Objeção de consciência

Jornal do Cremesp - Edição 342 - Novembro de 2016

Objeção de consciência pode esconder eventual discriminação

Embora o médico não seja obrigado a fazer algo contra seus valores, a Medicina deve ser exercida sem discriminação de nenhuma natureza


Motivos para declinar atendimento devem ser datalhados em prontuário
 

Pediatra decide não continuar a atender um paciente, alegando impossibilidade de“passar por cima de seus princípios”. Em sua argumentação, afirma não ter mais condições ao atendimento por estar “abalada” e “decepcionada”, oferecendo-se, inclusive, para fazer um relatório a outro colega capacitado a acompanhar a criança.

Motivo: os pais do atendido militam em partido político com o qual não compactua.

Situação como esta leva a reflexões a respeito do entendimento, no campo da Saúde, do – subjetivo – direito à objeção de consciência, que pode ser interpretado como “ninguém ser obrigado a fazer algo contrário ao que pensa e sente, especialmente, ferindo seus valores morais e espirituais”. Isso está previsto, inclusive, pelo próprio Código de Ética Médica (ver box), quando salvaguarda a decisão autônoma por não atender quem não desejar.

O primeiro conflito pode surgir quando um direito parece ultrapassar a tênue barreira da discriminação – aqui, vale lembrar que o Código estabelece ser a Medicina uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade, a ser exercida sem discriminação de nenhuma natureza.  Questões: posso me negar a atender alguém por conta de escolhas políticas e/ou ideológicas? Qual é o limite entre minhas crenças e valores e aqueles essenciais ao paciente?

Na opinião de Bráulio Luna Filho, diretor e 1º secretário do Cremesp, “dentro do princípio geral da Medicina, o médico deve atender todo mundo, independente de posições políticas, ideológicas etc”. Para ele, a recusa prevista ao atendimento dirige-se a situações bem excepcionais, como conduta agressiva do paciente – ainda assim, encaminhando-o a colega. “Não discriminar é norma constitucional”.

Discriminação?
No artigo Objeção de Consciência: Reflexões no Contexto da Bioética, o teólogo Mário Antônio Sanches, docente de Bioética da PUC-PR, considera que o termo abriga princípios morais inalienáveis: o respeito à autonomia plena e consciente da pessoa e sua liberdade. Porém, “não pode esconder, nem se fundamentar em caprichos pessoais, subjetivismos nem intransigente obstinação”.

Tende ao mesmo raciocínio Reinaldo Ayer de Oliveira, coordenador do Centro de Bioética do Cremesp, para quem a prerrogativa da objeção de consciência, no fundo, pode estar sendo usada por alguns profissionais para discriminar particularmente determinados pacientes. “Até que ponto alegar o respeito aos próprios ditames de consciência não esconde a imposição de um valor pessoal a um atendido?”, reflete.

Max Grinberg, membro do Conselho Consultivo do Centro de Bioética do Cremesp, adota como Norte o Código de Ética Médica. “Em termos gerais, quando não se parte de motivos fúteis e/ou discriminatórios, nosso Código permite recorrer à objeção de consciência, no limite da urgência e emergência, e quando não há um colega a quem encaminhar”.

Antes disso, contudo, é necessária profunda análise caso a caso e, se a decisão for por declinar o atendimento, os motivos precisam ser detalhados em prontuário.

Dúvidas persistentes
Dilemas, conflitos e dúvidas em relação à abrangência da aplicação da “objeção de consciência” em Saúde não ocorrem apenas no Brasil. As discussões têm se intensificado nos últimos anos, em outros países. Há mais de uma década, o bioeticista australiano Julian Savulescu, da Universidade de Oxford, argumenta que “os pacientes deveriam ser melhor protegidos dos valores pessoais de médicos”, particularmente, em relação à assistência em fase de morte; aborto e contracepção.

Dentro desses temas delicados, artigos de Savulescuno British Medical Journal (2006) e na revista Bioethics (2016) admitem, em resumo, que crenças religiosas profundamente arraigadas, por vezes, entram em conflito com alguns aspectos da prática médica. Mas que médicos “não podem fazer julgamentos morais em nome dos pacientes”. Tal ponto de vista colide frontalmente com o que pensam boa parte dos colegas, como o bioeticista americano Wesley Smith, que afirmou: “não podemos ser obrigados a nos acumpliciar com aquilo que consideramos pecados graves”.

Mesmo assim, durante workshop realizado em julho, em Genebra (Suíça), Savulescu recrutou mais de uma dezena de bioeticistas de renome, que assinaram o decálogo Declaração de Consenso sobre a Objeção de Consciência em Saúde (ver box) no qual advogam, em suma, que as obrigações primárias de profissionais de saúde dirigem-se aos seus pacientes, e não à sua própria consciência.


Constam do Código de Ética Médica

•  O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente;

•  No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes (...) desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas;

•  É direito do médico recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.

 

Trechos do Consenso de Bioeticistas estrangeiros

•  O profissional da saúde que objetar pela consciência deve explicar sua decisão;

•  O ônus da prova sobre a razoabilidade e sinceridade da objeção é do profissional;

•  Na presença de conflito, o profissional deve encaminhar o paciente a colega que aceite o caso. Na impossibilidade e em emergência, deve realizá-lo;

•  Quem se isentar de atendimento (em serviço público) por objeção de consciência deve cumprir o período em serviços comunitários.

 


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