O médico sanitarista, cirurgião e ex-senador Giovanni Berlinguer (eleito pelo extinto partido comunista da Itália) foi a "inspiração" que moveu muita gente hoje, de renome, em direção ao estudo da Bioética - em especial, aos aspectos políticos envolvidos no tema, como Eqüidade e Justiça Social.
Entre seus antigos alunos e seguidores figura nada menos do que Volnei Garrafa, atual presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), que contou: em plena Ditadura Militar, todos os esforços valiam a pena para conhecer algumas das idéias de Berlinguer. "Nos anos 60-70, dois dos livros dele circulavam clandestinamente entre o pessoal da Saúde Pública. Eram cópias xerox de Medicina e Saúde Pública e do Saúde nas Fábricas, que escondíamos, ensebadas, debaixo das camas. Foram essas leituras que sustentaram as discussões iniciais do SUS".
Outro dado curioso: sua primeira visita ao Brasil, em 1951, como presidente da União Internacional dos Estudantes, foi quase impedida por obra e graça de Carlos Lacerda, que o classificou como "um comunista russo infiltrado".
Além desses dois livros citados por Garrafa, pelo menos outros 40 constam do currículo do professor Berlinguer - reconhecido como uma das maiores autoridades mundiais em Saúde Pública e em Medicina Social.
Como não poderia deixar de ser, tal brilho intelectual e estatura moral fizeram a entrevistadora tremer, no momento em que o bioeticista concordou em dar uma entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp, num dos intervalos do VI Congresso de Bioética, realizado em Brasília, em 2002.
É preciso dizer que tal "insegurança" foi logo superada, com a ajuda da simpatia tipicamente italiana do professor. Com bastante propriedade e simplicidade falou, em inglês carregado por sotaque, principalmente sobre os dois temas os quais havia sido escalado para abordar durante o evento: Bioética Poder e Injustiça (mote do Congresso) e Mercado Humano (Doação e Transplante de Órgãos).
Veja, em seguida, o resultado da conversa:
* Por Concília Ortona
Infelizmente o senador Berlinguer faleceu em 6 de abril de 2015 em Roma, Itália.
Centro de Bioética - Qual é a importância de se fazer um encontro desta natureza em um país em desenvolvimento, com Bioética "tão jovem", como é o caso do Brasil?
Giovanni Berlinguer - A idéia é bastante louvável, porque o Brasil vem dando boas contribuições nesta área, que apresentou grande desenvolvimento nos últimos dez anos. Na verdade, as contribuições regionais de brasileiros, somadas àquelas trazidas por pessoas de outros países latinos, demonstram-se úteis em vários campos e não apenas em Bioética.
Além do mais, o local é o ideal, justamente por causa das demandas urgentes verificadas em seu país e que interessam a todo o mundo, como as relacionadas à falta de eqüidade em saúde; exploração do trabalho de crianças e interferências no meio-ambiente.
CB - Ao que tudo indica, a preservação do meio-ambiente vem preocupando sobremaneira àqueles que se dedicam à Bioética. É disso o que o senhor está falando?
GB - Exatamente. Considero que o Brasil possui um dos mais preciosos meio-ambientes do mundo, paisagens localizadas em algumas das mais importantes cidades. Então, devemos concentrar nossos esforços na preservação desse patrimônio para, na medida do possível, transmiti-lo "intacto" às futuras gerações.
Infelizmente, alguns recursos já desapareceram. Não se trata apenas de um risco, é um dado de realidade. Devemos mudar, reverter essa situação.
CB - Durante a conferência de abertura do Congresso (Bioética, Poder e Injustiça), em várias oportunidades o senhor se referiu às mulheres como um grupo "altamente vulnerável". Do que parte essa avaliação?
GB - Isso significa que, em muitos países do mundo, elas são desprovidas dos próprios direitos e até mesmo da própria vida, como acontece em países asiáticos.
Se você calcular o número de mulheres que deveriam existir e o número efetivo de mulheres existentes, encontrará um coeficiente deficiente em vários milhões! (diz, exaltado, o professor Berlinguer. Para ilustrar essa afirmação, em seu discurso já havia citado o levantamento promovido pelo economista Amartya Sen, no qual é destacado: a "perda desnecessária" de mulheres chega a 44 milhões, na China, e 37 milhões, na Índia.).
CB - A vulnerabilidade do público feminino é verificada exclusivamente em nações pobres?
GB - De forma alguma! Isso ocorre em quase todo o mundo, em diferentes níveis, com a possível exceção das mulheres que vivem no norte da Europa, que participam ativamente da vida política e social, mobilizando-se efetivamente na luta por direitos iguais.
Nos outros locais, injustiças e iniqüidades prevalecem entre elas durante todo o seu ciclo de vida. Mesmo antes de nascerem, fetos femininos demonstram-se mais arriscados ao aborto seletivo. Crianças do sexo feminino são mais mal-nutridas e privadas de educação e cuidados em saúde, em comparação às do sexo masculino. Isso sem falar em práticas injustas e, infelizmente, "tradicionais", como mutilações genitais; casamentos infantis; prostituição e o trabalho pesado executado pelas meninas.
Acrescentando-se a tudo isso, estatísticas obtidas tanto em países pobres quanto em países ricos indicam que as mulheres trabalham durante mais horas diárias do que os homens, com salários bem mais baixos e piores condições de segurança.
Apesar destes transtornos, as mulheres, hoje, não podem nem devem ser vistas como meras vítimas: estão brigando para se tornar "atores" sociais, sujeitos capazes de contribuir para a solução de problemas, não apenas femininos, mas que afligem a todos. Estão conseguindo.
CB - Outro assunto polêmico também fez parte de sua participação no Congresso: o Mercado Humano (mesa-redonda mediada por José Osmar Medina Pestana e da qual fizeram parte, também, Márcio Horta, abordando O Conceito de Morte e o filipino Leonardo de Castro, falando sobre a possibilidade de presos doarem seus órgãos, em troca de diminuição das penas)
O senhor tem visões bastante críticas, com referência ao atual painel em doações e transplantes de órgãos, não?
GB - A coisa não é bem assim... (risos)
Reconheço que a área de transplantes de órgãos constitui-se numa das mais importantes descobertas da Medicina moderna e numa das mais nobres expressões da solidariedade humana.
Por outro lado, tanta ênfase à tecnologia é capaz de reduzir o corpo humano a uma espécie de "máquina" a ser dividida em partes, incentivando a criação de uma verdadeira "indústria produtora" de órgãos.
Entre outras coisas, isso significa que diferentes partes do corpo dos homens e mulheres, quando disponibilizadas para transplantes, por vezes são revertidas para outros fins, como a produção de drogas.
É claro que estas drogas são benéficas para alguns... Mas também têm o poder de transformar nosso corpo em produtos vendáveis, como qualquer objeto. Eu, sinceramente, rejeito completamente essa idéia, considerando também que, nesse mercado, os "vendedores" são sempre os mais pobres, reforçando, assim, o problema de exclusão social.
CB - Então, podemos concluir que a comercialização de partes do corpo humano acontece somente em países desprovidos de recursos financeiros?
GB - Isso depende. Venda de rins, por exemplo, afeta principalmente os países mais miseráveis, como a Índia.
Mas nos países ricos, como, por exemplo, Estados Unidos, há a comercialização DNA do homem. O mesmo ocorre com as células-tronco embrionárias. Tal mercantilização acontece em conseqüência da corrida das empresas em patentear as seqüências do genoma humano.
CB - Mas o senhor é contrário ao uso das células-tronco em pesquisas?
GB - Não! Sou favorável, até porque se trata de um instrumento interessante para curar doenças sérias. Só digo que as técnicas são éticamente contestáveis se apenas as pessoas ricas puderem valer-se delas.
Outro problema moral de difícil solução: é correto ou não usar embriões em pesquisas?
CB - Lady Warnock (Mary Warnock, baronesa britânica autora do Estatuto do Pré-Embrião) tentou indicar um "caminho" para resolver tal dilema afirmando, em sua explanação, que o uso do embrião é aceitável até o 14º dia depois da fecundação...
GB - Penso que tudo isso não passa de invenção dos pesquisadores da Grã-Bretanha, na tentativa de justificar intervenções que pretendem fazer em embriões. Eles literalmente inventaram a denominação "pré-embriões", que é totalmente fora da realidade e sem qualquer validação científica.
Simplesmente porque não há diferença substancial entre o embrião no 13º, 14º e 15º dias.
Existem, sim, modificações por volta do 14º dia, só que não são prerrogativas desta ou daquela datas: mudanças são vistas durante os nove meses de gestação. Não é possível determinarmos "categorias" com diferenças claras quando falamos de fetos e embriões.
Outras considerações do professor Berlinguer
- Problemas em Saúde não podem ser limitados à relação médico/paciente. Eles implicam em uma intervenção nos fatores políticos e sociais das doenças; nos comportamentos humanos e nas instituições e tecnologias.
- Bioética da Vida Diária (Bioethics of Everyday Life) refere-se às condições persistentes do ser humano em todo o planeta e seus reflexos morais sobre o nascimento; em relação aos gêneros e entre diferentes populações humanas; na doença e no tratamento de doenças; na morte; no meio-ambiente; na interdependência entre seres humanos e outras criaturas vivas.
- O caráter pluralista da Bioética não deveria apenas ser permitido, mas reconhecido como um valor, garantindo que os direitos de outras pessoas não fossem violados.
- Uma situação paradoxal tem crescido nas últimas décadas. Avanços dos conhecimentos científicos garantem (melhores) epidemiologias, diagnósticos, prevenções, terapias e reabilitações. Mas todo o processo vem se tornando mais e mais seletivo. Alguns podem ser beneficiados e salvarem-se, enquanto um número muito maior de indivíduos não consegue pagar por estes recursos e morre.
- Há uma rígida distinção entre quem (pessoas, grupos ou Estados) é considerado bom e os que são classificados como "os malvados". Como se existissem os impérios dos "bons" e dos "maus". Assim, pessoas que, por direito, deveriam ser livres quanto aos seus próprios julgamentos e sentimentos, podem ser prejudicadas ao se expressarem.
* Giovanni Berlinguer, ex-professor nas universidades de Sassasi e La Sapienza, em Roma, foi deputado (1972-83) e senador da República Italiana (1983-92) pelo extinto Partido Comunista Italiano (PCI), atual Partido Democrático de Esquerda (PDS) - onde ainda é um dos militantes mais respeitados. É também reconhecido pelo papel fundamental no desenvolvimento da Reforma Sanitária Italiana.
Em 1999, recebeu os títulos de cidadão honorário de Brasília e de doutor honoris causa, da Universidade de Brasília (UnB).
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