22-04-2003

Eutanásia pré-requisitada é incoerente

Especialista holandês indica falhas nos critérios legais adotados em seu país


Boa parte dos jornalistas presentes ao VI Congresso Mundial de Bioética, em 2002esperava que o ilustre representante da Holanda, responsável por explicar as regras sobre a eutanásia que vigoram em seu país, defendesse incondicionalmente a prática.

Ledo engano: durante o debate Morte assistida: os últimos desenvolvimentos, o Dr. Johannes JM van Delden, professor de Ética Médica na Medical School of Ultrecht University, não apenas não se demonstrou um ferrenho defensor do  suicídio assistido - na verdade, atuou como uma espécie de "contraponto" a Peter Singer, o famoso "Doutor Morte" - como apontou falhas na lei holandesa que disciplina o assunto.

Seu principal alvo de ataque foi artigo que autoriza, em determinadas circunstâncias, a realização da eutanásia pré-requisitada. "Há importantes problemas éticos e práticos envolvidos. Estou sendo critico demais? Deixar uma determinação por escrito é a prova de que nosso paciente demente quer realmente morrer, na época do procedimento?", questionou van Delden à platéia e à mesa-redonda, que contou ainda com a participação de Margaret Peggy Battin e mediação de Alexandre Capron, ambos professores norte-americanos.

Depois de debater um tema tão delicado, o gentil professor de 42 anos e atual secretário International Association of Bioethics (IAB) concedeu entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp. Confira, a seguir, o resultado.

Por Concília Ortona*

Centro de Bioética - Causou certa surpresa constatar que, em determinadas situações, o senhor se demonstra contrário à eutanásia. Justamente por ser natural e trabalhar no primeiro país a discutir e a legalizar a prática. Como avalia esta associação Holanda/eutanásia que muita gente faz?

Johannes JM van Delden - Em uma certa perspectiva, entendo os motivos pelos quais indivíduos com realidades diferentes, vivendo a milhas e milhas de distância, considerem que todos na Holanda, ainda que sejam médicos, defendam a eutanásia em qualquer circunstância, "torcendo" ou ficando "contentes" com pedidos desta natureza...
  
Entretanto, é óbvio que se pararem para pensar por mais alguns momentos, chegarão à conclusão de que nós, como pessoas racionais, conseguimos discriminar entre os casos em que pensamos "sim, esta pode ser a solução" e outros, em que concluímos  "por favor, não faça isso". 

A própria existência de comitês de revisão dos pedidos de eutanásia na Holanda é a demonstração de que não estamos preparados para decidir sozinhos ou acatar a todas as solicitações.

CB - É diferente falar a respeito de eutanásia em um país de tradição católica como é o Brasil, em comparação a alguns países europeus e aos Estados Unidos? A legalização da morte assistida é uma tendência que está se expandindo?

van Delden - Em alguns pontos, há diferenças ao abordarmos a eutanásia aqui ou em outros lugares, mas é bom lembrar que a maioria dos países europeus também não é tão entusiasta assim, com relação à liberação da prática.

Por isso, acho que estamos bem longe da existência de uma tendência para a criação de legislações que permitam a eutanásia em todos os estados e nações do globo. Basta considerar que houve um período de cerca de trinta anos, entre as primeiras discussões na Holanda e o exemplo ser seguido pela Bélgica e o estado de Oregon, nos EUA. 

CB - A legalização da eutanásia passou a vigorar na Holanda em abril de 2002, mas vem sendo debatida desde a década de 70. O senhor acha que, ainda que tão discutida, ela não contempla a todas as situações?

van Delden - Talvez a lei abranja alguns aspectos relacionados às pessoas que solicitam a eutanásia, mas não a totalidade absoluta.

Veja: sou membro de um comitê de acessibilidade, já escrevi meu nome em diversas decisões avalizando alguns pedidos, por concluir que era o mais certo.  Só que, em vários outros, pensei: "como podemos ter certeza?".

CB - Quais são os critérios utilizados pelos médicos holandeses, na decisão por propiciar ou não a eutanásia?

van Delden - Para não ser acusado de homicídio, basicamente deve certificar-se de que a solicitação partiu de uma decisão voluntária, feita por um paciente informado; foi bem considerada, por uma pessoa capaz de compreender claramente sua condição e que conhece outras possibilidades; o desejo de morrer deve ter alguma duração; perante a um sofrimento insuportável e sem possibilidade de alívio, tanto de ordem física, quanto mental.

Se atendidas as regras, o médico precisa consultar outro colega que, de maneira independente, concorde com a aprovação da solicitação. Só aí, eventualmente, a eutanásia poderá feita de uma forma apropriada, ou seja, por meio de um ato médico profissional e cuidadoso.

CB - O senhor discorda da aplicação destas normas, no caso de pacientes incapacitados de expressar seus desejos? 

van Delden - Minha explanação aqui no Congresso foi bastante critica e direcionou-se a apenas um dos artigos da lei que vigora na Holanda e também na Bélgica, incluído recentemente.  Refere-se justamente à possibilidade de realizar a eutanásia pré-requisitada.

O médico poderá realizar a eutanásia caso o paciente, quando ainda competente, deixar por escrito seu desejo de morrer. Contanto, óbvio, que sejam atendidas todas as outras normas legais.

Na minha opinião, este artigo é bastante inconsistente e incompatível com a própria estrutura normativa que o rege. Digo isso, partindo de ponderações morais e práticas.

Há várias indagações, sem resposta. Como julgar se a pessoa demente a ser submetida à eutanásia passa por um sofrimento "intolerável"? Isso significa estar experimentando um sofrimento cognitivo progressivo?

Como um médico que não participou do processo de decisão do paciente terá a certeza de que era realmente o que a pessoa queria, ao deixar instruções por escrito? Não estaria ele temporariamente deprimido, ou até, agindo sob pressão? 

E se a pessoa parece não estar sofrendo tanto agora? Devo me basear no passado ou no momento atual?

Podemos ter fortes crenças sobre isso, mas é muito difícil obter certezas...

CB - A intenção de legitimar tais instruções antecipadas não foi justamente a de proteger os interesses dos próprios pacientes?

van Delden - Há muitos problemas relativos a este artigo e, por isso, deveria ser repensado. 

Quer outro exemplo?  Uma das alegações mais comuns por parte de quem solicita antecipadamente a eutanásia refere-se a algo como "quero morrer, se um dia me encontrar doente a ponto de não reconhecer os membros da minha família".

Apesar de não estar lembrado do nome ou da fisionomia do parente, podemos efetivamente saber se não está reconhecendo algum tipo de calor humano vindo dele? 

Pode ser que não. Pode ser que sim.

CB - O senhor atua como médico em uma casa de repouso para pessoas idosas. Há pedidos freqüentes de eutanásia, por parte de seus pacientes?

van Delden - Não, felizmente são incomuns.

CB - Mas nos casos em que as solicitações ocorrem. É uma decisão que pesa muito nos ombros dos médicos? 

van Delden - A decisão é a soma de dois fatores primordiais. Isto é, resulta daquilo que a pessoa está me dizendo e pedindo, mas também de conclusões independentes, de profissionais que realizam severas avaliações estritamente médicas.

Isto é, mesmo se pedido for claro e bem argumentado, precisa passar pelo crivo de um médico que, de forma independente, acredita que este deve ser o melhor caminho a ser percorrido. 

Em janeiro do ano passado, fui confrontado com uma decisão desta espécie, na avaliação do caso de uma senhora de 62 anos, portadora de doença neurológica degenerativa.

Ela falava extremamente devagar e seus movimentos já se encontravam bastante prejudicados. Para dar lhe uma idéia, usava os dois únicos dedos capazes de algum movimento para apertar os botões da sua cadeira de rodas elétrica.

Queria morrer, a qualquer custo.

Passamos a conversar longamente sobre a natureza do pedido dela. Foi quando percebi que, fora a doença, existiam várias outras coisas que a deprimiam. Aspectos relacionados à família dela e ao fato de encontrar-se sozinha, numa casa de repouso. Tudo o que a levava a se sentir como uma "renegada", parecia relevante e, por isso, fui dando tempo ao tempo.

Quando chegou o verão na Holanda, surpreendentemente aquela paciente decidiu tirar férias de três semanas, as quais consideraria mais tarde como uma "época maravilhosa". Ao voltar, não queria mais a eutanásia.

Pode clamar novamente pela morte no ano que vem, mas não amanhã... Este caso ilustra muito bem que a solicitação pela eutanásia não é tudo.

CB - Então, não se deve partir de pressupostos apenas médicos, nem de argumentos unicamente emocionais ou psicológicos... 

van Delden - É claro que a minha paciente apresenta o tipo de doença que, sob vários aspectos, a torna "elegível" para a eutanásia. Principalmente por sofrer de uma doença neurológica gravíssima, contra a qual não podemos fazer nada.

Só que, como disse na minha palestra, por vezes a questão não se refere ao alívio da doença em si, e sim, ao alívio de todos os sintomas e emoções decorrentes dela.

Posso fazer alguma coisa sobre estes sintomas? Posso alivia-los? Se o médico responder "sim", acabou de receber a primeira "pista" para fundamentar sua decisão.

Autorização antecipada na berlinda

. Deixar algo escrito prova que o paciente quer morrer? Realmente não estou convencido disso... A menos ele tivesse assinado reiteradamente documentos expressando sua vontade

. Quanto ao aspecto moral, devemos ter bem claro para nós mesmos se morrer é, realmente, o desejo do paciente. Se ele estiver deprimido e demente, talvez um simples antidepressivo seja a solução

. Talvez não haja "alívio" para a doença, mas exista para os sintomas

. Deveríamos nós, médicos, aceitar a validade de uma instrução antecipada em certas circunstâncias, movidos pela compaixão?  Não! Regra número 1: a prática da Eutanásia nunca deve ser motivada pela compaixão e, sim, pela autonomia da razão.


- Johannes JM van Delden ocupa o cargo de Secretário da International Association of Bioethics (IAB).
É professor de Ética Médica na Medical School of Ultrecht University, na Holanda, atuando ainda como médico em uma grande casa de repouso de seu país. Escreveu tese baseada nos aspectos éticos e médicos das solicitações do tipo Do Not Resuscitate (Não Ressuscitar). Seus principais campos de interesse profissional incluem Decisões Sobre Final de Vida; Problemas Morais nos Cuidados com Idosos e Métodos em Bioética.

* Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp; Especialista em Bioética e Mestre em Saúde Pública (USP)


Veja também: 
Diretivas antecipadas causam insegurança a médicos que lidam com pacientes terminais

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