobre Bioética e Direitos Humanos, de 2005, que trata das questões
éticas relacionadas à medicina, às ciências da vida e às tecnologias e
sua aplicação.
Com a autoridade de quem foi um dos primeiros a
ministrar Ética Médica em um país pioneiro em discussões polêmicas (por
exemplo, sobre a eutanásia e aborto), o velho professor ainda consegue
tempo para percorrer o mundo em nome da mesma UNESCO, para divulgar a
importância deste ensino, bem como, da criação de Comitês Nacionais de
Bioética, entre outros assuntos.
Simples, simpático, ten Have
falou com exclusividade ao site do Centro
de Bioética do CREMESP, momentos após sua participação no IX
Congresso Brasileiro de Bioética, em Brasília.
Confira:
Henk ten Have
Cbio – Seu interesse pelos temas da Bioética
aumentou pelo fato de a Holanda ser pioneira em discussões polêmicas,
como a referente à eutanásia?
Henk ten Have – Com certeza. Além da questão da eutanásia,
houve outros longos debates públicos em meu país, vinculados a temas
como o aborto e o abuso de drogas, que se constituíram em um grande
incentivo para quem gosta de estudar a Ética. Quase todo mundo se
envolveu, mas, por incrível que pareça, as escolas médicas e seus alunos
estiveram entre os que mais demoraram a se inserir nas discussões.
Cbio – Os alunos de Medicina não se
interessavam por Ética Médica?
ten Have – Quando comecei a faculdade de Medicina, em
1969, não se falava em Ética Médica nas universidades holandesas, já que
o curso era fortemente focado em ciências naturais, como química,
física e biologia.
Eu e outros colegas não nos sentíamos
completamente satisfeitos com o programa, e fazíamos até protestos para
incluir-se na grade curricular um pouco de ciências sociais e humanas:
particularmente me interessava a Filosofia – mas não tinha nem idéia
sobre como isso levaria à Bioética.
Apenas após eu terminar a
Faculdade e já trabalhar em Medicina Legal e Serviços de Saúde foi queo
governo de Roterdã (província da
Holanda do Sul) criou uma universidade que propunha nova
abordagem em Medicina, mais humanística e voltada ao social, e, como
conseqüência, surgiu o 1° Departamento de Ética Médica nos Países
Baixos.
Por conta de meus estudos e artigos em Filosofia, o 1°
professor de Ética Médica da escola me indicou para substituí-lo quando
ficou doente, em 1974.
Enfim, nunca planejei ser professor de
Ética, as coisas aconteceram quase que por acidente.
Cbio – Em sua conferência sobre Bioética sem
Fronteiras, aqui no IX Congresso Brasileiro de Bioética, o senhor
mencionou dois exemplos de situações antiéticas: a ocorrida em Gana,
África, e em Minnesota, EUA. Torná-las visíveis consegue evitar que se
repitam?
ten Have
– A primeira coisa a se fazer é publicizar, pois quem comete atos
antiéticos tenta, a todo custo, escondê-los ou negá-los. Trazer a
público é a única forma de a população ficar sabendo dos problemas e,
então, começar a se questionar: “por que não são criadas políticas
públicas para impedir tais desmandos?”
O caminho para fugir
destas situações passa por deixar seus responsáveis com vergonha,
constrangidos, para que dêem ouvidos às críticas e busquem mudanças.
Todo
mundo já tinha ouvido falar, mas ninguém acreditava que dentro de um
hospital de referência em Gana funcionários ficavam assistindo
televisão, enquanto pacientes da emergência se contorciam de dor. Até
que um jornalista denunciou, cumprindo a tarefa dos repórteres
investigativos, que entram em hospitais com câmeras escondidas e mostram
ao mundo tristes realidades de pacientes que sofrem, sem ao menos,
receberem o mínimo, como comida e dignidade.
Em Minnesota, quem
denunciou foi um pesquisador, inconformado com ensaios clínicos
antiéticos avalizados por sua universidade.
Cbio – Na mesa redonda sobre Responsabilidade
Social e Saúde o senhor mencionou a atuação dos grupos de defesa de
vulneráveis. Este tipo de ação não pode ser confundido com
paternalismo?
ten Have
– É uma boa questão.
Quando, por exemplo, o médico tenta
decidir pelo paciente o que é melhor para ele, sem ao menos consultá-lo
ou se interessar pelos seus sentimentos e opinião, estará tomando uma
atitude paternalista. É completamente diferente de interceder pelos
interesses daquela pessoa, colocando-se na perspectiva do outro.
Em
pediatra, quando o médico nota abusos contra crianças, a primeira
iniciativa será informar aos pais. Quando isso não surtir efeito, como
acontece em muitos casos, não existe opção: quem protegerá o paciente
será o médico, que observou o abuso. Não será paternalista, será
protetor. Cbio – É algo
diferente de defender adultos...
ten Have – Você está certa: se o
paciente conta com condições de defender sua própria posição, pode e
deve fazer isso. É o mais ético.
Mas, de forma geral, há pessoas
submetidas a situações que comprometem sua capacidade e força para
manifestar-se e precisam de outras que falem por elas: além das
crianças, são os imigrantes ilegais, os sem-teto, e mesmo grupos de
pessoas com determinadas deficiências físicas, dependendo do contexto.
Isso
não pode ser confundido com paternalismo, porque não estamos dizendo
aos deficientes como pensar e agir: intercederemos por eles junto aos
que promovem políticas públicas –e que podem efetivamente modificar as
coisas.
Foi o que fez o jornalista em Gana, que conhecia o caso,
mas não podia fazer nada a não ser “gritar”, porque ninguém o estava
ouvindo. Ao tomarem conhecimento do escândalo, cidadãos de outros países
puderam se organizar: como conseqüência, um grupo de bioeticistas
abordou os administradores do hospital e questionou: “como vocês
permitem que isso aconteça? Vocês deveriam agir!”.
Cbio – Uma das mesas do Congresso abordou as
mudanças no campo da Bioética na última década. Quais seriam elas, na
visão de alguém que já está faz tempo na área?
ten Have – Desde o começo deste
milênio, a Bioética vem ficando mais internacional e capaz de envolver
um número maior de indivíduos: antes se concentrava prioritariamente nos
EUA e em alguns países da Europa.
Parece que, até então, as
pessoas não tinham se dado conta de que, em todas as nações, os
problemas são parecidos e estão conectados.
Pesquisas antiéticas
para testar novas drogas, gente pobre querendo vender o rim, e assim
por diante, constituem-se em dramas que acontecem em todos os lugares, e
que, portanto, não podem ser julgados como de fora de nossa própria
realidade.
Ao mesmo tempo, aumentou o interesse pelo que
acontece em outras nações, nos locais onde a Bioética já é consagrada:
muitos quiseram conhecer as experiências brasileiras, porque
simplesmente não sabiam como era a Bioética no Brasil.
CBIO – Serviu como incentivo “extra” o fato
de o Brasil ter sediado, com tanto sucesso, um Congresso Mundial de
Bioética em 2002, em Brasília?
ten Have – Este foi um dos sintomas de que outros países
podiam ter experiências capazes de interessar aos demais.
Por
exemplo, sabíamos que o Brasil contava com a maior floresta tropical do
mundo e percebemos que a conservação da biodiversidade local não é
importante apenas para o Brasil e, sim, para o mundo inteiro.
Que
deveríamos não apenas pensar em nossas gerações como também nas
futuras.
Por isso, não é problema apenas do Brasil e sim, do
mundo, a exploração da biodiversidade local por parte de indústrias
estrangeiras de remédios.
Esse abuso de poder por parte delas
levou o Brasil a se esforçar para proteger sua própria biodiversidade e
inseriu todo o mundo no debate sobre o que seria justo e ético.
Talvez,
usar tais substâncias não apenas em benefício do Brasil, dos EUA ou da
Suíça, mas sim, em benefício da humanidade.
Cbio – Por que o senhor afirmou, aqui no
evento, que outros países em desenvolvimento, como a China e Rússia,
acabam ficando de fora do debate bioético?
ten Have – Há poucos especialistas em
Bioética por lá, e isso deve ter relação com a história recente destes
países, por décadas, controlados por regimes totalitários.
Apesar
das mudanças, os problemas ainda não acabaram: na Rússia, muitos
jornalistas continuam sendo cerceados. Na China, a Internet é controlada
pelo governo!
Nesse panorama, como os jovens terão a chance de
se posicionarem contra as injustiças?
Um debate bioético eficaz
demanda da possibilidade de a imprensa criticar os gestores de política
pública que não seguirem o estipulado pelos princípios. Fica muito
complicado se isso não for permitido.
Além disso, há também o
aspecto cultural: em muitos países da Ásia, o coletivo é mais importante
do que o individual. Na China, a ética vincula-se à representatividade
social, não à convicção pessoal.
Exemplo: até a pouco tempo
atrás, a formulação de leite em pó para bebês naquele país incluía
produtos químicos. Os riscos desta prática parecem claros para todos –
mas aparentemente não na cabeça dos chineses, que continuaram com a
conduta, até que se transformasse em um escândalo internacional.
Avaliando
o coletivo, eles priorizaram o aspecto comercial: imaginaram que os
produtos químicos no leite fariam com que rendesse mais dinheiro.
Não
é algo isolado: em diversos países, existe um grande conflito entre
dinheiro e ética.
Cbio – Sua
visão se ampliou, quando passou a dirigir o departamento de Ética na
UNESCO?
ten Have –
Na UNESCO, ouvi muitas vozes que me trouxeram novas perspectivas.
Diferentes, portanto, daquelas traçadas por países como os EUA, que
sempre se atêm a alguns assuntos e deixam de fora do debate temas
essenciais.
Por exemplo, a discussão sobre alocação de recursos
em saúde ficou estagnada na América (do
Norte): como a maioria pode pagar por seus tratamentos, acha que
todos também podem. Nesse caso, não há uma noção legítima do princípio
de Justiça.
A única coisa que espero é que o plano de Obama (reforma do sistema de saúde norte-americano
proposta pelo presidente Barack Obama, que inclui plano de saúde aos
desassistidos e amplia o programa federal aos miseráveis) consiga
ser posto em prática e atenda a todos que necessitam.
Cbio – O filósofo italiano Maurizio Mori nos
concedeu uma entrevista, e disse que a Bioética Global é algo fictício:
não há como se obter um discurso bioético comum em diferentes culturas
de diferentes nações. O senhor pensa o contrário?
ten Have – Sou holandês, trabalhei em
Paris e agora estou nos EUA, em Pittsburgh. O que sou exatamente?
Na
UNESCO, meu auxiliar mais próximo nasceu na Malásia, foi educado na
Austrália e nos EUA, e agora trabalha em Paris.
Isso significa
que a nossa identidade está sendo misturada de maneira crescente: muitos
jovens dirão que não são holandeses ou europeus, são cidadãos do mundo.
Óbvio, há muitas diferenças, ninguém é a mesma coisa. Mesmo
assim, a Bioética Global pode existir: você é brasileira, pertence a
vários contextos, mas tem vários aspectos em comum com outros seres
humanos, sejam de onde forem.
A idéia inicial de Potter (Van Rensselaer Potter, que cunhou o tema
“Bioética” e é autor de Bioethics: Bridge to the Future) era
global: ele pensou nos problemas básicos do gênero humano, relacionados,
por exemplo, à miséria e à decadência, considerando que a única forma
de se lidar com eles seria usando uma perspectiva abrangente. Ou seja,
superar as diferenças para se trabalhar em pontos principais em comum.
É
o que estamos tentando fazer com a UNESCO: todos concordam com as
mesmas premissas fundamentais da Declaração Universal sobre Bioética e
Direitos Humanos, e percebem que é preciso trabalhar de maneira mais
cooperativa, com vistas a superar todas as dificuldades.
Nosso
objetivo não é discutir se o consentimento esclarecido deve ser
respeitado pelos EUA, Brasil ou África, por exemplo, pois se trata de um
princípio da Declaração e, por isso, é indiscutível. Refletiremos e
debateremos a respeito da forma com que este princípio deve ser aplicado
em países diferentes.
É um grande desafio.
Cbio – Por que o senhor defende que recursos
financeiros são importantes para o desenvolvimento da Bioética?
ten Have – Bioética não é um hobby ou apenas uma ideologia: são
necessários recursos, inclusive, do governo, destinados à pesquisa, aos
consultores, e aos comitês. É preciso secretária, equipamentos...
Quando
essas ferramentas não são disponibilizadas, não há o que vá em frente.
Se
as escolas médicas quiserem levar o estudo da ética a sério, precisam
criar departamentos e cargos para professores, coisas demandam de
recursos materiais, da mesma forma que demandariam a Anatomia, a
Patologia e a Medicina Interna.
Por outro lado, quando são
evolvidas verbas, há sempre o risco de conflitos de interesse. Então é
necessário que os departamentos de pesquisa, por exemplo, sejam
totalmente separados de quem gera o dinheiro.
Da mesma forma,
Comitês de Bioética precisam ser independentes de quaisquer interesses
ou áreas. Isso é possível até em países em que o Comitê Nacional de
Bioética é encabeçado pelo Ministro da Saúde.
Cbio – Não é difícil que o governo considere
tudo isso uma necessidade, já que a Bioética é instância consultiva, e
não política?
ten Have
– É claro que é uma instância política, como não? (enfático).
Partidos políticos
são diferentes, porque caminham em campos diferentes de ética: alguns
são conservadores e posicionam-se de maneira contrária a práticas como o
aborto e a eutanásia, por exemplo. No outro extremo há os
progressistas, que querem ir mais longe do que os opositores.