Uma situação como a do bebê inglês Charlie Gard – que, com apenas onze meses de idade conseguiu captar a atenção mundial, pela falta de consenso entre seus pais e o hospital em que está internado, em relação à manutenção artificial de sua vida – pode levar a reflexões e discussões bioéticas sob diversos pontos de vista, como autonomia, beneficência, não maleficência e até a abreviação da vida de pacientes pediátricos.
Entre médicos, no entanto, particularidades demonstram-se capazes de interferir no fulcro da profissão. Até que ponto caberia ao Estado, pelo poder da Justiça, tomar decisões quanto a condutas eminentemente clínicas e vinculadas à ética profissional e à relação médico-paciente?
Mais complicado ainda é o fato de os médicos não apenas terem permitido a intervenção da Justiça, mas transferirem a ela impasses em saúde – coisa nada incomum, inclusive, no Brasil.
Caso Charlie
Ao nascer, em Londres, Charlie era um bebê aparentemente normal até que, com seis semanas de vida, começou a perder peso e as forças em virtude de condição genética incurável que causa perda progressiva dos movimentos. A partir dessa constatação, médicos e direção do Hospital Great Ormon Street tentaram, sem sucesso, convencer os pais a permitir que os equipamentos de sustentação da vida fossem desligados.
Para resolver o impasse, acionaram-se instâncias de três Cortes do Reino Unido, inclusive a Suprema, que decidiram deixar de manter o bebê vivo às custas de aparelhos, opinião ratificada pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TDH). Como a Justiça determinou que o tratamento “não traria benefícios ao bebê”, também se abortou a ideia dos familiares de transferir o bebê aos EUA, para tentar terapia alternativa para amenizar os sintomas.
Depois de pressionada por parte da opinião pública e pelas declarações do papa Francisco e do presidente dos EUA, Donald Trump, em defesa dos direitos dos pais de decidirem o melhor para o filho, a direção da unidade de saúde concordou em “reavaliar as possibilidades”. Último round: na audiência final, os pais aceitaram interromper o tratamento. “Já é tarde demais”, disse a mãe.
Representantes legais
“Crianças são um segmento populacional de vulnerabilidade absoluta”, lembra o pediatra e bioeticista Clóvis Constantino, conselheiro do Cremesp, cabendo aos pais ou responsáveis legais decidir. No caso específico, “a corte só deveria ser acionada após esgotadas todas as alternativas de entendimento”, que abrangeriam até a família expandida, se houvesse conflitos entre os genitores.
Toma a mesma direção Eduardo Troster, coordenador de residência médica em terapia intensiva pediátrica no Hospital Albert Einstein. Para ele, a vitória judicial dos médicos é amarga. “Sentiria-me desconfortável em privar os pais de sua esperança. Buscaria uma solução intermediária que considerasse a dor do momento, por exemplo, combinando a manutenção do tratamento por certo tempo”.
Interrupção à vida de crianças
O tema da “abreviação de vida” a menores de idade no Brasil é bastante restrito, quase sempre vinculado à limitação de tratamento aos chamados “adolescentes maduros” e em fase final de vida, geralmente ouvidos sobre os rumos de seu tratamento. Ainda assim, apregoa-se a garantia de cuidados paliativos, com vistas a manter o conforto e a evitar a dor.
Normas em outros países podem ser bem diferentes e passaram pelo crivo judicial, dos governos e da opinião pública.
• A Bélgica, em 2014, se tornou o primeiro país a permitir a eutanásia infantil voluntária, sem qualquer limite de idade, a partir do entendimento de parlamentares de que tal direito deveria ser estendido aos pacientes pediátricos, dependendo de sua “capacidade de discernimento”.
Contudo, o pedido obedece a normas rígidas, por exemplo, anuência dos pais; ser portadora de doença capaz de causar dor física, morte inevitável e em curto prazo e sem perspectiva de tratamento.
• Na Holanda, a eutanásia é tecnicamente ilegal entre pacientes menores de 12 anos. No entanto, Eduard Verhagen, advogado e pediatra conhecido por seu envolvimento na questão, documentou vários casos de eutanásia infantil, desenvolvendo, inclusive, um protocolo a ser seguido nesses casos.
“Decidam por nós”
Ainda que se baseie no Estatuto da Criança e do Adolescente, ao concordar que, a priori, os pais são defensores dos interesses dos filhos, Mário Hirschheimer, ex presidente da Sociedade de Pediatria de São Paulo e delegado do Cremesp, admite que nem sempre consensos são fáceis. “Algumas famílias são relutantes a qualquer abordagem de limite terapêutico”. O desafio que se impõe “é integrar os conhecimentos tecnocientíficos e a sensibilidade ética e humanitária em uma única abordagem”.
Matéria originalmente publicada no Jornal do Cremesp, nº 349, Julho 2017
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