12-03-2004

É melhor oferecer duplo standard às nações pobres do que nada

Fuja do "engano de Maria Antonieta" aconselha bioeticista americano


A impressão que fica ao conversarmos com Daniel Wikler, professor de Ética e Saúde Populacional da Universidade de Harvard, EUA, é que jamais obteremos uma reposta direta: primeiro ele divaga, pondera sobre todos os enfoques possíveis da questão e só depois se manifesta.

Tamanho senso de responsabilidade, com certeza, contribuiu para que ele conseguisse – a honra de – tornar-se o primeiro eticista do staff da Organização Mundial da Saúde (OMS), no ano de 1999.

Logo na primeira ligação em seu escritório em Genebra, precisou opinar a respeito dos critérios éticos de um ensaio com vacinas, realizado dez anos atrás e apoiado pela OMS – agora colocados em xeque. "Devemos pedir desculpas ou defender a pesquisa?" queria saber o preocupadíssimo interlocutor. Wikler precisou de várias horas – além de dezenas de telefonemas, direcionados a vários países – para dizer ao consulente uma só palavra: "defenda".

Durante o VI Congresso Mundial de Bioética, acontecido em Brasília em 2002, a postura do – simpático, mas sisudo – ex-presidente da International Association of Bioethics (IAB) não foi diferente: seu discurso referente à Inclusão e Exclusão Social no Processo de Globalização (parte da mesa-redonda Bioética, Globalização e Direitos Humanos) seguiu a fórmula ponderada e fundamentalmente acadêmica – aliás, a marca dos seus artigos.

Entre os pontos que defendeu, esteve a criação da Bioética Populacional  – que parte de uma discussão democrática que inclua e beneficie todas as pessoas, independente de credo, raça ou classe social.

Por outro lado, Wikler criou certo antagonismo com alguns dos presentes, ao vislumbrar pontos positivos em estudos de duplo standard – que empregam metodologias diferenciadas, quando aplicados em países ricos e em países em desenvolvimento (a colega Ruth Macklin, por exemplo, em entrevista ao Centro de Bioética do Cremesp, chegou a classificar o duplo standard como "um vergonhoso instrumento de poder, relacionado à pobreza e à impotência").

"Quem insiste unicamente em standard simples comete um erro ético comum", discordou Daniel Wikler, ao falar com exclusividade ao site do Centro de Bioética.

Veja, a seguir, o breve bate-papo com o professor:

Por Concília Ortona*

Centro de Bioética - O processo de globalização deve ser visto como um inimigo do ser humano?

Daniel Wikler - Há vantagens e desvantagens. Só que os benefícios não são absolutamente claros. O impacto, porém, é visível para quem quiser conferir.

Como as mudanças geradas pelo processo de globalização são inevitáveis, cabe aos bioeticistas se engajarem na defesa do ser humano, apoiando uma rede de proteção que busque a eqüidade social. Nós (os bioeticistas) temos a função de examinar pequenos detalhes de políticas (sociais) e determinar como é possível evitar a exclusão.

CB - Não é contraditório que o senhor, ferrenho defensor do ser humano, admita algumas possibilidades polêmicas, como as pesquisas de duplo standard?

DW - Creio que algumas pessoas que insistem em standard simples estão, na verdade, cometendo um erro ético comum, conhecido como Engano de Maria Antonieta (ou Marie-Antoinette Mistake, atribuído à última rainha da França, esposa de Luís XVI).

Ela falou algo como: "se os pobres não tiverem pão, que comam brioches" (risos).

Se você disser "apenas o melhor poderá ser feito", só que não consegue sustentar esse melhor, qual vai ser o destino das pessoas? Nada?

Enfim, suponhamos que não exista a possibilidade de aplicar um standard simples, só um duplo, capaz de trazer alguns benefícios. Se você não aceitar, estará pensando num virtual "standard de Maria Antonieta".

CB - Não é estranho que esse padrão de pesquisa, com dois pesos e duas medidas, seja defendido por países poderosos e aplicado em países em desenvolvimento?

DW - Não é bem assim, esse 'padrão de pesquisa' como você classifica é defendido e atacado por todos os lados. Veja: no Brasil, há grupos que defendem o duplo standard. Há várias respostas para uma mesma pergunta.

CB - Mas o senhor não acha que as nações ricas contam com maior poder de decisão sobre fazer ou não tais pesquisas?  No final, os mais pobres são obrigados a se submeter, sem oportunidade de escolha... 

DW - Sim. Isso é verdade.

Mas, apesar de o tratamento a voluntários de estudos em países em desenvolvimento merecer avaliação minuciosa, considero que o principal problema não está aí.

Digo, a vitimização durante a pesquisa não parece ser o principal problema desses países e seus cidadãos e, sim, a falta de pesquisas, o abandono completo.

É claro que reconheço: várias pesquisas realizadas em países em desenvolvimento não intentam beneficiar os moradores locais – que podem pagar moderados ou altos preços por elas.

Entretanto, por outro lado, é possível identificar benefícios de várias formas.

Deixando de lado eventuais ganhos terapêuticos à totalidade de participantes. A execução desses estudos é capaz de trazer novas facilidades; transferência de tecnologia; possibilidade de treinamento aos pesquisadores.

E não se deve esquecer: quem 'bate o martelo' a respeito da realização ou não das pesquisas são os próprios governos. 

CB - No caso, aqui, cabe ao governo brasileiro a decisão de permitir ou não os estudos.

DW - O Brasil está em uma posição curiosa, situa-se em um ponto intermediário: não o considero um 'país desenvolvido', nem '3º Mundo'.

Quero dizer, talvez vocês consigam oferecer os melhores padrões, porque podem patrocinar alguns brioches.

Mas e aqueles países que não conseguem sustentar tais brioches? Se não tiverem pão, ficarão sem nada?

CB - Falando em Brasil, o Congresso Mundial se mostrou um sucesso. Por que a Bioética e os bioeticistas brasileiros vêm ganhando a cada dia mais respeito?

Por uma série de razões. Primeiro, porque várias questões envolvidas em Bioética atingem o Brasil, um país marcado por extremos. Até mais do que afetariam qualquer outro país do mundo.

Segundo, porque o Brasil vem contribuindo bastante com as demais nações, quando o assunto é Bioética. Especialistas brasileiros tomam à frente em vários encontros mundiais, falam bastante...

Está certo que, às vezes, ficamos com vontade de dizer "calem-se" (risos).

É brincadeira. Quando há oportunidade de os brasileiros participarem de encontros internacionais, conseguem abrilhantar a ocasião. Aprendemos muito com eles.

As pesquisas e o professor Wikler

- A conhecida fórmula 90/10 é uma demonstração essencial sobre o desvio das prioridades em pesquisa: estima-se que 90% dos estudos em saúde sejam dirigidos à cura de enfermidades que afetam os acometidos por apenas 10% do montante global de doenças. (No artigo Conflito de Interesses e Problemas Éticos em Saúde em Países em Desenvolvimento).

- Pesquisas éticas envolvendo seres humanos em países em desenvolvimento devem ser fortalecidas e incentivadas. Isso requer rápido treinamento aos membros de comitês de revisão e longo treinamento a estudantes e coordenadores da pesquisa. (No artigo Conflito de Interesses e Problemas Éticos em Saúde em Países em Desenvolvimento).

- O assunto "conflito de interesses envolvendo pesquisadores que atuam no '3º Mundo'" precisa ser estudado e documentado e os resultados endereçados ao topo da agenda de discussão sobre ética em pesquisa. (No artigo Conflito de Interesses e Problemas Éticos em Saúde em Países em Desenvolvimento).

- Deveríamos começar a pensar em regras internacionais, ou até algum tipo de convenção, que visem estabelecer limites à sedução exercida sobre médicos e pesquisadores de países em desenvolvimento. (No artigo Conflito de Interesses e Problemas Éticos em Saúde em Países em Desenvolvimento)

- Algumas vezes, o que é chamado de "pesquisa" não passa de um exercício de marketing, uma maneira de apresentar determinada droga, um artifício para influenciar médicos e pacientes. Isto é, (a pesquisa) não tem a intenção de adquirir conhecimento e, sim, de promover as vendas do chamado "experimento". (No artigo Conflito de Interesses e Problemas Éticos em Saúde em Países em Desenvolvimento).

* Daniel Wikler é professor do Departamento de História Médica e Bioética da Universidade de Wisconsin e professor Ética e Saúde Populacional da Universidade de Harvard, EUA. Ele foi eticista sênior da Organização Mundial da Saúde (OMS) e membro da Comissão para o Estudo de Problemas Éticos em Medicina (órgão consultivo da presidência de seu país) e presidente da Associação Internacional de Bioética (IAB).
   É co-autor de vários livros, entre os quais From Chance to Choice: Genetics and Justice e In the Shadow of Eugenics.
 
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* Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp, especialista em Bioética e mestre em Saúde Pública


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