A 9ª edição do Congresso de Bioética de Ribeirão Preto – IX Cobirp –, realizada pela Câmara Técnica Interdisciplinar de Bioética do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), entre 26 e 28 de outubro, abordou temas instigantes, na proposta de trazer à tona interfaces entre Medicina, Bioética e Direito. Assim, o campi Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) foi palco de palestras e discussões envolvendo, entre outras, cesariana a pedido; transfusão de sangue a testemunhas de Jeová; além dos danos da judicialização na obtenção de remédios caros e fora de protocolo.
Coube ao presidente do Cremesp, Lavínio Nilton Camarim, destacar a importância da Bioética no pensamento médico contemporâneo, na abertura oficial do IX Cobirp. Segundo ele, “a partir de seu impulso mundial, na década de 1970, e, no Brasil, na de 1990, a Bioética só trouxe o bem, colocando questões referentes à crença, tecnologia e humanidade em um mesmo patamar”.
Discutir Ética e Bioética "torna-se essencial em um momento histórico marcado por crises morais e de valores, facilitadas pelos novos meios de comunicação, como o WhatsApp, ou mesmos os tradicionais, como a imprensa escrita e falada, que acabam manipulando a opinião pública, usando a tática de divulgar, repetidamente, algumas situações que consideram como verdade absoluta, fomentado intolerâncias e, até mesmo, colocando em risco 'direitos adquiridos da sociedade', como o Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo", apontou o presidente do Cremesp.
A Ponte e a Saúde na Amazônia
Tal etapa do Cobirp foi presidida por Isac Jorge Filho, delegado do Cremesp em Ribeirão Preto e um dos organizadores do encontro, que, de maneira poética, mencionou a Bioética como sendo uma “ponte” preparada para unir áreas que, aparentemente, se situam de forma paralela e sem se cruzar, como o Direito e a Medicina – em menção à “Ponte para o Futuro”, expressão clássica do médico Van Rensselaer Potter sobre o então novo conceito interdisciplinar que acabara de cunhar.
Também participaram da comissão organizadora do IX Cobirp Marco Aurélio Guimarães (FMRP-USP); Hermes de Feitas (FMRP-USP) e Márcio Henrique P. Ponzilacqua, da Faculdade de Direito de Ribeirão (FDRP).
Além da Lavínio e Isac Jorge, falaram na cerimônia a advogada Lívia Maria Zago, representante da Camara Técnica de Bioética do Conselho Federal de Medicina (CFM), que proferiu a palestra “Bioética e Sua Interface entre a Medicina e o Direito”; e José Bernardes Sobrinho, presidente do Conselho Regional de Medicina do Amazonas, que revelou aos presentes algumas dificuldades de se exercer a profissão na região Norte, onde atuam apenas 4,4% dos médicos do país, apesar de estender-se por quase 1/5 do território nacional. Para dar uma ideia: por vezes, para conseguir atendimento médico, as populações do interior recorrem a barcos, em um trajeto que chega a durar dias ou semanas.
Cesariana a pedido
Uma das mesas-redondas mais aguardadas do encontro abordou a Cesárea a Pedido no SUS – Aspectos Bioéticos e Legais, contando com a presença, entre outros, de Geraldo Duarte, professor de obstetrícia da FMRP-USP, segundo quem somente a partir de meados do século XX mãe e filho passaram a ter a mesma importância, no processo de gestação e parto: antes a mulher era protegida pela sociedade, devido sua função de procriar. Em contrapartida, a criança era relevada a um 2º plano, e vista como “substituível”.
Pela mudança de paradigma, a cesariana a pedido “surgiu como demanda da sociedade como alternativa ao parto vaginal, por praticidade ou preferência, em países sem tradição obstétrica”. Em nações mais adiantadas, permanece valorizada a figura da enfermeira obstetriz, capacitada para aguardar e auxiliar nos trabalhos de parto vaginal. “Grande parte das solicitações de pacientes do SUS pela cesariana acontece pura e simplesmente pelo medo de falta de assistência durante o parto normal”, lamentou o professor.
Como forma de superar temores, sugere identificar, já na primeira consulta, o tipo idealizado de parto pela grávida e parceiro, explicando prós e contras de cada alternativa, informações que devem ser disponibilizadas aos responsáveis pelo procedimento. Duarte e o colega Fábio Sgarbosa, delegado do Cremesp e membro da Câmara de Bioética do Cremesp foram uníssonos ao defender o direito da mãe de optar pela cesariana sem indicação, “quando todas as explicações foram fornecidas e, mesmo assim, continuar insistindo por tal via de parto”.
Transfusão de sangue a testemunhas de Jeová
Outro assunto a respeito do qual (quase) nunca se obtém consenso fez parte da pauta do IX Cobirp, em mesa coordenada por Marco Aurélio Guimarães, da Câmara de Bioética do Cremesp: o que fazer diante de paciente Testemunha de Jeová em risco de morte que não aceita receber sangue?
De acordo com o intensivista Mauro Hilker, também da Câmara, apesar de ser a mais polêmica, a transfusão de sangue a testemunha de Jeová é apenas uma das situações em que o médico é surpreendido pela recusa do paciente a um tratamento proposto – há aquelas que incluem, por exemplo, quimioterapia, amputação, e ventilação mecânica. “É preciso refletir sobre o porquê de tendermos a aceitar a opinião do atendido nestes casos, e não a de Testemunhas de Jeová, em transfusão de sangue. Não será uma questão de intolerância?”, questionou. “Devemos estar preparados para sermos mais condescendentes”.
Neste âmbito, uma das tarefas mais complicadas parece ser respeitar o desejo do paciente, e acatar os ditames do Código de Ética Médica – que impõe atuar quando há iminente risco à vida. “Existe a falsa impressão de que temos sempre condições de convencer alguém a um tratamento e que, se não der certo, devemos acatar seus motivos filosóficos” resumiu o hematologista Benedito de Pina Prado Jr. (FMRP-USP). “A verdade é que há maior segurança jurídica a quem faz a transfusão compulsoriamente, frente a perigo de morte”.
Indo na mesma direção, o advogado Márcio Henrique Ponzilacqua afirmou que, nos tribunais, as interpretações majoritárias consideram que a primazia da vida sobrepõe a liberdade religiosa. “A jurisprudência mostra que o peso moral por não dar o sangue acaba ‘sobrando’ para médicos e hospitais”, afirmou.
Judicialização e outros assuntos interessantes
Nem o SUS, nem os planos de saúde, têm como suprir a –enorme – quantidade de pedidos por medicamentos fora dos protocolos e por tratamentos especiais vindos pela via judicial.
Coube à juíza de Direito Marta Maffeis falar no Congresso sobre um dos temas bioéticos mais complexos da atualidade e longe de solução: como reverter o processo de judicialização da saúde?
Em mesa mediada pelo médico Edson Umeda, da Câmara de Bioética do Cremesp, a juíza foi direta: “apesar de, por preceito constitucional, a saúde da população ser responsabilidade do Estado, não há sistema que resista a um modelo que se propõe a arcar com todos os remédios, independentemente do custo”. Conforme Maffeis, limites estão sendo discutidos até em países desenvolvidos e com tradição de universalidade, como o Reino Unido e seu National Health Service (NHS).
Além desses assuntos controversos, o IX Cobirp trouxe outros, que incluíram o Sigilo Profissional em Medicina, discussão coordenada por Antônio Pereira Filho, diretor de Comunicação e responsável pela Câmara de Bioética do Cremesp, da qual participaram o advogado Guilherme de Oliveira Ortolan, e o médico e advogado Guilherme Ortolan Jr, para quem “o comportamento ético perante a vida e profissão deveria ser o mesmo daquele expressado pelo médico nas redes sociais”; e o Papel Bioético da Necropsia Quando há Discrepância de Diagnóstico – debate a partir do qual se soube: a quantidade de erros encontrados por meio deste exame esbarra em 10%, mesmo em hospitais de ponta.
Seguindo a proposta original da organização, um tema de interesse local compôs o Cobirp: dentro do Programa de Educação em Saúde Coletiva (PESC), do Cremesp, foi realizada na Câmara Municipal de Ribeirão Preto uma Análise Bioética da Cana de Açúcar, abordando particularidades quanto à Realidade Atual do Sistema Produtivo, bem como, impactos Psicossocial, Ambiental e à Saúde Humana dos plantios.
Fundamentos e reflexões da Bioética
Foi lançado oficialmente no IX Cobirp o livro Bioética – Fundamentos e Reflexões, fruto de percepções agrupadas por décadas pelo autor, Isac Jorge Filho, desde o tempo em que passou a dividir seu empenho profissional e intelectual entre duas áreas aparentemente distintas, a Medicina e a Ecologia, mas que, de forma curiosa, alinharam-se em um novo campo de conhecimento: a Bioética.
Publicado pela Editora Ateneu, Bioética – Fundamentos e Reflexões é dividido em nove partes, 28 capítulos, além de 13 leituras especiais de reflexão. A grande maioria, escrita pelo próprio Isac Jorge Filho, e, em menor proporção, por colegas da Câmara Técnica Interdisciplinar de Bioética do Cremesp, da qual o autor é participante ativo.
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