Que tipo de cuidado médicos você desejaria se estivesse muito doente para expressar seus desejos aos seus entes queridos e aos profissionais de saúde?
Usadas em alguns países como Espanha e Holanda, as Diretivas Antecipadas de Vontade – ou “testamento vital” como preferem alguns – começaram a ser discutidas no Brasil apenas recentemente. Neste sentido, uma das iniciativas mais promissoras partiu do Conselho Federal de Medicina (CFM) que, nos dias 26 e 27 de agosto realizou, em São Paulo, fórum sobre o tema. A conferência de abertura contou com o professor espanhol Diego Gracia, referência mundial da Bioética contemporânea.
A partir deste encontro, a Câmara Técnica sobre Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos do CFM pretende trabalhar em uma resolução doutrinária sobre o assunto – mas este é um propósito a ser avaliado com todo o cuidado, ponderam seus membros.
O testamento Diretivas antecipadas de vontade são documentos que permitem à pessoa transmitir decisões sobre cuidados em fim de vida antes do tempo, ou seja, quando ainda estiver possibilitada e consciente para isso.
Nos países em que vigora, podem ser incluídas no documento especificações como se a pessoa aceita ou recusa assistência médica em determinadas situações-limite; que tipo de tratamento desejaria ou não, caso estivesse inconsciente, por exemplo, uso de hemodiálise e máquinas de respiração; reanimação, se o coração e/ou respiração pararem; se concordaria com a manutenção (ou colocação) de tubo de alimentação; e se desejaria que seus órgãos e tecidos fossem doados, entre outras.
Maneiras de se entenderem as Diretivas Após a abertura oficial do I Fórum sobre Diretivas Antecipadas de Vontade promovida pelo presidente do CFM, Roberto d’Ávila, o padre e bioeticista Léo Pessini do Centro Universitário São Camilo, apresentou Diego Gracia, referindo-se ao professor da Universidade Complutense de Madri como “uma pessoa capaz de olhar a humanidade com esperança, e não como uma catástrofe”.
Durante a conferência A Deliberação sobre Diretivas Antecipadas em Pacientes com Doenças Terminais, Gracia explicou que existem duas maneiras de se interpretarem as diretivas: a primeira é jurídica, e correspondente ao documento em si e as diretrizes a serem obedecidas, além de outras especificidades legais, como, por exemplo, designar quem falará em nome daquele paciente e fará valer seus desejos se não puder mais se comunicar.
A segunda dimensão é de cunho ético. “Até as décadas de 60 e 70 as histórias clínicas eram feitas de maneira pontual e correspondiam a diagnóstico, prognóstico e tratamento. A partir dos anos 70 os valores passaram a ser vistos como elementos éticos a serem considerados para chegar-se a uma decisão clínica correta”, enfatizou o professor. Para tanto, torna-se necessário que, na anamnese, o médico reconstrua a biografia do atendido.
Segundo ele, um dos pontos essenciais para tal mudança foi a popularização da teoria do consentimento informado. Obtido imediatamente antes de atos clínicos e operações, pelo consentimento informado (ou livre e esclarecido) os profissionais de saúde se comprometem a respeitar os valores de seus pacientes, que podem consentir ou não determinadas intervenções em seus corpos.
Dificuldade: como acatar as decisões de pacientes inconscientes ou com demência?
Para o professor, “é necessário que o profissional médico eduque o paciente e seu representante no decorrer de todo o processo de tomada de decisões antecipadas, clarificando seus valores. Que a função do profissional, além da terapêutica, seja educativa”.
O Cremesp esteve representado no encontro pelo seu vice-presidente, Renato Azevedo Júnior, e pelos conselheiros Clóvis Constantino, Ieda Verreschi, Isac Jorge, José Marques Filho, Silvana Morandini e Reinaldo Ayer de Oliveira.
Desejo de morrer Um assunto – muito – delicado abriu o segundo dia de trabalhos do evento do CFM: a morte.
Foi “destrinchado” pela professora Maria Júlia Kovacs, do Instituto de Psicologia da USP. Na visão da especialista é importante ater-se à morte nas várias etapas da vida – não só durante a doença. “O que ajuda é falar sobre o assunto, ter a possibilidade de esclarecimento, de compartilhamento de sentimentos. Poder dizer como gostaria que fosse o processo da morte, e, principalmente, o que não gostaria que acontecesse”.
Em seguida, Maria Júlia participou de mesa redonda sobre Diretivas Antecipadas, mediada por Carlos Vital Tavares Corrêa Lima, vice-presidente do CFM e membro da Câmara Técnica sobre Terminalidade, da qual fizeram parte ainda Élcio Bonamigo, do Conselho Regional de Medicina do Paraná; o padre Leo Pessini; e os advogados Maria de Fátima Freire de Sá e Diaulas Ribeiro, que apontaram as especificidades jurídicas relativas ao Testamento Vital.
Para Maria de Fátima, professora da PUC de Minas Gerais, a possibilidade de diretiva antecipada em nossa realidade é clara. “Alguns anos atrás, a concepção de vida boa nos era imposta – e obedecíamos por medo. Agora todos concordam que cada um de nós tem a legitimidade para dizer o que é vida boa para si e o que não é”.
Segundo Diaulas Ribeiro, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, apesar de, em alguns contextos, as diretivas antecipadas serem abordadas há anos, a adesão à idéia é pequena. “Não faz parte da cultura do brasileiro lidar com assuntos como a fase final da vida”.
Tal desconhecimento, no entanto, não diminui o entusiasmo do procurador em abordar o tema, nem a importância da discussão – pelo contrário. “Uma diretiva antecipada é um mandado judicial com algumas peculiaridades. Ele significa que o consentimento prospectivo de meus valores vai permanecer até quando eu estiver inconsciente”, completa.
Em tempo: de acordo com Ribeiro, qualquer ato inequívoco de vontade do paciente, deixado por escrito, deveria ser respeitado legalmente. Ou seja, não é necessário que os desejos da pessoa sejam registrados em cartório. “Em caso de ausência de documento escrito, bastaria que as vontades manifestadas em relação a tratamentos fossem registradas pelo médico em prontuário, na presença de testemunhas”.
Algumas Frases
“Os profissionais de medicina estão jogando um jogo que não aprenderam a jogar” (sobre a tarefa de identificarem os valores dos pacientes), Diego Gracia, professor espanhol
“Claro que não é um assunto fácil (o que gostaríamos ou não no processo de morte), mas é importante que possa ser enfrentado principalmente nas crises da vida”, Maria Júlia Kovacs, psicóloga
“Não podemos trazer disposições contrárias às normas”, Elcio Bonamigo, médico do CRM do Paraná
“Sobre decisões de final de vida, pode-se contar com a ajuda de Comitês de Bioética, quando o desejo do paciente não é conhecido e este não tem família ou representante que responda por ele”, Elcio Bonamigo, médico do CRM do Paraná
“O direito à vida é complicado demais para ser colocado em um catálogo. Essa segurança não existe”, Maria de Fátima Freire de Sá, advogada
“Não podemos permitir que sejam tirados de pacientes, mesmo que inconscientes, seus direitos constitucionais”, Diaulas Ribeiro, advogado
“Quando falamos sobre limitação de tratamentos, um complicador corresponde a interrupção de alimentação e hidratação. Na minha opinião, a comida e à água são tão importantes quanto o ar que respiramos”, Léo Pessini, padre e bioeticista
Livros Coube ao bioeticista José Eduardo de Siqueira a função de apresentar os livros lançados no Fórum de Diretrizes antecipadas, que foram:
• A Medicina para além das normas: Reflexões sobre o novo Código de Ética Médica, organizado por Nedy Neves
• Pensar a Bioética: Metas e Desafios, de Diego Gracia
• Bioética em Tempo de Incertezas, de Leo Pessini, José Eduardo de Siqueira e William Saad Hossne
• A Relação Médico-Paciente: Velhas Barreiras, Novas Fronteiras, organizado por Diaulas Ribeiro. A obra teve como pedra fundamental uma conferência promovida por Diego Gracia anos atrás. “Para captar a essência do pensamento do professor, li mais de 60 livros, incluindo os evangelhos”, explica Diaulas