Artigos científicos em ética e bioética relegam aos “parênteses” ou aos locais de pouco destaque aspectos da pesquisa referentes à injustiça social e à iniquidade. Isso acontece por abordarem tais assuntos como “elefantes no quarto”, ou seja, temas que todos conhecem – mas dificilmente encaram frente a frente.
A opinião é do então editor-chefe do Journalof Medical Ethics (em 2012) – publicação britânica dedicada a promover a reflexão ética na prática médica e investigação científica –, o médico dinamarquês SorenHolm, também professor de Bioética nas universidades de Manchester (Inglaterra) e de Oslo (Noruega).
E por que isso acontece? Simplesmente porque, ao contrário do que deveriam, os estudiosos consideram que seus esforços são em vão, pois tais problemas parecem insolúveis, revelou o professor, durante entrevista exclusiva ao Centro de Bioética do Cremesp.
Contrastando com sua calma e simpatia peculiares, o professor demonstra temperamento crítico contra colegas de sua segunda profissão: a Filosofia. Holm considera, por exemplo, que há uma tradição entre os filósofos de preocuparem-se mais em “expressar raciocínios inteligentes” do que em refletir sobre a forma com que suas conclusões podem ser usadas para aumentar a exploração de vulneráveis num “mundo real”.
Em relação aos colegas médicos, afirmou haver concluído, em suas pesquisas de pós-graduação, que muitos participantes apresentam dificuldades em diferenciar comportamentos “éticos” e experiência “técnica”.
Confira essas e outras opiniões do médico-filósofo-professor, inclusive a afirmação: “pesquisador que não domina a língua inglesa sai em desvantagem no universo acadêmico”.
Por Concilia Ortona**
Centro de Bioética – As pesquisas em ética e bioética não dão a devida importância a temas como “iniquidade” e “injustiça social”? O senhor chegou a chamar tais assuntos de “elefantes no quarto”... (de elephant in theroom, expressão inglesa usada para descrever algo que todos reconhecem como problema, mas sobre o qual ninguém tem a coragem de discutir).
Soren Holm – Sim, e isso acontece por vários fatores.
Um deles é simples: vários autores não negam a importância desses temas, mas não os aprofundam, por acharem que seus esforços serão em vão. Consideram pouco provável que algo concreto possa ser feito. Se você trabalha nos Estados Unidos ou no Reino Unido, baseará suas atitudes em políticos de seus países. Quando se perguntar, por exemplo, “devemos assumir a questão da justiça social global?”, ou “existe algo a ser feito?”, provavelmente as respostas serão “não!”, já que os responsáveis pelas políticas não se movem para consertar.
Em virtude disso, muitos pesquisadores sucumbem à tentação de relegar “injustiça” e “iniquidade” aos parênteses – ou a outro lugar secundário dos artigos. Isso não é necessariamente um problema, contanto que justifiquem, nas “considerações finais” dos trabalhos, a falta de destaque à justiça social.
De qualquer maneira, eles devem lutar, sim, contra a exploração, insistindo sobre a importância do assunto, pois a bioética promove um discurso crítico, que examina os aspectos éticos de arranjos sociais, se esses estiverem inseridos no âmbito dos cuidados de saúde ou se demonstram capazes de afetar a saúde e o bem-estar das pessoas.
Na prática, se observarmos os contextos sociais que conduzem à miséria e, em consequência, ao estar menos saudável do que os ricos e poderosos, nós, os bioeticistas, chegaremos à conclusão de que temos boas e plausíveis razões, além de obrigação ética, de falar contra tais arranjos.
Cbio – Sua carreira começou em medicina e depois se voltou à ética, à filosofia e à bioética. Uma área completa a outra?
Holm – Quando entrei na Faculdade de Medicina, na Dinamarca, queria ser cirurgião ortopedista. Durante a graduação, no entanto, me interessei pelos aspectos éticos da profissão, o que acabei estudando no mestrado, no final dos anos 90, quando me mudei para o Reino Unido, e nas pesquisas para o PhD e pós-doutorado, quando me graduei também em Filosofia, por achar os aspectos filosóficos fundamentais para entender os dilemas éticos.
Durante o PhD, fiz entrevistas com médicos e enfermeiros com o objetivo de identificar a forma como classificam os conflitos éticos. Um dos aspectos mais interessantes encontrados constituiu-se na grande discrepância entre o que são e o que os médicos consideram como “problemas éticos”.
Por exemplo, um dos sujeitos de pesquisa era um cardiologista que garantiu: “após 20 anos de profissão, não tenho qualquer dúvida em relação a comportamentos éticos”. Ficou ofendido! Ele era ético – e ponto. Como poderia não ser, se cuidava adequadamente da saúde dos pacientes? – como se o foco da discussão fosse o técnico. E veja que tal raciocínio estava longe de ser isolado.
Todos os entrevistados pensavam reconhecer os problemas éticos pelos quais passavam, mas a maioria não percebia os embutidos em aspectos como: será que o paciente entendeu o que um determinado procedimento significa? Compreendeu quais eram as suas opções? Realmente deu seu consentimento esclarecido?
Outra surpresa: quando apontadas situações hipotéticas relacionadas à ética, tanto os médicos quanto os enfermeiros identificavam facilmente o que poderia ou deveria ser realizado em relação à prática do atendimento, mas não se davam conta dos insucessos éticos.
Cbio – Apesar de ter estudado filosofia, o senhor é bastante crítico quanto à participação de filósofos nos campos da ética e bioética. Acha, inclusive, que estão “bem mais preocupados em demonstrar raciocínios brilhantes” do que em ajudar os necessitados...
Holm – Ponto principal: existem “filósofos” e “filósofos”, como acontece em outros grupos de pessoas. Porém, não se pode negar que a filosofia carrega uma forte tradição em se focar em argumentos inteligentes.
O ímpeto de um novo autor e/ou pesquisador é demonstrar que tudo que havia sido escrito antes do seu trabalho estava errado. Várias das análises filosóficas deste tipo, no mínimo, são potencialmente perigosas, e o risco maior é o pesquisador não refletir o suficiente sobre como suas conclusões podem ser usadas no “mundo real”, por indivíduos não tão éticos.
Por exemplo, há algumas conclusões filosóficas capazes de indicar que certas instâncias de exploração são até justificáveis. Os problemas acontecem quando afirmações do gênero são feitas em um cenário social repleto de interesses de poderosos, formado por indivíduos capazes de usar o ponto de vista bem intencionado do filósofo para embasar argumentos como “o tipo de exploração que nós fazemos é justificável”, quando não o é.
Em setores como pesquisa clínica há partes envolvidas extremamente poderosas, que usarão todos os trabalhos disponíveis em ética para fortalecer planos deletérios, ainda que o filósofo que fez a análise discorde completamente do contexto empregado.
Outro aspecto dificultador é que filósofos e outros pensadores parecem achar fácil promover regulações que funcionem tal e qual a forma proposta. No Norte da Europa, por exemplo, é permitido o “aborto por demanda”, o acesso ilimitado à prática até a 12ª semana de gestação.
Só que o procedimento não foi aprovado na Noruega, Suécia e Dinamarca por causa das argumentações inteligentes dos filósofos de que “os embriões até a 12ª semana são diferentes de pessoas”, mas, sim, pelo fato de se tratar de um período histórico particular daqueles países, em que havia um compromisso social em torno da legalização do aborto.
Ninguém, incluindo os políticos, afirmou categoricamente que “até a 12ª semana o aborto é correto”. Ele passou a ser praticado por conta de acordos políticos prévios. É o que quero dizer quando falo que os filósofos simplesmente não pensam sobre as dificuldades em se conceber regulações e legislações.
Cbio – O senhor se considera mais médico ou filósofo?
Holm – Não sei... Digamos que seja uma vantagem ter recebido treinamento médico. Em parte, porque fica mais fácil de entender a situação vivida pelos colegas, e, também, pelo fato de a bioética estar fortemente vinculada às novas tecnologias, mais compreensíveis quando possuímos conhecimento biológico.
Cbio – É possível compreender uma situação sem vivenciá-la? Seu discurso defende que os filósofos não conseguem entender a magnitude do universo dos explorados porque, ao contrário deles, contam com “alimentação, saúde, oportunidades etc”...
Holm – Não é impossível, e muitos antropólogos são a prova disso. Mas acho bem difícil abrangermos a totalidade de sentimentos envolvidos em circunstâncias em que as necessidades básicas não são minimamente atendidas, quando o futuro parece inexistente porque não se imagina como sobreviver ao dia seguinte.
Se quisermos falar sobre alguma coisa, é necessária, pelo menos, uma tentativa enfática de raciocinar sobre como ela funciona. A própria literatura traz exemplos equivocados de autores que querem comentar a fundo situações de desemprego ou de abusos em empresas, quando trabalharam apenas em universidades, onde são regiamente pagos. É um patamar bem diferente de perder o emprego, que corresponde à nossa única possibilidade de comer ou de promover tratamentos médicos aos nossos filhos.
Cbio – Refletir é o único papel dos filósofos e bioeticistas, ou há espaço para a intervenção?
Holm – A filosofia e, principalmente, a bioética contam com uma importante tarefa crítica de reflexão sobre a prática dos cuidados em saúde. Mas seus estudiosos deveriam tentar olhar para tudo isso e pensar: “será que poderíamos fazer melhor?”. Se concluírem que “sim”, deveriam pensar de que jeito promover esse plano de resolver os problemas.
Existe uma porção de atividades diferentes em ética, dentro de clínicas e em hospitais, mas há também várias outras nos grupos empenhados em refletir sobre as maneiras de ajudar. Há muito espaço e muito trabalho, se quisermos ser úteis.
Cbio – O senhor já foi editor-chefe do Journalof Medical Ethics. Por que considera a língua como barreira para a difusão dos estudos em revistas científicas?
Holm – Para se tornarem conhecidos nos meios acadêmicos internacionais, é necessário que os artigos sejam feitos em inglês. Por isso, não há dúvida de que os pesquisadores que não escrevem em língua inglesa têm desvantagens, o que é uma pena, porque em suas línguas nativas até conseguem atingir comunidades em particular, mas não o centro acadêmico que se poderia almejar.
Aqui no Brasil, por exemplo, boa parte dos ótimos trabalhos nem chegará ao debate internacional, pelo fato de serem comunicados e divulgados apenas em português.
Tal exigência não deve ser vista como discriminatória. Trata-se apenas de um fato particular em comunicação acadêmica. Antes da 2ª Guerra Mundial, quando a língua inglesa não era preponderante na área, as comunicações médicas eram realizadas em francês e alemão. Isto é e sempre foi assim – do contrário, muitas revistas científicas precisariam mudar completamente sua postura.
* Entrevista originalmente publicada na revista Ser Médico nº 59
** Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp, especialista em Bioética e mestre em Saúde Pública (USP)
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