Planos de baixa cobertura

Jornal do Cremesp - Edição 346 - Abril de 2017

Planos de baixa cobertura implicam dilemas bioéticos

Ter um plano de saúde para chamar de seu. Esse era o terceiro maior objeto de desejo dos brasileiros, conforme pesquisa divulgada três anos atrás pelo instituto de pesquisa Ibope Inteligência. Por isso parecem tão atraentes propostas envolvendo “planos populares” ou “acessíveis”, como a encaminhada por grupo de trabalho do Ministério da Saúde à avaliação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Na verdade, tratam-se de planos de saúde de baixa cobertura e, como toda mudança radical na área, merece reflexões éticas e bioéticas.

Apesar de faltar transparência ao processo, sabe-se que a fórmula para praticar preços mais baixos do que a oferta atual passa por diminuir a cobertura oferecida. O chamado “plano simplificado”, por exemplo, exclui tratamento especializado e exames de alta complexidade, além de deixar de fora internação. Mas o que poderá acontecer se um usuário desta categoria carecer de tais recursos?

Um paciente iludido pela “cobertura particular de tratamento” será forçado a recorrer ao Sistema Único de Saúde (SUS), que conta com acesso universal garantido pela Constituição, mas que já se encontra sem capacidade adequada de atendimento, devido ao subfinanciamento e problemas de gestão.

Na opinião do sanitarista Gonçalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP (FSP/USP) e mestre em Administração, a primeira questão é definir o que é um “plano popular”. “O limite de acessos será sempre pior para o usuário e para o SUS”. Restrições são inaceitáveis, diz, em especial, pela questão da assimetria de informações: as pessoas sabem exatamente o que estão comprando?

 

Questão da autonomia

Sem o entendimento correto, torna-se, no mínimo, complicado que o consumidor exerça a possibilidade de escolha. Conforme ensinam Fortes e Muñoz, no livro Iniciação à Bioética, do Conselho Federal de Medicina (CFM), “se existe apenas um único caminho a ser seguido, uma única forma de algo ser realizado, não há propriamente o exercício da autonomia”.

Como completaria mais tarde o bioeticista William Saad Hossne, ao abordar o referencial de equidade, “o exercício da ética pressupõe uma condição fundamental: liberdade para quê?”

Além do paciente, o médico também enfrentará situações delicadas, caso as propostas de planos de baixa cobertura passem pela ANS. Dependendo da limitação, “será impossível não infringir o Art. 32 do nosso Código de Ética Médica, que veda deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente”, salienta o conselheiro Antônio Pereira Filho, responsável pela Câmara Técnica de Bioética do Cremesp.

Haverá ocasiões “em que o colega nem conseguirá fazer um diagnóstico adequado, quanto mais indicar tratamento”, lamenta Pereira, para quem tais imposições arranham ainda o II Princípio Fundamental, “o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”.

Certamente “será um retrocesso se contarem com menor oferta de serviços”, diz Gonçalo Vecina, referindo-se ao período anterior à Lei n° 9.656/98, que instituiu, entre outros pontos, cobertura em consultas médicas em número ilimitado; de serviços de apoio diagnóstico (...) solicitados pelo médico assistente; e o fim da limitação de prazo de internação.

“Podem até oferecer rede menor, mas não oferta de serviços menor”, orienta o sanitarista.

 

E a segunda opinião?

O Art. 39 do Código de Ética Médica é claro ao vedar ao médico “opor-se à realização de junta médica ou segunda opinião solicitada pelo paciente ou seu representante legal”. Tal mecanismo “é usual em todo o mundo”, já trazia parecer do Cremesp, datado de 2006.

Considerando-se as propostas em avaliação na ANS, pode-se imaginar, por exemplo, que o paciente não contará com tal prerrogativa, caso conveniar-se ao “plano simplificado”. Em especial, se a nova opinião envolver atendimento especializado. “Em algumas modalidades desses planos, esse direito não será respeitado”, opina o conselheiro Antônio Pereira Filho.

Isso fere diametralmente a postura humanística defendida pela atual diretoria do Conselho: em Alerta Ético divulgado recentemente em seu site, o Cremesp lembra que a indicação e solicitação de segunda opinião não devem ser determinadas por interesses de terceiros, bem como não devem servir para desrespeitar o direito do médico-assistente de indicar o tratamento ou para captação indevida e antiética de pacientes.

 

Glosa sem direito a recurso

Glosa médica é o termo que se refere ao não pagamento, por parte dos planos de saúde, de valores referentes a atos ou procedimentos médicos já realizados pelos prestadores de serviços. A ocorrência de glosas condiciona-se a uma série de questões que incluem falta de documentação adequada e incorreção dos valores cobrados.

“Prestadores em geral, como médicos, laboratórios e hospitais, precisam tomar bastante cuidado ao aderirem a planos de baixa cobertura porque pode levar a uma glosa sem recurso”, explica Antônio Pereira Filho. Ou seja, perante litígios, as operadoras podem partir do pressuposto de que, se o afiliado aceitou o plano de cobertura limitada, já sabia que certos procedimentos e exames não seriam cobertos.

Já o sanitarista Gonçalo Vecina Neto se antecipa ao fato, ao esperar que tais planos nem sejam aceitos pela ANS. Contudo aconselha: “médicos não podem ficar passivos à possibilidade de se venderem planos que não cobrem as necessidades em saúde pública”.

 

 

 

 

 


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