21 de Agosto de 2014
CEM EM FOCO
Cabe aos gestores estabelecer prioridades sobre a alocação de recursos em saúde

Devemos lembrar que, para questões voltadas à nossa vida cotidiana, estamos utilizando conceitos muito recentes, pois somente a partir do século XVIII (e principalmente no século XX), se constrói o moderno conceito de justiça distributiva que demanda do Estado a intervenção no campo social e no econômico. Por seu lado, a sociedade deve distribuir bens ou produtos entre seus membros, principalmente, os que têm maiores necessidades. 

Por exemplo, quando da introdução de um novo equipamento de radioterapia ou de novos quimioterápicos, considerados mais eficazes e seguros para o tratamento de enfermidades neoplásicas, os gestores e os profissionais de saúde terão que assumir critérios de priorização, sabendo que não poderão atender a todas as necessidades de todas as pessoas. Trata-se, às vezes, de uma questão ética decidir quem vai viver; quem vai ter melhora de seu estado de saúde; e quem vai se beneficiar do escasso recurso.

É recente o caso da distribuição e da priorização de medicamentos contra o vírus influenza A (H1N1), em que inicialmente o próprio Ministério da Saúde advertia que não havia condições de atender a todas as pessoas potencialmente sujeitas à infecção, tendo elaborado critérios selecionadores, mas restritivos para a dispensação dos fármacos.
 
Isto, no momento, pode estar acontecendo na África, com a epidemia causada pelo Ebola.

A isso se denomina de microalocação de recursos escassos, referente à seleção individualizada de beneficiários de recursos disponíveis, em que se podem identificar os beneficiados e os que não serão beneficiados. 

Assim, nos é posta uma importante pergunta: Quais seriam os critérios éticos orientadores de uma justa priorização de recursos referentes aos cuidados de saúde

Devemos considerar que existem diversos critérios para a tomada de decisão envolvendo valores e princípios éticos, que podem se completar ou se confrontar. 

Entendemos que os profissionais de saúde e os pacientes desejariam que houvesse critérios objetivos, de natureza técnica, para a tomada de decisão a ser fundamentada na vulnerabilidade individual à doença, na gravidade dos casos, na probabilidade de adoecimento e/ou de morte ou complicações ou na presença de comorbidades. 

Eficácia clínica, efetividade e eficiência também deveriam fazer parte desses critérios. 
Como exemplo de orientação de escolhas fundadas em critérios objetivos, pode-se lembrar de que, no atual momento brasileiro, segundo as normas ministeriais, presidem a alocação de fígado para transplantes, os critérios de eficácia clínica, gravidade (sistema MELD para adultos e sistema PELD para crianças), histocompatibilidade (HLA), tipo sanguíneo e compatibilidade anatômica e por faixa etária.

Todavia, os critérios de objetividade tecnocientífica não são desprovidos de valores éticos. Não são eticamente neutros. 

Ou seja, nem sempre se consegue decidir baseando-se em critérios de objetividade médica e científica, tendo que lançar mão de outros critérios, tais como: 

1) O critério da fila ou lista de espera que se baseia na noção da igualdade entre as pessoas.
Foi o adotado pela lei federal 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, que regulamentou a doação de órgãos e a realização de transplantes em nosso país, oferecendo os órgãos disponíveis às primeiras pessoas que estejam inscritas nas listas oficiais de receptores, ou seja, por ordem de chegada.  

2) o critério de aleatoriedade na escolha dos beneficiários dos escassos recursos parte do fundamento de que as vidas humanas são igualmente valiosas e que as pessoas devem ter iguais oportunidades.
Afirma-se que a “loteria ética” não afetaria a confiança estabelecida entre os profissionais de saúde e sua clientela e eliminaria a necessidade de comitês para a tomada de decisão de escolher. Contudo, como desvantagem, se afirma que um sorteio não incluiria outros fatores de relevância na tomada de decisão e poderia trazer angústias para as pessoas, por não terem certeza de que em algum momento seriam beneficiadas pelos recursos escassos, como acontece com as filas ou listas de espera.

3) o critério de idade pode ser usado tanto como fator positivo quanto como fator negativo para a priorização de recursos escassos.
Os estadunidenses Emanuel e Wertheim (2005), discorrendo sobre a priorização de vacinas contra a gripe aviária (influenza A H1 N5), defendem claramente o princípio de alocação baseado em ciclos de vida, entendendo que os adolescentes e adultos jovens devam ser priorizados (13-40 anos) e não crianças e idosos, como no caso brasileiro, aliando a noção de prevalência da doença e da possibilidade de anos de vivência.

Porém, a exclusão por idade para fornecimento de cuidados nos parece inadequada e perigosa, pois se baseia apenas em estatísticas artificiais, que não levam em conta as individualidades. Aliás, pode-se aventar que, mesmo que fosse possível ser estabelecido um patamar natural de vida humana, como considerar que isto seja moralmente relevante? Cinco anos a serem vividos com qualidade por uma pessoa idosa têm diferente significado moral do que quinze ou vinte anos a serem vividos por pessoas mais jovens? 

4) o critério do mérito ou da contribuição social por vezes é utilizado.
A noção de mérito implica que as pessoas são merecedoras em virtude de traços de caráter ou de ações virtuosas praticadas no passado ou de possíveis contribuições no futuro. 

Contudo, não é fácil se estabelecer uma linha demarcatória, do que seja uma conduta social que deva ser negativamente valorizada, de quando uma pessoa não age de forma “politicamente correta”. Esta avaliação não pode sempre ser feita tendo por base um senso comum ou seguindo as posições hegemônicas na sociedade, por poder levar a situações injustas e até discriminatórias. Por exemplo, deve-se considerar que uma pessoa não deveria ser priorizada para o tratamento de um câncer de pulmão caso seja um fumante inveterado? Ou que um adepto de esportes radicais não deveria ter prioridade a uma prótese para um de seus membros, em virtude de estar levando um suposto estilo de vida não saudável?

5) o critério de valor instrumental 
Implica em favorecer algumas pessoas conforme o estabelecimento de prioridades segundo uma meta identificada, que beneficie não o indivíduo em si mesmo, mas a coletividade. Tem origem em condições de guerra, catástrofes. Esse critério também é denominado por alguns autores dedicados ao estudo da temática como de “efeito multiplicador”. É de natureza utilitarista, acatando a máxima do “maior benefício para o maior número de pessoas envolvidas”, objetivando salvar o maior número de pessoas.

Durante a Segunda Guerra Mundial desenvolveu-se a penicilina, antibiótico efetivo para ampla gama de infecções bacterianas naquele momento. Contudo, como os estoques do medicamento não eram suficientes para a cobertura de todas as necessidades, o governo norte-americano decidiu que os militares seriam priorizados frente às necessidades dos civis, para que pudessem retornar às atividades militares. 

E, por esse motivo foi priorizado o atendimento de militares infectados com gonorreia, pois a bactéria naquele momento apresentava alta sensibilidade à penicilina, superando as sulfas. Também, em relação às necessidades cirúrgicas no campo de batalha, primeiramente deviam ser cuidados os pacientes menos graves para que pudessem rapidamente aumentar o poder de luta. Em seguida, a prioridade deveria ser dada aos mais seriamente comprometidos, que necessitariam de imediata reanimação ou cirurgia e, finalmente, aos que eram julgados como sem condições de sobrevivência. 

Nos caso recente do vírus influenza pandêmica (H1N1) as autoridades norte-americanas decidiram, no segundo semestre de 2009, que os profissionais de saúde e os trabalhadores de laboratórios de vacinas e indústria farmacêutica seriam priorizados para receber vacinas cujo estoque não comportava o atendimento de todos estadunidenses, em uma visão eminentemente utilitarista, maximizadora para beneficiar a coletividade.

Finalizando, alocar recursos escassos é uma decisão de natureza ética e deve levar em conta: fatos, princípios, valores, emoções, ideias e crenças ocorrentes na sociedade.

Em uma sociedade que tem como característica o pluralismo de valores morais, é necessário que as decisões públicas promovam a participação dos cidadãos e dos profissionais de saúde, que sejam transparentes para que todos tenham confiança nos serviços e nos profissionais de saúde. 

* Médico e Professor Titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (2009-2011)



Página inicial do boletim

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