A questão sobre a liberação de alimentos geneticamente modificados interessa aos médicos?
Os pesquisadores focalizados pelo Centro de Bioética Ser Médico garantem que sim. A física e ativista ambiental Vandana Shiva, ganhadora do Right Livelihood Award – versão alternativa do Prêmio Nobel da Paz – explicou que os profissionais da área deveriam se inserir nas discussões, motivados “pelos impactos reais dos transgênicos na saúde coletiva e individual”, além das dificuldades de acesso dos pacientes trazidas pelas patentes de medicamentos.
Por seu lado, o jornalista e escritor americano Jeffrey Smith, defensor dos consumidores contra alimentos submetidos à biotecnologia, opina que a remissão de sintomas gastrointestinais e de distúrbios do sistema imunológico justifica a atenção da categoria. “Uma vez admitidos os problemas com os OGM, médicos recomendam aos pacientes evitarem alimentos com transgênicos”.
Em comum, ambos concederam entrevista exclusiva a SER Médico; são respeitados autores e críticos ferrenhos da indústria da transgenia – atividade aplicada em agricultura “para viabilizar o cultivo das espécies vegetais mais adaptadas às necessidades humanas como resistência à seca e incidência de pragas, entre outras, segundo o ponto de vista da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária/Embrapa –, não escondendo o que pensam a respeito de grandes empresas envolvidas no setor.
Confira, a seguir, a conversa com ambos:
Por Concília Ortona*
Vandana Shiva
Centro de Bioética – É dever ético dos médicos participar do debate sobre alimentos geneticamente modificados?
Vandana Shiva – Sim, por causa de impactos reais à saúde coletiva e individual, conforme mostram estudos promovidos na Argentina, França e Rússia, entre outros países.
Também é preciso considerar que as patentes de medicamentos negam às pessoas o acesso à medicina, bem como, o fato de que a mesma indústria que controla alimentos geneticamente modificados também controlar o setor farmacêutico e o de agroquímicos (produtos destinados ao uso nos setores de produção, armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas), e seu impacto sobre a saúde.
Cbio – No caso específico do uso da biotecnologia na produção de medicamentos, não é possível argumentar-se que os fins justificam os meios?
Shiva – Em geral, meios e fins são inseparáveis.
Como ecologista, conclamo o Princípio da Precaução em relação à libertação deliberada de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) ao meio ambiente.
O Princípio de Precaução significa, entre outras coisas, a associação respeitosa e funcional entre o homem e a natureza. Ou seja, que haja garantia contra os riscos potenciais ainda não identificados pelo estado atual do conhecimento. Ainda como princípio ético, Precaução implica na responsabilidade pelas futuras gerações e meio ambiente.
Cbio – No Brasil, no início da década de 2000, houve muita controvérsia e debate ético em torno dos OGMs, após a União Europeia autorizar a importação de tais produtos. Mas, depois, foram sendo absorvidos pelas culturas, isto é, viver com eles tornou-se “normal". É um risco?
Shiva – Situações em que os OGMs são impulsionados pelas grandes corporações nunca são normais: correspondem a ocorrências anormais.
Veja, o debate sobre os transgênicos refere-se a poder e controle. É econômico. Corresponde a uma discussão científica situada entre um paradigma reducionista não fundamentado e fora de moda, e outro ecológico emergente.
É uma disputa entre a democracia e a ditadura.
Quando os OGMs foram aprovados no Brasil, fui convidada por Marina Silva, então ministra do Meio Ambiente, para debater o tema no Rio Grande do Sul. À época, havia um forte movimento de agricultores contra as sementes geneticamente modificadas, mas agora, ao que parece, os campos estão cobertos de soja transgênica.
Isso é parte da mudança trazida pela globalização e pela tomada do poder por parte das multinacionais, contrárias a qualquer acordo ambiental.
Cbio – A senhora costuma falar sobre “ditadura da alimentação”. Como as grandes corporações chegaram ao domínio do setor e o que objetivam?
Shiva – Querem controle e lucros – que vêm da venda de sementes patenteadas e produtos químicos.
Patentes sobre sementes são ilegítimas, pois colocar um gene tóxico em uma célula vegetal não corresponde a “criar” ou a “inventar” uma planta. Além disso, patentes são concedidas a invenções, não a formas de vida.
A fala da Monsanto (multinacional norte-americana de agricultura e biotecnologia) referente aos benefícios da “tecnologia” tenta esconder seus verdadeiros objetivos, nos quais a engenharia genética é apenas um meio para controlar sementes e alimentos, através do sistema de patentes e direitos de propriedade intelectual.
Por exemplo, no Brasil, agricultores processaram a Monsanto por considerarem injusta a cobrança de royalties, que custam aos trabalhadores da terra americanos US $ 10 bilhões anuais. Na Índia, são tomados U$ 200 milhões, levando os agricultores a uma dívida impagável e ao suicídio: desde 1995, em meu país, foram 300 mil mortes assim.
Agora a empresa comprou a maior empresa voltada ao clima, a Climate Corporation (que transforma informações climáticas em recomendações para os agricultores, voltadas, por exemplo, a alterar uma programação de irrigação); e a maior corporação de solo, a Solum Inc.
A ideia é controlar todos os aspectos do sistema de produção de alimentos. Quando uma empresa controla a semente, controla a vida, especialmente, a vida dos agricultores.
As empresas vão longe demais: para dar uma ideia, havia a intenção de privatizar-se o abastecimento de água. O ativismo indiano interrompeu um projeto desse tipo, que o Banco Mundial pretendia empurrar para Nova Déli. Nossa ONG, a Research Foundation for Science, Technology and Ecology, apoiou ainda movimentos que fecharam três fábricas da Coca-Cola, por roubar água.
Cbio – Por que não concorda com a visão de que modificações genéticas podem tornar plantas mais resistentes e, como consequência, reduzir a fome?
Shiva – Culturas de sementes Bacillus thuringiensis (ou Bt, vulgarmente utilizada como um pesticida biológico) deveriam controlar as pragas, mas não conseguiram fazê-lo. Acabaram criando superpragas, que obrigam os agricultores a pulverizarem mais produtos químicos.
Nos EUA, culturas tolerantes a herbicidas têm levado ao surgimento de superervas daninhas: metade da superfície agrícola no país é coberta por elas. Para solucionar o problema, agora a intenção é pulverizar o tal do “agente laranja”, herbicida e desfolhante usado na Guerra do Vietnã, para impedir que inimigos se escondessem atrás dos arbustos. O Agente Laranja foi responsável pela contaminação de alimentos e água, causando danos como câncer, incapacidade mental e deformidades por três gerações.
Cbio – Seu país agrega mais de um bilhão e duzentos mil habitantes; a China, um bilhão e trezentos. Os EUA, mais de trezentos milhões, e o Brasil, mais de duzentos. Não é utópico crer na possibilidade de alimentar a todos, priorizando a agricultura familiar?
Shiva – A agricultura industrial fornece somente 30% do alimentos, enquanto usa 70% da terra. A agricultura familiar produz 70% dos alimentos, só que cobre apenas 30% da terra. Utopia seria supor que uma ineficiente e desperdiçadora agricultura industrial consiga alimentar o mundo.
Vai destruir o planeta antes de alimentar metade da humanidade, e um planeta morto não vai produzir alimentos.
Cbio – A senhora sempre “dá nome aos bois”, atacando poderosas empresas como Nestlé, Monsanto e Walmart. Sofreu represálias ou ameaças por suas posições políticas?
Shiva – Sim, enfrentei – e continuo enfrentando – vários ataques, e tenho tentado responder alguns deles. Sei lidar com isso, usando como arma continuar a buscar a verdade e a ser guiada pela minha consciência.
Jeffrey Smith
Cbio – A biotecnologia é vista por cientistas e médicos como esperança para obterem-se remédios. A insulina, por exemplo, é um transgênico. O senhor é contra a biotecnologia como um todo ou só a relativa a alimentos geneticamente modificados?
Jeffrey Smith – A biotecnologia embute ferramentas úteis, podendo ser usada com vantagens em Medicina, mas não se deve esquecer que ainda encontra-se em seus estágios iniciais: seus potenciais efeitos colaterais merecem ser respeitados.
A terapia genética humana, por exemplo, provocou acidentalmente leucemia em vários indivíduos, e a engenharia genética do suplemento alimentar L-triptofano foi, quase com certeza, responsável por uma epidemia mortal nos Estados Unidos, no final de 1980. (N. da R. A síndrome de eosinofilia-mialgia causou a morte de 37 pessoas e a invalidez de outras 1.500. À época, o Food and Drugs Administration, FDA, responsável pela liberação de novas drogas e alimentos, ligou os casos ao L-triptofano).
Embora algum dia possa se tornar possível manipular o DNA de maneira previsível em engenharia genética de alimentos, é cedo demais para correr tal risco. Infelizmente, a longa duração das patentes; a necessidade de retorno do investimento; e a “miopia de pensamento” de alguns, levam à liberação irresponsável de transgênicos alimentares de alto risco e seus prováveis efeitos colaterais.
Cbio – Alguns anos atrás o senhor defendeu a exclusão total de OGMs da produção de alimentos. É falsa a impressão de que o mundo teria mais fome, sem transgênicos?
Smith – A noção de que “precisamos de engenharia genética para alimentar a crescente população mundial” partiu de uma empresa de relações públicas, tentando angariar apoio público à pratica.
Quando avaliado cientificamente, no entanto, o argumento não se sustenta: o relatório Avaliação Internacional do Conhecimento Agrícola, Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento (sigla em inglês IAA STD, que contou com mais de 400 cientistas), patrocinado pela ONU e Banco Mundial, concluiu que a atual geração de OGMs nada tem a oferecer contra a fome; para a erradicação da pobreza; ou à produção de agricultura sustentável.
Outro relatório da União de Cientistas Preocupados (sigla em inglês UCS organização sem fins lucrativos, dedicada a sugerir soluções práticas e sustentáveis para a saúde mundial) demonstrou que OGMs, na verdade, não aumentam rendimentos, teoria confirmada por relatório do Departamento de Agricultura dos EUA, e outras revisões independentes.
Em contraste, métodos orgânicos e sustentáveis têm apresentado aumento de rendimentos da ordem de 8.200%, em países em desenvolvimento. Mesmo nos desenvolvidos, como EUA, os OGMs não superam os métodos orgânicos.
Cbio – Se os OGMs são os “inimigos”, como lutar com inimigos tão invisíveis, incentivados por corporações tão poderosas?
Smith – Para interromper a produção de OGMs, tiremos como lição o ocorrido na Europa.
Em 1999, foi perpetrada ordem de mordaça contra um proeminente cientista, Árpád Pusztai, da Universidade de Aberdeen, que identificou como “perigoso” o processo de engenharia genética, por causar danos significativos a ratos alimentados com OGMs supostamente inofensivos.
Ao revelar suas preocupações, Pusztai foi demitido, depois de 35 anos de trabalho, do Rowett Research Institute, onde desenvolveu a pesquisa. Foi ainda silenciado por ameaças de ações judiciais, e, ainda, alvo de uma campanha para destruir sua reputação.
No mesmo ano, quando o Parlamento britânico suspendeu a ordem de silêncio, uma tempestade de artigos contra os OGMs foi publicada: em um mês, saíram mais de 700, só no Reino Unido. O educado público inglês agora se sentia com “o pé atrás” em relação aos OGMs.
A reação da indústria de alimentos foi rápida e decisiva: meses depois, uma empresa após a outra declarou a intenção de “remover ingredientes transgênicos de seus produtos europeus”. Uma rejeição do consumidor a esse nível manteve ingredientes diretos de OGMs fora da Europa – apesar da opinião favorável dos governos e, mesmo, da União Europeia.
Nos Estados Unidos, a conscientização sobre os perigos de alimentos geneticamente modificados se espalha rapidamente. Em 2012, 51% dos americanos revelaram preocupação em relação aos perigos para a saúde desses produtos e 39% disseram que já estavam reduzindo ou eliminando OGM de sua dieta.
Espera-se que esta “revolução” ocorra não pela aprovação de novas leis ou políticas governamentais, e, sim, com base na demanda do consumidor.
Cbio – Os defensores dos OGMs tinham conhecimento de seus potenciais prejuízos?
Smith – Documentos tornados públicos a partir de ação judicial revelam que cientistas da FDA advertiram repetidamente seus superiores de que OGMs poderiam trazer sérios problemas à saúde, exigindo testes de longo prazo.
Com isso, a justificativa política de que “a agência (FDA) não tinha conhecimento de qualquer informação”, relativa a efeitos maléficos do OGM foi derrubada, traduzindo-se em uma mentira completa.
Mas foi a Casa Branca que ordenou a agência a promover tal biotecnologia, recrutando Michael Taylor, ex-advogado da empresa Monsanto, para chefiar a formação de políticas sobre OGMs. As normas vigem desde 1992, e permitem aos fabricantes de transgênicos determinarem por conta própria se seus alimentos são “seguros”.
Em outras palavras, empresas gigantes dos transgênicos, como a Monsanto, podem colocar no mercado seus produtos, sem promover estudos de segurança, e, mesmo, sem a aprovação da FDA. Lembrem-se: trata-se da mesma corporação que defendeu a “segurança” do seu agente laranja; do DDT, pesticida foi banido de vários países, por prejudicar a saúde e interferir no equilíbrio ambiental; e do PCB, agrotóxico incluído entre os entre os dez poluentes orgânicos com maior potencial de toxicidade no mundo.
A propósito, depois de supervisionar a política de OGMs no FDA, o Sr. Taylor se tornou vice-presidente da Monsanto e seu principal lobista. No verão de 2009, passou pela porta giratória novamente, sendo nomeado pela administração Obama como uma espécie de Czar da área de alimentos do FDA.
Cbio – Certa vez o senhor mencionou pesquisa da Academia Americana de Medicina Ambiental que, com base no Princípio da Precaução, recomenda aos médicos a prescreverem dieta livre de alimentos transgênicos. É tarefa de toda a categoria?
Smith – Não há nenhum governo ou universidade patrocinando avaliações epidemiológicas dos impactos dos OGMs na saúde coletiva dos norte-americanos.
Porém, em geral, médicos não necessitam de um monte de estudos para adotar medidas de proteção aos seus pacientes: uma vez admitidos os problemas com OGM, recomendam evitar-se tais alimentos, e percebem rápida recuperação.
De longe, os sintomas mais frequentes abrandados pela retirada de OGMs da alimentação envolvem o trato gastrointestinal, e incluem intestino irritável, obstipação inflamatória intestinal e refluxo gástrico; também se amenizam a falta de energia e de concentração, e distúrbios do sistema imunológico, como alergias, erupções de pele e asma, além de outros, como enxaqueca. Muitos pais relatam melhora no comportamento dos filhos, incluindo redução de déficit de atenção e de sintomas autistas e violentos.
Estamos recolhendo relatos de indivíduos e de profissionais que têm notado mudanças desde a remoção de OGMs das dietas, pelo e-mail healthy@responsibletechnology.org.
Cbio – Por fim, a discussão envolvendo OGM é essencialmente bioética?
Smith – Observamos discussões bioéticas em relação à confiabilidade questionável de pesquisas patrocinadas por empresas; ao patenteamento da vida e a enorme perda de biodiversidade; ao uso excessivo de herbicidas e outros produtos químicos, capazes de envenenar nossos corpos e, ainda, nossa terra, sem chances de recuperação; à ganância corporativa e a influência das empresas no governo.
Sob um ponto de vista mais amplo, olhamos para dois futuros: coletivamente, há aspirações do uso da biotecnologia para patentear 100% das sementes, isto é, um plano para substituir a natureza por organismos projetados e desenhados para obter um maior lucro e controle.
O outro futuro possível inclui proteger e preservar a natureza. Esta é a minha escolha e no que estou trabalhando.
* Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp; Especialista em Bioética e Mestre em Saúde Pública (USP)
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