16-10-2009

A primeira presidente da Sociedade Brasileira de Bioética

A psiquiatra Marlene Braz parecia onipresente no congresso que abordou Direitos e Deveres no Mundo Globalizado

A psiquiatra Marlene Braz parecia onipresente durante as palestras, conferências e mesas-redondas do VIII Congresso de Bioética, realizado entre os dias 23 e 26 de setembro de 2009, na cidade de Búzios, Rio de Janeiro: para onde se olhasse, nos corredores do evento, tinha-se a impressão de ver a – agitada – bioeticista, tentando dar conta de todas as demandas de sua função de presidente do evento, bem como, de presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB, diretoria 2007/2009).

Oficialmente, no entanto, participou de três mesas: a que debateu a globalização e crise econômica; outra, a que abordou a violência contra crianças e adolescentes e a última, a questão do envelhecimento. “Não tive a oportunidade de assistir o Congresso inteiro, em função de ser sua anfitriã e precisar resolver vários problemas no decorrer dos dias de encontro” lamentaria mais tarde, em entrevista concedida ao Centro de Bioética do Cremesp.

Apesar da correria, Marlene demonstrava-se feliz e realizada ao final do evento, “muito elogiado, especialmente pelo programa científico” com os principais nomes da bioética latino-americana, debatendo em torno dos direitos e deveres humanos no mundo globalizado.

Essa vitória, no entanto, é apenas parte da carreira da bioeticista. Uma mostra: ela começou a cursar medicina na Universidade Federal Fluminense (UFF) em plena vigência do famigerado AI5 (1968), tendo ocupado a função de vice-diretora do Diretório Acadêmico, coisa que lhe valeu problemas com a ditadura militar, adiando, inclusive, seu sonho de cursar o internato em psiquiatria. “Todos os ‘subversivos’ da época tiveram a mesma idéia...Além do mais, fui aconselhada a sair da UFF e seguir outra coisa qualquer” conta Marlene, que, à época, tinha um filho de três meses ao qual ainda amamentava.

Rumo mudado – optou pelo internato em Pediatria, no Hospital Silvestre, Rio – só voltou à Psiquiatria em 1984, “que foi meu motivo para fazer Medicina”, lembra, que, paralelamente ao atendimento de crianças e adolescentes em consultório, também atuou em cirurgia pediátrica e como docente, em instituições como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Instituto Fernandes Figueira (IFF).

Seu “caso de amor com a Bioética” teria início em 1997, quando defendeu tese de doutorado, cuja proposta era traçar uma mescla entre psicanálise e bioética em torno da questão dos testes preditivos genéticos para câncer de mama, pesquisa da qual fez parte nos seus primórdios.

Confira, a seguir, a entrevista com Marlene Braz, lembrada por muitos palestrantes do Congresso pela garra, dedicação e coragem, além do fato de ser a primeira mulher a encabeçar a SBB.

Marlene Braz

Centro de Bioética – A senhora foi a primeira mulher a ocupar a presidência da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB). Os dilemas bioéticos atingem de forma diferente as mulheres e os homens?

Marlene Braz – Sim, os conflitos bioéticos são diferentes para homens e mulheres, pela maneira com que o corpo da mulher é medicalizado e controlado pelo Estado, suscitando questões a serem resolvidas e que ainda recaem mais sobre as mulheres, como, por exemplo, aquelas envolvendo aborto, reprodução medicamente assistida, e a contracepção.

Não se pode ignorar também a submissão feminina a que ainda está submetida à maioria das mulheres em países como o nosso, os da África, os islâmicos...

Veja só: as mulheres só conseguem o Nobel na área da Paz e na Literatura. Não podem ou não conseguem se inserir nas Ciências, campo em que há necessidade de muita pesquisa e dedicação quase integral, pois estão imersas em múltiplas tarefas como a maternidade, amamentação, cuidado com os filhos, casa etc. Talvez isso mude pela recusa de muitas mulheres a terem filhos, em prol de suas carreiras. É esperar para ver.

Cbio – Isso quer dizer que, em sua visão, as mulheres continuam em posição vulnerável e, portanto, mereceriam maior atenção por parte dos interessados em Bioética?

Marlene – Acho que, de fato, as mulheres merecem uma maior atenção por parte dos bioeticistas, que deveriam se posicionar mais incisivamente sobre as questões que concernem ao gênero feminino – e não somente se preocuparem com a desigualdade em geral.

Se houver a emancipação das mulheres, teremos indivíduos emancipados. Para isto, as mulheres devem decidir o que fazer com seus corpos e não serem tuteladas pelos homens que detêm o poder.

Cbio – O mote do Congresso foi “Bioética, direitos e Deveres no Mundo Globalizado”. Por que a escolha, em vez dos temas “tradicionais” bioéticos, como, por exemplo, o aborto, a eutanásia?

Marlene – Consideramos a temática abrangente e focada nos problemas mais atuais, os quais, acreditávamos, iriam se agravar. Por exemplo, a crise econômica mundial se anunciava e havia necessidade de os bioeticistas se posicionarem quanto a ela, exigindo uma  reflexão profunda em torno da dupla questão: até quando os direitos individuais de alguns podem se sobrepor aos direitos de todos e quais deveres têm de ser assumidos por todos os atores envolvidos, para a preservação da vida? e que uso ideológico está sendo feito dos direitos coletivos, para suspender os direitos individuais?

Julgamos oportuno refletir também sobre temas sempre presentes – porque não resolvidos – como igualdade e diferença; ações afirmativas; a cultura dos direitos humanos; o avanço tecnológico; ética em pesquisa; e a preservação da biodiversidade...

 Há um ‘otimismo que deve ser pessimista’, porque a crise não acabou e ainda haverá reflexos futuros, como bem colocados na mesa que coordenei sobre Bioética, globalização e crise econômica, eixo temático essencial para promover a vida e a qualidade de vida.

Especificamente em relação ao Brasil, tal discussão revela-se ainda mais pertinente, uma vez que persistem grandes desigualdades sociais e econômicas entre os diferentes segmentos e regiões geográficas, imprimindo uma dinâmica social que propicia a exclusão.

Entretanto, temas como aborto e eutanásia entraram na programação, porque os dois estão interligados aos avanços tecnológicos e seus impactos sobre o início e o fim da vida.
 
Cbio – Organizar um Congresso, principalmente, um Congresso de Bioética (tema que nem sempre chama a atenção de patrocinadores) não é algo fácil. Quais foram as principais dificuldades a serem enfrentadas para que o evento acontecesse?

Marlene – Como já sinalizada a dificuldade é de patrocínio, porque não podemos ter qualquer patrocinador com quem tenhamos conflitos de interesse.

Para sua manutenção, nossa sociedade conta somente com a anuidade de associados e, apesar de termos mais de 1000, na realidade, menos de 400 estão em dia! Não temos, então, nem como começar a fazer um evento, que se inicia com a criação de um site e sua manutenção.

É estressante para todos que já tiveram esta função, mas temos conseguido algumas parcerias interessantes, como os conselhos profissionais, o governo, CNPq e outros órgãos de fomento. Assim, temos conseguido realizar grandes eventos, de alto nível, com poucos recursos.

Existem ainda dificuldades por parte dos bioeticistas em colocar quase um “selo ético” em empresas que podem não se mostrar tão éticas no futuro. Além disso, a questão da ética empresarial em nosso país está apenas engatinhando: há muito marketing social, mas os problemas éticos empresariais ainda são uma preocupação de uma minoria.

Apenas para dar um exemplo: convidamos o presidente do Instituto Ethos (organização sem fins lucrativos, cuja missão é mobilizar, sensibilizar e ajudar as empresas a gerir seus negócios de forma socialmente responsável), fazer uma conferência na abertura do Congresso, porque queríamos ter o tema da ética empresarial. Não conseguimos nem um representante.

Cbio – A Ética empresarial é clara entre os bioeticistas?

Marlene – Nem sempre: há bioeticistas que acham que a ética empresarial nada tem nada a ver com a Bioética. Dentro deste raciocínio, creio que o Instituto Ethos pode ter estranhando tal convite. Por outro, na opinião de Adela Cortina, filósofa espanhola que estuda  esta questão, qualquer ato ou conduta que trouxer danos a outros ela é foco da bioética.

Assim, quando vemos as empresas que empregam e desempregam, que provocam adoecimento em seus trabalhadores, que poluem o planeta, que querem auferir lucros extorsivos para seus acionistas mesmo isso custe a saúde de alguns, temos problemas bioéticos. Para mim, seria uma falta grave deixar a Bioética de fora dessa discussão. Não consegui pautar isto no congresso, mas espero que nos próximos este assunto volte.

Falando no evento, existe algo que queria fazer neste Congresso, mas fui voto vencido: gostaria que o próximo utilizasse apenas um grande salão em que todos pudessem assistir tudo – e não ficassem divididos em relação ao que ouvir e debater. Não importa que durasse mais dois dias.

Ao menos procurei dividir os debates em salões do mesmo tamanho, procurando não conferir mais peso para determinados palestrantes do que para outros. Todos importam.

Cbio – Em vários momentos do Congresso houve diferenciação entre Bioética “Ocidental” e “Oriental” e entre a Bioética Latina e a Européia/Americana. A Bioética pode ser entendida de diferentes formas por diferentes culturas e em diferentes locais?

Marlene – De fato há convergências e divergências. O ethos (palavra de origem grega que e significa valores, ética, hábitos e harmonia) é diferente de acordo com a cultura de cada grupo, tempo e localidade, o que torna difícil chegarmos a um consenso sobre o que é certo ou errado, correto ou incorreto, justo ou injusto.

Entretanto, os princípios éticos em comum devem ser levados em conta em uma discussão, se  quisemos acentuar as convergências. Mesmo que não haja acordo sobre determinadas condutas.

Cbio – A senhora pôde acompanhar algumas mesas-redondas e debates do Congresso? Quais chamaram mais a sua atenção?

Marlene – Não tive oportunidade de assistir todo o congresso em função de ser a anfitriã – e ter que resolver vários problemas no decorrer do evento.

O Congresso foi bastante elogiado, assim como o programa científico, com os principais nomes da bioética brasileira e latino americana, debatendo em torno dos deveres e direitos humanos no mundo globalizado. Fiz uma palestra sobre um tema pouco trabalhado em bioética, que é a questão da violência contra crianças e adolescentes, e coordenei outra mesa sobre envelhecimento.

Cbio – Em sua opinião, qual é o tema mais importante a ser debatido atualmente pelos interessados em Bioética?

Marlene – Acredito que continua sendo o tema deste congresso. Na era dos direitos, as pessoas estão se esquecendo dos deveres para com a próxima geração, para com o planeta e a biodiversidade.

Cbio – Hoje, muitos bioeticistas consideram que os famosos “quatro princípios da Bioética” “principialista” tornaram-se insuficientes para a reflexão dos diversos dilemas bioéticos. Que tipo de linha a senhora adota como referencial teórico?

Marlene – Não considero insuficiente a bioética principialista de Beauchamp e Childress.

Ela é muito útil em várias situações, principalmente, aquelas referentes ao campo biomédico e as pesquisas com seres humanos. Tanto que foram a base da Resolução Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 196/96 que regula o assunto em nosso país. 

O que se coloca para os bioeticistas brasileiros é que a bioética nos países emergentes deve se ater mais às questões da justiça distributiva, dada a desigualdade existente em nosso país, onde as pessoas estão mais vulneráveis e necessitam de proteção. Pessoalmente estou desenvolvendo a Bioética da Emancipação, influenciada pela questão vital de tornar todos os vulneráveis indivíduos plenos de autonomia.

Minhas influências teóricas são: Stuart Mill, Kant, Foucault... Também admiro bastante John Rawls  e Amartia Sen, que estudaram com profundidade a questão da desigualdade e ofereceram soluções para ela. No Brasil, minha referência é Paulo Freire e sua educação para emancipação. Sou muito inspirada por Fermin Roland Schramm (pesquisador da Fiocruz), a quem devo muito de minhas leituras e crescimento como profissional deste campo.

Como se vê, é necessário estudar filosofia, sem o que a bioética pode tornar-se um mero instrumento normatizador e não questionador.

Cbio – Qual foi sua grande satisfação e qual foi sua grande decepção ao ocupar o cargo de Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética?

Marlene – Minha grande satisfação como Presidente da SBB foi representá-la junto ao CNS. Pude estimular uma discussão em nossa diretoria sobre a questão das células-tronco com emissão de uma nota, trazendo pela primeira vez uma posição oficial dos representantes da Bioética do Brasil na época da discussão da posição no CNS, e que foi encaminhada para o Supremo Tribunal Federal.

Também agimos de pronto em outra nota quando da interferência do Ministério da Saúde na Conep. Não tive decepção ao exercer meu cargo. Consegui cumprir minhas promessas de aumentar as regionais, de difundir a Bioética em nosso país, posicionar a SBB quanto a questões relevantes, e de realizar um grande congresso em Búzios, com quase 800 participantes, e em época de crise de patrocínio.

Cbio – Agora, passados poucos dias do final do Congresso, qual é seu balanço a respeito dos resultados obtidos? As pessoas saíram felizes?

Marlene – Recebi quantidade imensa de e-mails de todas as partes elogiando muito o congresso, tanto pela sua organização, local escolhido, mas, principalmente, pelo brilho dos palestrantes e escolha dos temas. Nossos alunos ficaram muito felizes e nos parabenizaram. Pessoalmente foi uma grande realização, como também para toda a diretoria da SBB 2007-2009.


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